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Coletânea Rumo à 5ª CNSTT
Efetivação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora na Atenção Primária em Saúde: o que vem sendo construído e o que nos desafia
Introdução
Um dos mais importantes e estratégicos espaços de debates e reivindicações populares relacionados ao campo da Saúde dos Trabalhadores se aproxima: a 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (CNSTT). Não por acaso, somos chamados a refletir sobre a “Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como um Direito Humano”.
Esse convite é ainda mais especial no contexto brasileiro. Somos um dos dez países mais desiguais do mundo, e isto nos coloca desafios complexos e estruturais como o desemprego, a concentração de renda, a inflação, a pobreza e a insegurança alimentar. Soma-se a isso as transformações do mundo do trabalho, marcadas pelo crescimento da informalidade, precarização dos vínculos empregatícios, flexibilização das leis trabalhistas e domiciliação das atividades laborais. Tudo isso desencadeia consequências graves e repercussões negativas para o perfil de morbimortalidade dos trabalhadores1,2.
O percurso histórico da Saúde do Trabalhador (ST) mostra que desde a publicação da Lei 8.080 de 1990 ela já estava devidamente regulamentada nos dispositivos constitucionais, fruto de intensos debates envolvendo movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores e sociedade civil3. Contudo, foi apenas no ano de 2012 que a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora efetivamente passou a ser instituída no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). De forma inovadora e em congruência com os princípios do SUS, a PNSTT veio para demarcar definitivamente um campo de atuação epistemológico, político-científico e profissional, cuja principal finalidade reside em intervir sobre o processo saúde-doença dos trabalhadores4.
Passados pouco mais de 30 anos desde a institucionalização da ST no SUS, muitas conquistas já foram efetivadas para a sociedade. Por outro lado, ainda persistem desafios históricos a serem superados. Assim, o presente ensaio objetiva analisar algumas das potencialidades e dos desafios para a efetivação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT) na Atenção Primária à Saúde (APS).
A Política Nacional de Saúde dos Trabalhadores e das Trabalhadoras: uma trajetória de lutas e conquistas
O trabalho é um dos principais eixos organizadores da vida social e um dos mais importantes determinantes das condições de saúde, adoecimento e morte das populações. Entendendo a sua importância e centralidade na sociedade, a PNSTT objetiva intervir em situações concretas, visando a melhoria das condições de saúde dos trabalhadores, independentemente do seu tipo de vínculo empregatício1.
A PNSTT reforçou a importância de propiciar o cuidado integral à saúde dos trabalhadores, mas não somente. Ao reforçar o papel da Atenção Primária à Saúde como principal porta de entrada e nível de atenção preferencial para capilarizar as ações de ST por todos os territórios, contribuiu para que os serviços locais pudessem ampliar seus olhares sobre como os modos de vida e de trabalho interferem direta e indiretamente nas condições de saúde e doença da classe trabalhadora1.
A PNSTT aponta para um conjunto de ações no âmbito da APS, e apresenta como uma das suas principais diretrizes, a identificação de processos produtivos formais e informais nos territórios4. Esta iniciativa é fundamental, sobretudo na conjuntura atual de transferência dos riscos ocupacionais para o interior dos domicílios ou peridomicílios.
Além disso, a PNSTT promove a observação da possibilidade de exposições não apenas do trabalhador, mas de toda a família e vizinhos potencialmente submetidos aos riscos associados às atividades produtivas5. Podemos acrescentar que sua prática se desenvolve a partir da realização de atividades de campo nos territórios, onde o trabalho real acontece, lado a lado com os trabalhadores, sendo um precioso meio de vigilância popular em saúde e participação social.
Em meio aos avanços, um caminho marcado por desafios a superar
Diversos desafios ainda estão presentes e precisam ser analisados de frente por todos que fazem parte desta construção histórica. Dentre esses, se destaca a baixa interlocução das ações de apoio matricial na APS6, 7.
Um dos principais elementos que contribuem para este aspecto é a falta de clareza dos profissionais sobre as possibilidades de intervenções práticas no campo da ST6. É comum que muitos trabalhadores da Estratégia de Saúde da Família (ESF), pelo pouco conhecimento técnico, julguem que a ST é um campo essencialmente teórico, dissociando-o de ações práticas concretas.
A escassez de referências e contrarreferências é outro sinal claro de deficiências no apoio matricial em Saúde do Trabalhador. Somam-se a isso, entraves na articulação com Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST), dificultando a resolutividade de casos complexos e a troca de saberes e práticas entre profissionais8.
O apoio matricial em ST é perpassado, ainda, por outras fragilidades, tais como a verticalidade e a centralização do planejamento da atuação das Equipes de Saúde da Família. Sobre este aspecto, é comum que as ações de matriciamento não dialoguem assertivamente com as necessidades de saúde específicas de cada território. Como consequência, grandes questões relacionadas ao processo de saúde-adoecimento decorrentes do trabalho passam a ser “invisibilizadas”, tornando o cuidado menos resolutivo e desarticulado com os princípios da integralidade da atenção8,9.
A própria rotina de trabalho dos profissionais da APS é marcada pela ausência de capacitação adequada para o correto preenchimento do Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC-SUS). Essa falha em relação ao registro das informações relacionadas à saúde dos trabalhadores compromete a qualidade dos registros e as ações de Vigilância em Saúde do Trabalhador. Como consequência, muitos acidentes e doenças relacionadas ao trabalho não são devidamente notificados, gerando hiatos que escondem a real magnitude do problema.
Conclusões
A 5ª Conferência Nacional de Saúde dos Trabalhadores e das Trabalhadoras é um marco histórico na atual conjuntura política do Brasil. Na pauta, são diversos os assuntos urgentes para discussão. Ao longo desse manuscrito, procuramos trazer reflexões profundas sobre o que consideramos ser prioritário para a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora no âmbito da Atenção Primária à Saúde.
Esperamos que essas reflexões sobre os avanços e desafios da PNSTT possam fomentar o desenvolvimento de diálogos, análises, construções, críticas e sugestões sobre possibilidades para a efetivação da atenção integral à saúde dos trabalhadores como um Direito Humano. Desta forma, esperamos que a 5ª CNSTT contribua com a promoção de profundas transformações sociais
REFERÊNCIAS
1. Silva DP da, Freitas RF, Souza LF de, et al. Práticas profissionais em saúde do trabalhador na Atenção Primária: desafios para implementação de políticas públicas. Cien Saude Colet. 2021;26(12):6005-16. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-812320212612.14842021
2. Malta DC, Bernal RT, Vasconcelos NM de, et al. Acidentes no deslocamento e no trabalho entre brasileiros ocupados, Pesquisa Nacional de Saúde 2013 e 2019. Rev Bras Epidemiol. 2023;26:e230006. Available from: https://doi.org/10.1590/1980-549720230006.supl.1.1
3. Brasil. Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial Uniao. 1990 set 20.
4. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. Diário Oficial Uniao. 2012 ago 23.
5. Silva-Filho PL da, Botelho C, Castro HA, et al. Prevalence and factors associated with respiratory symptoms among civil construction workers: an occupational health surveillance proposal. Rev Bras Med Trab. 2020;17(1):119-29. Available from: https://doi.org/10.5327/Z1679443520190263
6. Silva FFV da. Atenção integral em Saúde do Trabalhador: limitações, avanços e desafios. Rev Bras Saude Ocup. 2021;46:e12. Available from: https://doi.org/10.1590/2317-6369000020719
7. Lazarino M da AS, Silva TL e, Dias EC. Apoio matricial como estratégia para o fortalecimento da saúde do trabalhador na atenção básica. Rev Bras Saude Ocup. 2019;44:e23. Available from: https://doi.org/10.1590/2317-6369000009318
8. Silva MF da, Mieiro DB, Camarotto JA, et al. Vigilância em Saúde do Trabalhador na perspectiva de gestores e tomadores de decisão. Rev Bras Saude Ocup. 2023;48:e1. Available from: https://doi.org/10.1590/2317-6369/05221pt2023v48e1
9. Santos Júnior CJ, Miranda CB, Antunes JLF, Fischer FM. Temporal trend of the incidence of workplace accidents in Brazil, by federative units and economic activity sectors. Cien Saude Colet. 2025 Mar;30(3):e07282023. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/40136162/