Fome, descaso, abandono e mortes negligenciadas no Mato Grosso

Em meio às 375 aldeias Xavante no estado do Mato Grosso, cerca de 27 mil indígenas vivem um cenário de descaso e abandono. De acordo com  depoimentos de lideranças do território , a maioria da população sofre de diabetes e tuberculose, enquanto crianças morrem de desnutrição e doenças respiratórias. Um Grupo de Trabalho (GT) do Conselho Nacional de Saúde (CNS) esteve em Barra do Garças (MT), acompanhado por um representante da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), entre os dias 19 e 23 de maio, para conferir a situação.

Ao receber denúncias sobre as péssimas condições de saúde dos indígenas, o GT foi visitar as aldeias San Marco e Nossa Senhora do Guadalupe, e organizou rodas de conversas com usuários, trabalhadores, gestores, presidentes de conselhos locais e representantes do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) e do Conselho Municipal de Saúde. Os Xavantes carregam consigo a cultura tradicional de um povo forte e guerreiro, mas necessitam de cuidados urgentemente. 

Falta de vacinas, atendimento médico, água potável, medicamentos, falta de viaturas, alta taxa de mortalidade infantil e de idosos, falta de profissionais de saúde, sobrecarga de trabalho, desvio de funções, estão entre as principais queixas apresentadas ao GT. Somam-se a isso,  a insegurança alimentar e nutricional e a falta de acesso a alimentos nutritivos e de qualidade, sendo agravada por fatores, como o custo elevado de transporte para regiões urbanas, que contribui para desnutrição e problemas de saúde e afetam  de forma significativa toda população.

Há uma percepção unânime de que o problema central é estrutural e estruturante, dado a ausência de gestão e planejamento técnico, com escassez de recursos humanos, infraestrutura precária, ausência de saneamento básico e fragilidade nas redes de apoio interinstitucional. “Não é um único problema, são vários com muitas questões envolvidas. Todos deveriam ser tratados com individualidade por cada órgão responsável para a busca de uma solução em conjunto”, avalia a secretária estadual de saúde do Mato Grosso, Márcia Cristina Lauber.

Para Marcos Costa Santos, que integra a Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (Cisi) do CNS e faz parte do GT, o problema do Dsei Xavante é estrutural. “Penso que quando os Yanomami sairem do Espin [Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional] os Xavantes vão entrar. A taxa de desnutrição e mortalidade infantil aqui é muito grande. O estado do Mato Grosso não produz comida, produz commodities e ninguém come commodities”, afirma Marcos ao destacar a importância de fomento às ações de agricultura no território para garantir que haja autonomia desta população. 

Descaso

Agnelo Temrité Wadzatsé, liderança Xavante e conselheiro nacional de saúde pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), expõe a realidade cruel de um sistema de saúde que falha em proteger os povos originários. “Os profissionais de saúde não visitam as comunidades". Segundo ele, relatórios "bonitos" são enviados à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), mas a realidade é de mortes silenciadas. 

“Nossos filhos estão morrendo de fome enquanto as nutricionistas ficam no ar-condicionado e não vêm às nossas aldeias. Nós, Xavantes, não conseguimos mais deixar nossos cabelos crescerem porque, na nossa tradição, é preciso cortar o cabelo quando morre alguém”, completa Pio Tsimhoropupu Butsé, liderança xavante e presidente do Conselho Local de Saúde, ao revelar a negligência com as crianças. 

O cacique Marcos Antonio Serezaioha Sahobo vai além: "Nossa saúde tá sem dono. Em Campinápolis tem um cemitério de viaturas [veículos para atendimento à saúde]. Não sei como a Sesai está pagando aluguel desse lugar para carros quebrados”, afirma. “Somos todos seres humanos, não sei porque nos tratam como bichos”, completa Sara Perui õ, conselheira distrital.

Para Vânia Leite, coordenadora-adjunta da Cisi e representante da mesa diretora, os relatos impactam e reforçam o descaso e a invisibilização das vidas pelo estado brasileiro. “Nós observamos e ouvimos depoimentos dos usuários, gestores e trabalhadores e durante a visita às aldeias nos sensibilizamos ao ouvir que as pessoas não têm água potável, nem banheiro em casa. Há muitos relatos de fome, diabetes com amputação de membros, tuberculose e muitas mortes de crianças, adultos e idosos. É chocante”, afirma. 

Falta de estrutura e racismo

Alcides, presidente do Conselho Local de Saúde (CLS) da Terra Indígena Sangradouro, relata que nas 68 aldeias não há atendimento por falta de veículos. "As pessoas morrem porque não têm socorro", diz. Ele também critica a gestão branca da saúde indígena: "Branco inventa muito para acalmar indígena".

O acesso às aldeias indígenas é somente por via terrestre, e o número de carros para atendê-los é bastante escasso. Atualmente, o Dsei possui apenas quatro veículos para percorrer as 375 aldeias, de 14 municípios, em uma extensão territorial de mais de 1.330 hectares. Segundo o coordenador do Dsei Xavante, Roberto Pereira Bravo cerca de 22 veículos estão parados, porque a empresa contratada (Localiza) não tem reposto os veículos danificados.

A aldeia mais próxima, a que o GT visitou, Aldeia San Marco, está a 200 km de Barra do Garças, numa viagem de aproximadamente duas horas por estrada de chão e boa parte por estrada de terra. Algumas aldeias, como a Marãiwatsede, chegam a ficar a cerca de 500 km de distância.

Assédio 

A insuficiência de profissionais e a sobrecarga de trabalho que fica aos poucos trabalhadores, também, é uma triste realidade. Atualmente, há somente um pregoeiro para o Dsei Xavante, e esta profissional ainda atua como farmacêutica da Casai, cobrindo uma vaga descoberta desde setembro de 2024. Devido a essas circunstâncias fica estabelecido o que é mais urgente dos urgentes. 

Entre as demais funções, também é deficitário o número de nutricionistas, enfermeiros e auxiliares de enfermagem. “Quase diariamente sofremos assédio por falta de entendimento e competência. Gostaria que algum antropólogo viesse ao território fazer uma análise sobre o número de aldeias que surgiram nos últimos anos. Se entenderem o quanto isso aumentou e souberem que continuamos atuando com o mesmo número de profissionais vocês entenderiam que a gente faz milagre” afirma um trabalhador da saúde, que pediu para preservar sua identidade.

Nos últimos dez anos conseguiram aumentar para três vagas o número de profissionais nutricionistas, porém “até poucos dias havia duas nutricionistas para atender os 27 mil Xavantes, e elas se revezavam para ficar 15 dias em cada território. Hoje, há somente uma”, completa Terezinha Pereira de Oliveira, uma das poucas servidoras públicas do Dsei-Xavante.

Moeda de troca

Assédio moral, venda de vagas de emprego, reuniões no Condisi realizadas somente na língua Xavante (mesmo com a presença de conselheiros não indígenas), desperdício de dinheiro público e ameaças também estão entre as denúncias dos trabalhadores. “Minha cabeça já foi a prêmio várias vezes. Ano passado saiu uma lista com nome dos profissionais que seriam demitidos. Tem profissional que quase foi despedido, porque o cacique queria que ele desse uma vaca a ele para fazer uma festa. Nós que impedimos a demissão, por ser uma excelente profissional. A Sesai não faz nada e às vezes temos que recorrer ao Ministério Público para reverter a situação”, afirma um trabalhador da saúde que pediu para não ser identificado.

O que falta para declarar emergência?

Apesar da gravidade, os problemas relatados ao GT acontecem há um longo período. Para Rosaline Lunardi, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), o problema está no DSEI. “O processo de trabalho está muito mal organizado, e não é porque as pessoas não querem trabalhar, mas porque elas lidam sempre com demandas urgentes. O sistema de informação por si só já é uma sobrecarga. Eles precisam preencher 63 fichas semanalmente,geralmente ficam duas horas em trânsito, quatro horas escrevendo relatórios consolidados e duas horas fazendo assistência para a população. Não é só isso que determina a situação de saúde, claro, mas esse dimensionamento é o mesmo de 20 anos atrás e isso tem de ser relevado.

Enquanto gestores discutem alternativas para resolver a situação, os Xavantes enterram seus mortos – muitos sem nunca terem recebido um atendimento digno. "O que mais precisa para entrar em colapso?", questiona Jorge Paolo Bonilho, engenheiro do Dsei Xavante, que acompanhou a GT do CNS.

Próximos passos 

Como resultado da visita o GT vai elaborar um relatório para apresentar à mesa diretora do CNS, que será submetido à apreciação do Pleno do CNS. O colegiado também vai realizar diálogos com a Sesai, para os devidos encaminhamentos do Controle Social. “Viemos ouvir, conhecer, relatar de fato o que está acontecendo e cobrar soluções imediatas das autoridades competentes”, avisa Rildo Mendes, coordenador da Cisi. “A situação aqui é muito grave. Basta querer ver, para ver. E o que vamos fazer é isso, incluir tudo o que vocês nos disseram e nos pediram  nesse relatório, inclusive que vocês querem uma audiência com o ministro”, completa Haroldo Pontes, conselheiro nacional de saúde pelo Conass e integrante da Cisi.

O GT do CNS foi composto pela coordenadora adjunta da Cisi e representante da mesa diretora Vânia Leite, pelos integrantes da comissão Haroldo Pontes, Élio Oliveira e Marcos Costa e pelas assessoras do CNS Camila Faccenda e Jennifer Bombonati. O grupo também foi acompanhado pelos convidados Edemilson Canale, representante da Sesai, e Agnelo Temrité Wadzatsé, liderança Xavante e conselheiro nacional de saúde pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Viviane Claudino

Conselho Nacional de Saúde