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Coletânea Rumo à 5ª CNSTT
O frentista músico
Parecia ser um domingo como outro qualquer, meio despretensioso e até entediante. Acordei como de costume. Café preto, zanzando pela casa, gostando da solidão de tê-la só pra mim. Entre um devaneio e outro, lembrei da famosa frase do nosso mestre lutador Maguila: “o trabalho edifica ou danifica?” E da clássica frase de Max Weber: “o trabalho enobrece o homem”.
Pronto!!! Era o que bastava para meus pensamentos voarem longe. Porque o trabalho também pode ser um fator de adoecimento, principalmente, hoje em dia com as novas relações de trabalho vigentes, vínculos de trabalho precários, terceirização dos encargos sociais ao próprio trabalhador, que por sua vez não tem consciência de classe social, aliás, palavra quase extinta do vocabulário. Quem fala de classe social, sindicatos, hoje em dia é antiquado, chique é empreender, nada contra, desde que tenhamos clareza das implicações por trás disso.
Com isso, fiquei a pensar, no sentido do trabalho em minha própria existência ou sobrevivência. Historiadora de formação, servidora pública da saúde na prática, 40 horas semanais, em uma organização “open office”, convivo diariamente com as estruturas organizacionais, normas, leis, portarias, notas técnicas, sistemas de informação que organizam o processo de trabalho, mas, obviamente, limitam o potencial criativo, inovador.
Lembrei de quando meu filho era pequeno e não entendia bem qual era o meu trabalho, se eu era historiadora ou “da saúde”. Era difícil pra ele entender, por incrível que pareça também é difícil para muitos colegas que trabalham comigo. E o pior é que na faculdade dos cursos de saúde aprendemos que a definição de saúde não é ausência de doenças, mas sim um estado de completo bem-estar físico, mental e social. O social? Sim. A saúde é determinada por condições sociais? Era fácil explicar isso para o meu filho de 8 anos, difícil era dizer que em um país como Brasil, tão marcado por desigualdades sociais, mais do que nunca dever-se-ia incorporar os saberes das ciências sociais e humanas, filosofia, inclusive.
Tem um poema que é um mantra pra mim: “Poética”, do Manuel Bandeira. Ele diz: Estou farto do lirismo comedido, Do lirismo bem-comportado, Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. Diretor. Pois bem, vivo na corda bamba não só dos consignados, mas no esforço de manter minha ética, poética, aceitar a diferença e conviver mesmo que por vezes, engolida por esse turbilhão das novas lógicas de gestão do tipo “open office” (palavra que eu odeio), na verdade um eufemismo para a internalização da disciplina pelos indivíduos, constantemente vigiados, resultando em corpos dóceis e normalizados. As micropolíticas que castram seu desejo de ser livre.
De volta àquele domingo, divagando sobre essas questões, resolvi, de rompante, pegar o carro e sair por aí, espairecer, ouvindo música alta e sentindo saudades do meu filhote que cresceu e bateu asas. Quando ele ainda morava comigo, fazíamos isso com frequência, conversar e ouvir música, o carro em movimento. No capitalismo tardio é assim, “de carro”, a gente é quase desconectado da cidade, o “andar a pé” é tão diferente, mas no calor de Cuiabá, fazer o quê: vamos de carro no ar-condicionado. Lá fui eu, chaves na mão, pensamentos fervilhando na cabeça, coloquei uma playlist, daquelas porretas mesmo, sabe? Pra cantar a plenos pulmões fingindo que estamos fazendo a revolução.
Só que o álcool está nas alturas, quando olhei meu marcador estava no vermelho. Com medo de ficar na rua, parei no primeiro posto de gasolina, estava tocando a música “Fé” na voz da Bethânia e do Caetano. Parei o carro e abri a janela, o frentista se aproximou e antes que eu dissesse qualquer coisa, ele logo se adiantou: Nossa!!!! Eu adoro essa música. Fiquei meio surpresa com a alegria esfuziante com que ele disse: sabe que eu sei tocar essa música no violão? E eu, logo fui engatilhando uma conversa com ele, não sobre o perigo do benzeno para a saúde dos frentistas, ou a precariedade de vínculo de trabalho a qual certamente, ele está submetido naquele posto de gasolina. Perguntei se ele era músico. Ele disse que sim, que tocava nos bares noturnos da cidade e trabalhava de frentista para complementar renda. Ficamos um bom tempo falando de música. Então, como um gesto de resistência, de revolução, abri as quatro janelas do carro, coloquei a canção no volume mais alto e ficamos os dois cantando juntos o refrão que dizia assim:
Fé pra quem é forte
Fé pra quem é foda
Fé pra quem não foge a luta
Fé pra quem não perde o foco
Fé pra enfrentar esses filha da puta¹
No final, depois de cantarmos juntos umas quantas músicas, já não sabia se ele era músico-frentista ou frentista-músico. O que realmente não importa, pois, ali o diálogo fluiu na horizontalidade, éramos só dois brasileiros trabalhadores assalariados, tentando resistir, sonhar, não deixar de lado o desejo, não sucumbir às engrenagens. Não se deixar enganar pelo consumismo que nos dá a falsa ilusão de que somos superiores por ter um carro do ano ou bolsa da Vitor Hugo, saber quem você é e se manter firme, mesmo que na corda bamba. Pra finalizar um provérbio budista: “Descubra algo que você gosta de fazer e você nunca mais terá trabalho”.
1Letra da música Fé, composta pela cantora Isa, na voz de Maria Bethânia e Caetano Veloso.¹