Notícias
Coletênia Rumo a 5ª CNSTT
Saúde Mental e Trabalho: um debate urgente para a rede SUS
Para onde quer que voltemos nosso olhar, veremos trabalho! "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara", como diz Saramago no início de seu "Ensaio sobre a cegueira".
O trabalho é um espaço de construção de histórias, de desenvolvimento de habilidades, de interação social e de expressão da criatividade. O trabalho permite que o indivíduo se engaje em um projeto de vida, se sinta parte de uma comunidade e construa sua identidade.
No entanto, o trabalho também pode ser um ambiente de opressão, exploração e adoecimento. Desta forma, longe de constituir-se como espaço de construção, o trabalho é forjado na subserviência, sob a ênfase nos resultados, independente das condições para alcançá-los, no desempenho individual diante de coletivos fragmentados. Nessas condições de trabalho precárias, encontramos a falta de autonomia, a violência e o assédio que podem levar a problemas de saúde física e mental, como depressão, ansiedade, síndrome de burnout e até mesmo suicídio.
O mundo do trabalho, em constante transformação, tem sido marcado pelo esfacelamento dos vínculos e modelos como a uberização e a plataformização. Os processos tornam-se mais complexos e paradoxais: exige-se cada vez mais, com cada vez menos recursos e pessoas. Essas novas configurações, caracterizadas pela precarização e pela falta de direitos, reforçam ainda mais os riscos psicossociais e a necessidade de uma reflexão urgente sobre a saúde, inclusive mental, dos trabalhadores.
A minoria da população, que tem sua carteira assinada ou um vínculo estatutário, sente-se um pouco mais segura, mas também enfrenta seus desafios cotidianos. No setor privado, especialmente, exige-se uma lealdade não para a sociedade, para um sujeito, um projeto, mas uma lealdade à empresa - essa entidade onipresente e onipotente! Espera-se que o trabalhador seja flexível, versátil, engajado, inovador, competitivo, que ele assuma riscos para que a empresa consiga sobreviver e crescer. É dito aos trabalhadores, de forma mais ou menos direta: “realizem seus sonhos, nós oferecemos condições para que sejam os melhores, procurem a excelência. Entre para o time dos campeões!”.
Se aceitar irá cair no imaginário enganoso, na internalização dos valores das organizações, porque hoje, os valores da economia se misturam aos valores da vida social. Mas, se não aceitar as regras do jogo, está fadado ao fracasso! E, ainda nesse sentido, observamos que na medida em que se tenta imputar ao sujeito a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso, estrategicamente, as origens do mal-estar do trabalhador vão sendo artificialmente situadas fora do ambiente de trabalho. Por exemplo, busca-se atuar sobre o estresse, aconselhando o trabalhador a praticar esportes, a ter uma vida saudável, uma dieta equilibrada, tirando da organização do trabalho qualquer responsabilização! Os trabalhadores são tratados como seres passivos que têm que adaptar-se aos fatores de risco, sem perceber a importância de atuar sobre os determinantes socioeconômicos, ou seja, mudar a organização e o conteúdo patogênico e de risco do trabalho.
Ao mesmo tempo, a redução do papel do Estado, o sucateamento do SUS, o número reduzido de auditores fiscais no Ministério do Trabalho e Emprego, os raros concursos capazes de assegurar direitos sociais aos cidadãos trazem ainda mais perigo a este modelo de construção social. Os mais vulneráveis ficam sujeitos ao abismo entre as condições de trabalho idealizadas nas normas regulamentadoras e as condições concretas em que ele acontece, sujeitos a novas formas de escravidão, ao adoecimento e à morte.
Como trabalhadores do SUS, somos testemunhas! Fazemos ações de vigilância em saúde do trabalhador nos locais de trabalho; escutamos os trabalhadores nos diferentes pontos de atenção da rede, sabemos do sofrimento, dos suicídios e suas tentativas.
No relatório final da VIII Conferência Nacional de Saúde, o trabalho foi incluído entre os determinantes sociais da saúde, mas "o trabalho em condições dignas, com amplo conhecimento e controle dos trabalhadores sobre o processo e o ambiente de trabalho"¹.
A saúde só pode ser compreendida enquanto um conjunto de experiências. Se ser saudável é a capacidade de re-estabilizar, re-tomar o curso da vida, re-normatizar, a doença pode ser entendida como a consequência do encolhimento dos espaços de protagonismo, de diálogo e negociação com o meio.² O contexto de violência - que impossibilita o desenvolvimento, o protagonismo, o reconhecimento, a estima de si - não pode ser banalizado, nunca, ainda mais em espaços que deveriam primar pela segurança a fim de contribuir na promoção do desenvolvimento humano e social.
Diante desse contexto, fazemos um chamado à luta pelo trabalho digno, que promova a saúde e o bem-estar dos trabalhadores. Defendemos a necessidade de um enfrentamento coletivo e plural dos processos de degradação da saúde no trabalho, e somos contra o fechamento dos espaços de debate e construção coletiva seja nas empresas, serviços públicos, ou por meio da invalidação desse tipo de sofrimento aos trabalhadores que buscam cuidado nas portas dos serviços de saúde, sejam eles no SUS ou da rede suplementar.
O convite é à reflexão, à notificação dos casos e à ação diante da constatação desses adoecimentos. Precisamos conclamar a sociedade a se engajar na construção de um mundo do trabalho mais justo e saudável, onde o trabalho seja fonte de realização e bem-estar, e não de sofrimento e adoecimento.
Referências:
¹Ministério da Saúde (BR), Ministério da Previdência Social (BR). 8ª Conferência Nacional de Saúde: relatório final [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 1986. 21 p. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/8_conferencia_nacional_saude_relatorio_final.pdf
²Canguilhem, G. O normal e o patológico. 6.ed. rev. - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
Crisane Costa Rossetti; Juliana Dias Pereira dos Santos
CEREST Municipal de Belo Horizonte
*A Coletânea “Rumo à 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (CNSTT) – Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como Direito Humano” é uma iniciativa aberta que convida a sociedade a participar da reflexão sobre os desafios da saúde no mundo do trabalho. Trabalhadores, sindicalistas, movimentos sociais, coletivos, Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), Comissões Intersetoriais de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Cistt), entre outros, podem enviar seus materiais, em diferentes formatos. Veja as orientações para participar.