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Coletânea Rumo à 5ª CNSTT
Infância Perdida e Escravidão Escondida: servidores públicos unidos para erradicar o trabalho escravo em Belo Horizonte
Imagina só, em pleno século XXI, pessoas vivendo como escravas aqui, pertinho da gente. Pois é, essa é a dura realidade do trabalho análogo à escravidão, uma forma moderna de exploração que prende a pessoa por dívida, ameaça ou medo, tirando toda a sua liberdade e dignidade .
Em Belo Horizonte, até pouco tempo atrás, essa ferida social ficava escondida, não aparecia nos registros oficiais de saúde. Faz parte do trabalho da Vigilância em Saúde do Trabalhador (VISAT) realizar investigações dos riscos à saúde nos processos e ambientes de trabalho. Nesse sentido, atentos a acidentes e doenças causadas por atividades laborais, os(as) profissionais de saúde usam um sistema para notificar os casos de doenças, agravos e violência, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Mas, estranhamente, até 2021, não tinha nenhum caso de trabalho análogo à escravidão registrado no município.
Acontece que essa forma de exploração é cruel e sorrateira, muitas vezes acontecendo dentro do ambiente do lar com as trabalhadoras domésticas. Pensa numa mulher, em geral negra, às vezes até uma menina, que rala de sol a sol, sem receber um salário justo, ou trocando o trabalho por um canto prapara dormir e comida. Como se estivéssemos no Brasil de séculos atrás, feito escrava, trabalha quase sem descansar, não tem lazer e ainda é tratada com desprezo, vivendo em condições horrorosas ou sofrendo violência. Isso, meus amigos, é trabalho análogo à escravidão.
Aí entra em cena o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) de BH, que é um lugar que cuida da saúde de quem trabalha. Em 2022, em parceria com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a coisa começou a mudar. O CEREST teve um papel importantíssimo no acolhimento dessas trabalhadoras ajudando a colocar fim nessa exploração. Foi juntando esses dois atores sociais (CEREST e MTE) que conseguimos registrar o primeiro caso oficial na cidade.
A missão do CEREST nesta ação era clara: começar a registrar esses casos de violência ligada ao trabalho escravo no papel, no tal do SINAN, e contribuir para garantir um bom e articulado cuidado à saúde dessas cidadãs, dando todo o apoio multiprofissional da saúde, incluindo cuidado médico e orientações do serviço social para as trabalhadoras resgatadas pelo MTE, ajudando na recuperação da vida e, agora, de forma digna. Era cuidar da saúde da mulher desde o resgate até ela estar segura e podendo se cuidar sozinha. E, para completar, o CEREST queria abrir os olhos dos(as) profissionais da saúde sobre como identificar esses casos, onde denunciar e qual o papel de cada um nessa luta.
A partir de um contato do Ministério dos Direitos Humanos com o CEREST Municipal de BH, uma senhora foi resgatada pelo MTE e trazida ao CEREST para iniciar o processo de acolhimento e cuidado, que tanto era necessário, e até então era invisível ao SUS. A equipe de fiscais do trabalho, com a polícia e um promotor, tiraram essa mulher de uma situação terrível e a encaminharam para a equipe do SUS de BH. A equipe multiprofissional do CEREST ouviu com atenção o pessoal do MTE para entender como tudo aconteceu, desde a denúncia até a fiscalização na casa e o primeiro depoimento da trabalhadora.
A assistente social do CEREST foi a primeira a conversar com ela e viu que não era fácil para aquela trabalhadora contar sua história. Ela estava assustada, encolhida fisicamente. Aos poucos, descobriram que ela havia vivido na rua desde o início da adolescência onde iniciou sua longa história de vulnerabilidade. Em seguida, ainda adolescente, trabalhou em casas de família onde também viveu sempre da mesma forma, explorada por meio do trabalho análogo à escravidão moderna. No atendimento da equipe de enfermagem foi observado que ela não havia tomado a vacina da COVID-19 e nunca havia ido a uma unidade de saúde. O médico do trabalho também a examinou e viu que ela estava com um problema sério na barriga e uma ferida infeccionada na perna, precisando de atendimento imediato na Unidade de Pronto Atendimento.
Ao mesmo tempo que os donos da casa costumam dizer que essa mulher “faz parte da família”, fica claro que essa informação não é verídica. Na hora de receber cuidado ela é tratada de forma indigna e desigual. É a coisificação do ser humano.
Foi nesta oportunidade que a primeira notificação de trabalho análogo à escravidão de Belo Horizonte foi feita. Após garantir a segurança daquela senhora de 53 anos, avisamos a unidade de saúde do bairro onde ela trabalhava sobre o ocorrido e a importância da equipe da unidade em pensar e discutir como alertar outras pessoas sobre esses casos. O MTE decidiu levar a trabalhadora para um abrigo em outra cidade. Hoje, ela está bem e até estudando! Pelos registros fotográficos ou por vídeos, vê-se que é outra pessoa. Hoje está livre, alegre e vivendo confortavelmente sob um teto, onde sua vida lhe pertence. A individualidade é preservada.
Depois desse caso, o CEREST começou a organizar um jeito de agir em situações parecidas. Entendemos que é preciso um time de profissionais de várias áreas para cuidar dessas pessoas e enfrentar um problema tão complexo. Desde então, o CEREST virou parceiro do MTE nessa luta. Já apoiamos mais três casos de trabalhadoras domésticas escravizadas até março de 2025, mostrando para todo mundo a importância de ficar de olho, denunciar e ajudar essas vítimas.
Essa história mostra que a escravidão, mesmo disfarçada, ainda existe. Mas também revela que, quando a gente se junta e abre os olhos, é possível dar um basta nessa crueldade e garantir uma vida digna para todo mundo. Com coragem e engajamento coletivo, a cidade pode ser mais cidadã, devolvendo os direitos humanos às pessoas mais vulneráveis, tantas vezes invisibilizadas.
Alessandra Dias da Silva, Juliana Dias Pereira dos Santos
CEREST Municipal de Belo Horizonte
*A Coletânea “Rumo à 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (CNSTT) – Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como Direito Humano” é uma iniciativa aberta que convida a sociedade a participar da reflexão sobre os desafios da saúde no mundo do trabalho. Trabalhadores, sindicalistas, movimentos sociais, coletivos, Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), Comissões Intersetoriais de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Cistt), entre outros, podem enviar seus materiais, em diferentes formatos. Veja as orientações para participar.