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Mulheres Negras
Marchando por Reparação e Bem Viver
Na última terça-feira, 25/11, a Esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF), foi tomada por cerca de 300 mil pessoas, na 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver. Quatro trios elétricos com representações negras femininas de todas as regiões do país guiaram a caminhada do Museu Nacional até a Esplanada dos Ministérios, quase dez anos após a primeira edição da manifestação, quando aproximadamente 100 mil pessoas marcharam Contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver.
O “Manifesto das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver”, publicado na página oficial da Marcha, relembra que sua primeira edição buscava explicitar como “o avanço do fascismo, da cultura do ódio e da expropriação dos bens públicos e naturais agravou o contexto político e social no cenário mundial, regional e nacional.” Neste novo momento da luta contra o racismo patriarcal, esta coletividade de mulheres negras expõe que sem reparação não há possibilidade de democracia, justiça, igualdade e equidade.
O fim de um mundo
A desigualdade no Brasil, fruto do colonialismo ainda arraigado nas estruturas sociais fundantes desse país, revela contradições e expõe a magnitude dos desafios que enfrentamos enquanto nação. Olhar para o Brasil sob a ótica racial escancara as consequências de um passado escravocrata ainda muito presente, e as desigualdades se aprofundam quando acrescentamos a intersecção de gênero à análise.
Dados do segundo trimestre de 2025 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que o povo brasileiro, em sua maioria, é negro, totalizando cerca de 56,4% da população. O número de mulheres negras (pardas e pretas) vivendo no Brasil é estimado em 60 milhões. Ainda que numeroso, esse segmento segue sub-representado na política, ganha menores salários, sofre mais casos de violência obstétrica e é mais vitimado em casos de feminicídio.

Diante de tantas lutas urgentes, faz-se necessária uma grande articulação, que mobilize os mais diversos setores da sociedade, reivindicando reparação, equidade e igualdade plena de direitos e oportunidades para as mulheres racializadas deste país, em toda sua pluralidade.
A cosmovisão compartilhada pelas pessoas participantes da Marcha, e bastante enfatizada nos manifestos lançados pelos 16 comitês que compõem sua organização, foge à lógica colonialista e escravocrata. É um projeto político que parte de outras matrizes, saberes e fazeres, que entende como necessária a responsabilização dos atores sociais que lucram, historicamente, com a exploração e desumanização das mulheres negras. É necessário dar fim ao mundo como o conhecemos, para construir as bases de uma nova sociedade, em que todas as mulheres, em especial as mulheres negras e indígenas, possam exercer sua cidadania de forma plena.
O Controle Social do SUS na Marcha das Mulheres Negras
Quando se fala em reparação e bem viver, é justamente sobre construir novas formas de organização social, buscando eliminar desigualdades. Desde sua criação, pela Constituição de 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) contribui para essa caminhada rumo a um mundo mais justo, equânime e igualitário. A saúde não é um aspecto isolado na vida das pessoas. Pelo contrário, ela está interligada a tudo que nos rodeia: nossos hábitos, ambientes que frequentamos, o acesso à informação e à educação formal, jornada e condições de trabalho, acesso ao lazer, alimentação adequada — todos estes são fatores que impactam a saúde dos brasileiros e brasileiras.
Para a conselheira nacional de saúde pela União de Negros e Negras pela Igualdade (UNEGRO), Rosa Anacleto, que participou das duas edições da marcha, “reparação e bem viver têm tudo a ver com saúde”. Ela reforça que “saúde não é não ter doença”, mas ter acesso a uma série de aparatos e condições de vida que produzam saúde e possibilitem a prevenção de doenças e o cuidado integral sempre que necessário.

- onselheira Nacional de Saúde, Rosa Anacleto, na 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver. Foto: Hugo Aurélio (Ascom/CNS)
Pesquisa do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra), com base nos dados da Pnad Contínua do IBGE, revela que a expectativa de vida de pessoas brancas é mais alta que a de pessoas negras, isto é, negros morrem mais e mais cedo. A violência de Estado contra a juventude negra, condições de trabalho precárias e jornadas abusivas e adoecedoras — resquícios escravocratas — são alguns dos grandes responsáveis pela desigualdade expressa na expectativa de vida de pessoas negras no Brasil.
A mesma pesquisa do Cedra indica, ainda, que em lares habitados por pessoas negras, há maior probabilidade de o trabalho doméstico ser realizado pelas mulheres negras da casa, ainda que elas também trabalhem fora, configurando jornadas duplas e até triplas. Além da carga extra afetar sua condição de construir autonomia, essa realidade também impacta fortemente a saúde física, mental e emocional dessas mulheres.
Racismo ambiental
Outro fator que afeta a população negra de forma desproporcional é o racismo ambiental, que se relaciona diretamente à saúde e qualidade de vida. Pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) analisou 75 regiões metropolitanas, entre 2010 e 2022, com o objetivo de identificar como o fator racial se associa à exposição à poluição, altas temperaturas e cobertura vegetal. Dados do estudo concluem que a população afro-brasileira enfrenta 38% mais poluição e dias de calor extremo do que as pessoas brancas vivendo no país.
O Comitê de Justiça Climática da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver se fez presente nas discussões sobre racismo ambiental, neste ano, em Belém do Pará. Juntamente com mais de dez organizações vinculadas ao Comitê, foram realizadas, entre os dias 10 e 21 de novembro, 26 atividades em diferentes espaços da Cúpula dos Povos e da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30) — eventos de extrema importância no combate às mudanças climáticas e ao racismo ambiental.
PEC da Reparação
Dentre as palavras de ordem mais recorrentes na Marcha, figurou o pedido de urgência à PEC da Reparação. Com relatoria do deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 27/2024 prevê a criação do Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial (FNREPIR), destinado a ampliar oportunidades e promover a inclusão social da população negra brasileira.
Acréscimos ao texto da Proposta, por parte do relator, ampliam as fontes de arrecadação do Fundo, como valores arrecadados por condenações de racismo — para além da indenização à(s) vítima(s) — e condenações a empresas por trabalho análogo à escravidão. O texto reforça, ainda, a obrigatoriedade da destinação dos recursos.
Os acréscimos ao texto foram apresentados em sessão especial, na manhã da Marcha (25/11), que contou com a presença da Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e de lideranças da Marcha das Mulheres Negras. Apesar dos apelos para votação imediata do texto, o pedido de vista apresentado pelo deputado Hélio Lopes (PL-RJ), para analisar o texto por mais tempo, adiou a votação para a primeira semana de dezembro.
RENAFRO
Aproveitando a mobilização pela Marcha, integrantes da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO Saúde) realizaram, entre os dias 22 e 25 de novembro, o Seminário Nacional da RENAFRO 2025. O encontro, que teve como encerramento a participação na Marcha, reuniu, em Brasília, lideranças religiosas, representantes de terreiros, gestores públicos e profissionais da saúde de todo o país.
O seminário foi realizado com o objetivo de fortalecer o diálogo entre saberes tradicionais e políticas públicas de saúde, consolidando a efetivação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e das ações de promoção da Saúde dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e de Terreiro, abarcada pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra, e pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS.

Rede de afetos
Além de mobilizar tantas pessoas politicamente, a Marcha também mobiliza afetos. Nos mais diversos relatos, das mais novas àquelas com mais longa trajetória de luta, é notório o impacto gerado pelas trocas e encontros oportunizados pela Marcha. A conselheira nacional de saúde pela UNEGRO, Teresa Raimundo, empossada em 2025 e atual integrante da Comissão Intersetorial de Políticas de Promoção da Equidade (CIPPE), comenta que a Marcha traz à tona a força ancestral e coletiva das mulheres afro-brasileiras: “Estar no meio de tantas mulheres pretas potentes foi muito especial, e reforça a importância da gente se aquilombar.”
As desigualdades no Brasil são muitas, e as mulheres pretas — historicamente relegadas ao final da lista de prioridades do Estado — têm urgência por mudanças e reparação. A força política mobilizada pela Marcha precisa se traduzir em políticas públicas e ações estratégicas. A Marcha é um dia histórico para as lutas afro-brasileiras, afro-latinas e afro-caribenhas, e ainda há muita luta pela frente. Que o aquilombamento experienciado pela multidão de mulheres negras que ocuparam a Esplanada nesta edição da Marcha seja combustível para a continuidade da luta. O afeto é revolucionário.
Hugo Aurélio Rocha
Conselho Nacional de Saúde
