Histórico
“Escritas do patrimônio”
Por um histórico da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Claudia Feierabend Baeta Leal
Um histórico da Revista do Patrimônio precisa começar destacando o quanto sua origem está intimamente vinculada à criação, em 1937, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan (então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Sphan). Prevista como “meio permanente de propaganda, e força cultural” no anteprojeto elaborado por Mario de Andrade, em 1936, para o Serviço de Patrimônio Artístico Nacional, onde seriam “gradativamente reproduzidas também as obras de arte pertencentes ao patrimônio artístico nacional”, “os estudos técnicos, as críticas especializadas, as pesquisas estéticas, e todo o material folclórico do país.”, a então Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional seria lançada como “órgão” do Sphan em seu primeiro ano de atividade, com vistas a “divulgar o conhecimento dos valores de arte e de história que o Brasil possui e contribuir empenhadamente para o seu estudo.”
Descrever a Revista como manifestação oficial dos debates e esforços internos desse Serviço, porém, não dá conta do papel que o periódico exerceu e continua exercendo na construção do campo do patrimônio cultural e nos debates sobre as políticas de preservação. Assim, mais do que buscar nas páginas da Revista o relato de como o Iphan construiu e apresentou sua atuação ao longo do tempo, vale ler o periódico como registro de uma “escrita do patrimônio” plural e dinâmica, com que vários autores e agentes contribuíram. De publicação para “dilatar e tornar mais seguro e apurado o conhecimento dos valores de arte e de história de nosso país” a espaço de divulgação de acervos, fórum de debates, fonte de pesquisa e trincheira de resistência em defesa das políticas de preservação do patrimônio cultural, a Revista do Patrimônio permite um diálogo amplo e diversificado com a história do patrimônio cultural no Brasil, em suas relações com o Estado, governos, sociedade, universidade, conhecimento e política(s).
Um instrumento interessante para dar inteligibilidade à trajetória dessa Revista tão longeva é organizar em fases seus 40 números publicados até o presente. A literatura especializada e os históricos publicados pela própria Revista, principalmente em números comemorativos, propõem algumas periodizações referentes a seus projetos editoriais, que inclui seu projeto gráfico, mas também o papel que a Revista buscava assumir no campo do patrimônio. Neste histórico, vai se privilegiar uma periodização que se atém à “escrita do patrimônio” proposta em suas páginas, trabalhando com duas fases principais: a primeira, abrangendo os 18 primeiro números, com ênfase na consolidação dos discursos e da ideia de patrimônio, baseados na noção de civilização material “para um novo olhar sobre a história e cultura brasileira”; e a segunda, iniciada nos anos 1980, dos números 19 a 40, em que se identifica a busca por uma “abordagem multidisciplinar e de diálogo com vários setores da sociedade”.
O período que compõe sua primeira fase contou com 18 números e estendeu-se da criação da Revista até 1978, tendo apenas dois diretores à frente da Instituição (Rodrigo Melo Franco de Andrade e Renato Soeiro). Cabe incluir nesse histórico interessante observação sobre as datas de publicação: o primeiro número, por exemplo, estampou em sua capa o ano de 1937, mesmo tendo saído apenas em 1938, possivelmente para vincular sua origem ao Serviço criado naquele ano. Mais ainda: os números 2 a 11 estamparam em suas capas datas que sugeriram uma periodicidade regular e anual, entre 1937 e 1947, apesar de terem vindo à luz entre 1939 e 1954, com intervalos importantes entre os volumes. A partir do número 12, de 1955, suas capas que passaram a indicar intervalos irregulares de publicação, mantendo, porém um mesmo projeto gráfico e editorial no período.
Nessa primeira fase da Revista, as contribuições eram tipológica e tematicamente diversas. Encontram-se ensaios, artigos, monografias, “fotografias, ilustrações coloridas e em preto e branco, mapas, croqui e vastas referências documentais", compostos principalmente por autores brasileiros de alguma forma vinculados às atividades do Sphan, mas também estrangeiros convidados. Tematicamente, é possível afirmar que a maior parte dos textos e imagens alinhavam-se aos assuntos priorizados então pelo Serviço, com bastante espaço para bens e sítios que seriam tombados já nos primeiros ano de atuação do Sphan. Uma parte das contribuições, porém, incluíam também objetos e locais que diziam menos sobre procedimentos e prioridades do momento, e mais sobre “possibilidades de atuação do Sphan”: daí artigos sobre manifestações culturais de comunidades tradicionais e populações indígenas, patrimônio natural, sítios e bens da Região Norte do país, entre outros espaços e manifestações não necessariamente contemplados então pelo tombamento.
Contemporâneos da série “Publicações do Sphan”, esses 18 primeiros números podem ser lidos na chave de constituição do campo de patrimônio, o que inclui pensar na legitimação e divulgação de conhecimentos e procedimentos específicos, na “consolidação de uma nova área de intervenção estatal” e na “criação da ‘causa’ do patrimônio” junto à sociedade.
A segunda fase da Revista é marcada, em 1984, pelo “novo formato e novas características editoriais” de seu número de relançamento. No intervalo de seis anos entre a publicação dos números 18 e 19, 13 títulos foram publicados, sendo apresentados na seção “Publicações do Sphan/Pró-Memória”, com temas variados tão variados como aqueles que compuseram os volumes da primeira fase.
Para além das questões gráficas, a retomada é marcada pela incorporação da ampliação do campo do patrimônio iniciada na década de 1970 e a abertura política dos anos 1980, assim como pelo “esforço da instituição federal em posicionar-se no campo de debates e ideias sobre a preservação”. Campo este em que a instituição federal não era mais o único interlocutor, dada a descentralização das políticas culturais com que a então Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a própria Revista contribuíram.
Entre os 22 números que compõem essa fase – publicados entre 1984 até 2019, data da edição mais recente –, é possível distinguir dois conjuntos de volumes: os números de retomada da Revista, do 19 ao 22, mantiveram a variedade de temas das contribuições publicadas nas edições anteriores, agora distribuídas em seções com ensaios, documentos, projetos, resumos, cartas, entre outros. Mantiveram também “o compromisso fundamental com a pesquisa e o debate”, adotando, porém, um formato voltado para um público mais amplo e para a publicidade das ações institucionais, afirmando o processo de abertura, renovação e atualização proposto na gestão precocemente interrompida de Aloísio Magalhães à frente da então Sphan/ProMemória.
Já os números 23 em diante (publicados partir de 1994) passaram a compor edições temáticas com organizadores convidados entre pesquisadores atuantes na universidade e agentes públicos vinculados ao Iphan. Contando com formatos variados de contribuições – artigos, ensaios, entrevistas, enquetes, croquis, ensaios fotográficos, poesias e desenhos –, os números apresentam um maior investimento gráfico, com fotografias e ilustrações coloridas, assim como temáticas importantes para as políticas culturais e que o campo do patrimônio vinha crescentemente incorporando – cidades, cidadania, herança africana, cultura popular, patrimônio imaterial, biodiversidade, turismo – ou ressignificando – fotografia, nacionalidade, museus, arqueologia, história, entre outros.
Nova retomada da Revista está em curso, com sistematização e publicação de uma Política Editorial, assim como estabelecimento de um Conselho Editorial, composto por detentores, pesquisadores e gestores do patrimônio, e um Comitê Editorial, formado por doutores servidores do Iphan. Mantém e ao mesmo tempo renova, assim, as importante redes de agentes culturais mobilizadas em torno da Revista ao longo do tempo. Em seus primeiros números, estudos mostram intelectuais, membros do Conselho Consultivo, funcionários engajados na constituição de uma identidade nacional, na consolidação de práticas de preservação e na divulgação sistemática do acervo patrimonial que se criava. Em sua segunda fase, redes não menos significativas dão conta de sua importância, seja na figura da organizadora ou organizador, das autoras e autores convidados a escreverem – seja da universidade, seja entre detentores e agentes públicos. Essas redes incluem também uma variedade de pesquisadoras e pesquisadores que se debruçaram sobre o periódico para analisá-lo em detalhe ou que o incluíram entre suas fontes para estudar a formação das políticas e debates de patrimônio no Brasil, seja por meio de consulta aos exemplares disponíveis nas bibliotecas, nos acervos pessoais ou mesmo online, a partir de meados dos anos 2000. Cabe destaque inclusive para o fato de que, se a primeira fase contou com vários membros do Conselho Consultivo do então SPHAN publicando na Revista do Patrimônio, as nomeações mais recentes para este colegiado contemplaram autores que, atuando em outros espaços em prol do patrimônio, já haviam contribuído para essa publicação. Muito mais do que uma “iniciativa de propaganda do [Instituto] do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”, a Revista do Patrimônio firmou-se, ao longo do tempo, como espaço de mobilização de agentes e troca de saberes para a preservação do patrimônio cultural.