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Coletânea Rumo à 5ª CNSTT
Transtornos Mentais Relacionados ao Trabalho: os desafios em identificar, notificar e prevenir
Um dos eixos da 5ªCNSTT é a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. A vigilância dos transtornos mentais relacionados ao trabalho é um tema central dessa política, sobretudo diante do crescente adoecimento mental entre trabalhadores e trabalhadoras. Este texto discute desafios para uma vigilância eficaz, buscando contribuir com o debate e a construção de soluções na 5ªCNSTT.
O Brasil vivenciou profundas transformações econômicas, sociais e políticas nas últimas décadas. No mundo do trabalho, essas mudanças – impulsionadas pelas exigências do capitalismo – se manifestam por baixos salários, longas jornadas, ritmos acelerados de produção, contratos precários e perda de direitos1,2. As reformas trabalhista e previdenciária ampliaram a vulnerabilidade individual e coletiva3.
A precarização das condições laborais e a exclusão decorrente do desemprego impactam de forma significativa a saúde física e mental dos/as trabalhadores/as, contribuindo para o aumento do adoecimento psíquico4. Entre 2007 e 2023, dados do SINAN mostram aumento progressivo dos casos de TMRT (Gráfico 1), especialmente entre as mulheres, configurando um quadro epidêmico no país.
Esse aumento, acentuado no pós-pandemia, destaca a gravidade do problema e a ausência de estratégias eficazes de enfrentamento. A ampliação das ações em saúde mental no trabalho é urgente. O fortalecimento da VISAT é essencial, pois ela articula vigilância epidemiológica, monitoramento de indicadores de saúde, ações de prevenção e promoção da saúde5. Para o êxito dessas ações, é fundamental conceituar adequadamente “saúde mental”. Um ponto chave para essa definição é a compreensão da relação entre trabalho e identidade, com ênfase no papel do trabalho na construção objetiva e subjetiva dos sujeitos6,7,8. O trabalho não apenas garante a subsistência, mas também dá sentido à vida, fortalece a autoestima e possibilita vínculos sociais. Essa concepção do papel central do trabalho na formação da subjetividade, permitindo que a
pessoa se sinta socialmente útil e desenvolva suas competências, deve orientar o foco da vigilância, apontando o que deve ser observado e monitorado.
A saúde mental não é algo que acontece, isoladamente, na mente dos indivíduos, mas é construída por processos culturais, sociais, contextuais e pelas possibilidades que esses contextos oferecem ou limitam. Fortalecer concepções coletivas permite superar visões reducionistas que atribuem o adoecimento apenas ao indivíduo, ampliando o olhar da vigilância para além do sintoma, ao considerar o ambiente de trabalho como produtor de subjetividades e sofrimento.
A vigilância em saúde e trabalho atua em duas frentes complementares: o monitoramento dos agravos e das condições que os geram ou agravam. Esse processo exige a análise contínua de dados e uma atuação integrada, que depende de equipes estruturadas e capacitadas. No entanto, persistem desafios, como a limitação de recursos e a insuficiência de profissionais nos Cerest, especialmente em saúde mental9.
Além das equipes reduzidas, a VISAT enfrenta a ausência de diretrizes nacionais para a identificação de TMRT. Embora incluídos no SINAN desde 2006, ainda não há um protocolo nacional, o que levou estados e municípios a criarem procedimentos próprios. No entanto, a falta de padronização compromete a qualidade e a comparação das informações, dificultando um monitoramento mais preciso. A experiência acumulada, entretanto, pode orientar condutas nacionais e garantir dados padronizados, tornando a criação de diretrizes para TMRT uma tarefa urgente que requer ação imediata.
Outra barreira para dimensionar o problema é que os Cerest ainda estão isolados nas notificações dos TMRT, enquanto serviços como a Atenção Básica, Emergência e CAPS ainda negligenciam o trabalho como fator determinante no adoecimento. Superar essa lacuna histórica exige o fortalecimento da integração das atividades em redes de atenção à saúde. Para isso, é fundamental investir na formação adequada dos profissionais, garantindo que a relação entre trabalho e adoecimento seja devidamente incorporada nas práticas dos serviços de saúde, o que é essencial para um cuidado integral e efetivo.
Adicionalmente, persistem problemas de abrangência. O SINAN ainda não cobre adequadamente os/as trabalhadores/as informais. É necessário fortalecer o sistema para garantir essa inclusão. A incompletude das fichas de notificação é outro desafio: entre 2006 e 2021, 62,9% dos casos de TMRT não continham o setor econômico (CNAE), dado fundamental para entender a origem do problema e orientar ações. Apesar desses desafios, o uso dos dados epidemiológicos permite identificar contextos de risco, traçar perfis de adoecimento e planejar intervenções. Estudos indicam que indicadores bem elaborados são essenciais para identificar riscos, planejar ações preventivas e otimizar recursos, além de fortalecer políticas públicas e facilitar o diálogo intersetorial.4,9
Diante dos desafios na identificação, notificação e prevenção dos TMRT, é urgente fortalecer a implementação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. A qualificação profissional, a ampliação do SINAN e a participação da classe trabalhadora são essenciais para consolidá-la. Assim, a 5ª Conferência deve propor ações para que a PNSTT não seja apenas um marco normativo, mas um instrumento vivo de transformação das práticas em saúde e das condições de trabalho que afetam a saúde mental da população trabalhadora no Brasil.
Referências
1. Druck G. Trabalho, precarização e resistências: novos e velhos desafios? Cadernos CRH. 2011;24(n. spe1):37-57.
2. Antunes R, Praun L. A sociedade dos adoecimentos no trabalho. Serv Soc Soc. 2015;(123):407-27.
3. Krein JD, Manzano M, Teixeira M. Trabalho no Brasil: desafios e perspectivas. Cadernos do CEAS. 2022;47:293-317.
4. Araújo TM, Palma TF, Araújo NC. Vigilância em Saúde Mental e Trabalho no Brasil: características, dificuldades e desafios. Ciência & Saúde Coletiva. 2017;22(10):3235-46.
5. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Cadernos de Atenção Básica, n. 41 – Brasília: Ministério da Saúde, 2018. 136 p. Disponível em: http://www.saude.ba.gov.br/suvisa/divast/vigilancia-epidemiologica-em-saude-do-trabalhador/manuais/.
6. Dejours C. A loucura do trabalho: estudo sobre a psicopatologia do trabalho. 5ª ed. São Paulo: Cortez – Oboré; 1992.
7. Seligmann-Silva E. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. 1. ed. São Paulo: Cortez; 2022.
8. Silva AC, Ferreira J, Ceresina D, Maciel EMGS, Oviedo RAM. Os sentidos da saúde e da doença. Ciência & Saúde Coletiva. 2013;20(3):957-8.
9. Cardoso M de CB, Araújo TM de. Os Centros de Referências em Saúde do Trabalhador e as ações em saúde mental: um inquérito no Brasil. Rev Bras Saúde Ocup. 2016;41(1):145-59.
*A Coletânea “Rumo à 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (CNSTT) – Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como Direito Humano” é uma iniciativa aberta que convida a sociedade a participar da reflexão sobre os desafios da saúde no mundo do trabalho. Trabalhadores, sindicalistas, movimentos sociais, coletivos, Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), Comissões Intersetoriais de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Cistt), entre outros, podem enviar seus materiais, em diferentes formatos. Veja as orientações para participar.