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Coletânea Rumo à 5ª CNSTT
Participação que transforma: da imposição à escolha na saúde do trabalhador
A Constituição Federal de 1988 garantiu que a saúde fosse reconhecida como um direito de todas as pessoas e um dever do Estado. Isso inclui também a saúde do trabalhador e da trabalhadora, que deve ser compreendida como um direito humano. Para que esse direito se concretize, é essencial que existam políticas públicas voltadas à promoção de ambientes de trabalho saudáveis, seguros e dignos. Mas não basta que o Estado atue sozinho: a participação social é um pilar fundamental nesse processo.
Uma pesquisa do Instituto DataSenado (1), realizada em 2022, mostrou que a saúde é a maior preocupação da população brasileira, sendo mencionada por 26% dos entrevistados — mais que temas como corrupção e educação. Esse dado reforça a importância de ouvir e incluir a população nas decisões sobre a saúde pública.
Porém, para ter este direito garantido não depende apenas do governo. A própria Constituição afirma que a participação da comunidade é uma das diretrizes para que o Sistema Único de Saúde (SUS) funcione de forma justa e eficiente. E é aí que entra o chamado controle social que, na prática, significa que a população tem o direito — e o dever — de acompanhar, fiscalizar, propor melhorias e participar das decisões que envolvem a saúde pública. Isso ajuda a garantir que os recursos sejam bem usados, que os serviços atendam de verdade às necessidades da população e que haja mais transparência nas ações dos gestores públicos.
Para que esse controle social aconteça de forma organizada, a Lei nº 8.142/1990 criou dois mecanismos principais: os Conselhos de Saúde e as Conferências de Saúde. Os Conselhos de Saúde existem em três níveis: municipal, estadual e nacional. Eles são espaços de diálogo entre o governo e a sociedade. Ali, sentam na mesma mesa representantes dos usuários do SUS, dos trabalhadores da saúde, dos gestores públicos e dos prestadores de serviços, sendo que os representantes dos usuários, ou seja, a população, têm metade dos assentos nos conselhos. Os conselhos se reúnem regularmente e debatem temas como orçamento, qualidade dos serviços, construção de unidades de saúde, falta de medicamentos, entre outros. Além disso, os conselhos são deliberativos, ou seja, suas decisões devem ser levadas a sério e consideradas nas ações de governo.
Já as Conferências de Saúde acontecem a cada quatro anos e servem para avaliar a situação da saúde no Brasil e propor diretrizes para os próximos anos. As conferências também acontecem nos três níveis (municipal, estadual e nacional) e também devem contar com ampla participação da sociedade. Durante esses encontros, são debatidos temas como acesso à saúde, financiamento do SUS, políticas específicas para grupos vulneráveis (como indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência, entre outros). O resultado das conferências ajuda a orientar as políticas públicas no país.
Além dos conselhos e conferências, existem outros canais de participação, como as ouvidorias do SUS, nas quais qualquer cidadão pode fazer reclamações, elogios, sugestões ou denúncias sobre os serviços de saúde. Outro instrumento são as audiências públicas, que permitem que a população participe de discussões importantes sobre temas de interesse coletivo.
A participação popular também é prevista no setor privado da saúde, mais precisamente na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), responsável por regular os planos de saúde privados. A Lei nº 9.961/2000 prevê a existência da Câmara de Saúde Suplementar, um órgão consultivo da ANS que conta com representantes da sociedade civil, incluindo usuários de planos de saúde, prestadores de serviço e entidades de defesa do consumidor. A participação popular na regulação dos planos de saúde também é fundamental, pois ajudam a definir os serviços mínimos ofertados aos clientes.
A participação da população nas decisões sobre a saúde pública não é um favor, mas um direito democrático fundamental e um caminho para garantir que as políticas públicas estejam verdadeiramente alinhadas às necessidades reais das pessoas. Quando a sociedade se envolve, ela pode denunciar abusos, indicar prioridades, apontar falhas e sugerir soluções, fortalecendo o SUS, reduzindo desperdícios, aumentando a transparência e impedindo que decisões relevantes fiquem restritas a gestores e políticos, muitas vezes afastados da realidade vivida pelo povo.
Todas essas medidas estão alinhadas aos princípios da Carta de Ottawa, de 1986, que propõe a promoção da saúde como um processo de fortalecimento da capacidade das pessoas para exercer maior controle sobre sua própria saúde e melhorar suas condições de vida. Nesse sentido, os mecanismos políticos devem assegurar o desenvolvimento do interesse público na saúde. A participação social, por sua vez, promove a emancipação dos sujeitos, favorecendo uma gestão mais autônoma da saúde. Isso representa uma mudança importante: em vez de decisões virem de cima para baixo, as pessoas passam a ter voz ativa, saindo da obediência imposta para assumir o protagonismo, construindo juntas novos caminhos, com mais sentimento, participação e autonomia.
Autoria: Vinicius Rocha Moço¹, Renata Fortes Itagyba²
¹Advogado, Mestrado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. São Paulo
²Médica, Pós-Doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. São Paulo
(1) Instituto de Pesquisa DataSenado. PEC 32/2022: Resultados parciais da pesquisa Panorama Político 2022 [Internet]. Brasília: Senado Federal; 2022 [citado 2025 mai 9]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/pec-32-2022-resultados-parciais-da-pesquisa-panorama-politico-2022
*A Coletânea “Rumo à 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (CNSTT) – Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como Direito Humano” é uma iniciativa aberta que convida a sociedade a participar da reflexão sobre os desafios da saúde no mundo do trabalho. Trabalhadores, sindicalistas, movimentos sociais, coletivos, Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), Comissões Intersetoriais de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Cistt), entre outros, podem enviar seus materiais, em diferentes formatos. Veja as orientações para participar.