Evolução do Sistema Aduaneiro
Na década que se iniciou em 1530, o governo português implantou no Brasil o sistema de Capitanias Hereditárias, ou seja, de feudos concedidos a nobres, militares e burocratas, com ampla autonomia administrativa, limitando-se a Coroa a cobrar neles alguns poucos tributos, conforme estabelecido nos forais e cartas de doação. Para isso, instalou em cada capitania uma Provedoria da Fazenda Real, encarregada de cobrá-los. Essas provedorias tinham, também, a função de aduanas, pelo que os seus chefes, os Provedores, eram também Juízes de Alfândega.
Sabe-se, pela documentação existente, que quase todas as capitanias, exceto as do Maranhão, Santo Amaro e São Tomé, instalaram suas alfândegas. Entretanto, no estágio em que se encontram as investigações históricas, é impossível saber qual é a mais antiga. Há indícios, entretanto, de que talvez sejam as de São Vicente ou a de Pernambuco (instalada na época em Olinda).
Não fora, porém, baixado regimento para tais provedorias, pelo que as atividades aduaneiras eram sujeitas a dúvidas freqüentes e insolúveis. Só em 1549, quando foi criada a Provedoria Mor da Fazenda Real, com sede na Bahia, chefiada por Antônio Cardoso de Barros, é que a Coroa baixou regimentos para este e para os provedores das capitanias. O provedor continuava como juiz da alfândega, seu chefe, coadjuvado pelo escrivão da alfândega, o feitor, o meirinho do mar, o juiz da balança e alguns guardas. Além das atribuições meramente fiscais, os provedores deviam também agir como representantes do Rei em outros assuntos, inclusive na defesa militar. Comandaram, muitas vezes, a defesa das capitanias contra corsários e invasores, lideraram bandeiras em busca de metais preciosos, como Brás Cubas e Francisco Monteiro, e enfrentaram motins populares. E ainda tinham que cobrar impostos...
Os principais impostos aduaneiros, entretanto, não eram cobrados no Brasil, uma vez que só mercadorias vindas de Portugal podiam entrar aqui. (Não se critique excessivamente essa política; todos os países colonialistas da época a adotavam; a Inglaterra a manteve até o século XX, na Índia e outras colônias). Os impostos cobrados nas alfândegas brasileiras incidiam sobre as exportações para fora do reino e sobre as importações feitas por comerciantes estrangeiros. Alguns tributos adicionais, porém, eram cobrados sobre as importações e exportações, a título de "donativos" ou "subsídios".
Ainda no século XVI duas grandes alterações ocorreram no sistema aduaneiro do Brasil: a criação da alfândega do Rio de Janeiro, em 1566, que viria a ser a mais importante do país, e a outorga do Foral da Alfândega Grande de Lisboa, em 15 de outubro de 1587, modelo de toda a regulamentação aduaneira posterior. Por incrível que pareça, esse foral vigorou como legislação básica para as alfândegas brasileiras até 1832! (1)
É no final do século XVI, que a Lei de 9 de fevereiro de 1591 fecha os portos do Brasil aos navios estrangeiros, que não tivessem licença prévia da coroa. Novos diplomas legais em 1605 proibiram completamente o comércio com embarcações estrangeiras, com o fito de prejudicar ingleses e holandeses.
Pouco mudou o sistema no século XVII; novas aduanas foram criadas no litoral norte, cresceu o quadro de pessoal de algumas das primitivas, premidas pelo incremento do comércio exterior, e outras feneceram, acabando abolidas por falta de movimento no respectivo porto.
Sensíveis modificações surgiram, entretanto, no princípio do século XVIII. O ouro que os paulistas haviam descoberto em Minas Gerais revolucionou o comércio internacional. Tornou-se impossível, para o governo português, evitar a avalanche de mercadorias que se despenhou sobre os portos brasileiros. Fechá-los totalmente era um convite ao contrabando, facilitado pela extensão do litoral e pelos escassos quadros de pessoal aduaneiro.
A solução foi uma certa liberalização do comércio, mantido o monopólio metropolitano, isto é, a proibição de comércio direto com outros países. Mas, produtos estrangeiros passaram a entrar livremente, via Portugal, nos portos brasileiros. Em compensação, a Coroa impôs a Dízima da Alfândega a todas as mercadorias entradas ou saídas do Brasil. Como conseqüência, cresceu o serviço nas aduanas, obrigando o aumento de seus quadros. Onde havia um funcionário, passou a existir uma Mesa, ou seja, uma secção, composta de vários servidores. Assim, o Juiz da Balança passou a chefiar a Mesa da Balança. A Alfândega do Rio de Janeiro, principal porto de escoamento do ouro e de importação de mercadorias por ele trocadas, ganhou autonomia, separando-se da Provedoria da Fazenda Real da capitania.
À medida em que o Ciclo do Ouro se tornava mais importante, o comércio exterior também crescia, a despeito de algumas crises periódicas de curta duração. As aduanas sobreviventes da estagnação econômica do século XVII se firmaram e ganharam espaço na administração fiscal da época. Paradoxalmente, por volta de 1770, no momento em que a mineração entrava em decadência, o Marquês de Pombal instituiu o Erário Régio e as Juntas da Real Fazenda e extinguiu as velhas provedorias, tornando as alfândegas autônomas, desligadas da arrecadação dos impostos internos. Desaparecia gradualmente a figura dos Provedores, à medida que se instalavam as Juntas, ficando eles apenas como Juízes da Alfândega, cargo acessório que já exerciam.
O século XIX começou com uma transformação radical. A vinda da Família Real para o Brasil resultou na imediata abertura dos portos ao comércio internacional. A despeito do esgotamento das jazidas auríferas, as aduanas voltaram a crescer em número e em movimento. A conjuntura política vivida pela Coroa lusa, totalmente dependente da Inglaterra, impôs uma orientação que protegia excessivamente os comerciantes ingleses, favorecidos por uma tarifa de 15%, enquanto todos os demais, inclusive os portugueses, pagavam 24% ad valorem. Essa esdrúxula situação só foi totalmente corrigida em 1826, ano em que se venceu o prazo do tratado firmado com a Inglaterra.
Alfândegas do Nordeste ajudaram a reconstruir províncias portuguesas
Portugal sofreu muito com as invasões napoleônicas: foram duas, uma em 1807, liderada pelo General Junot que ocupou todo o reino, e outra em 1810, comandada pelo General Massena, que foi detida às portas de Lisboa, na " linha de Torres Vedras", um conjunto de fortificações improvisadas pelo Duque de Wellington.
Massena não se atreveu a atacar a linha fortificada, e Wellington também manteve inativo o seu exército luso-britânico. Poderiam ficar assim durante anos a fio, mas havia uma diferença. Wellington havia ordenado previamente que fossem destruídas todas as plantações e celeiros da província da Beira, onde os franceses teriam que acampar, para que não servissem de abastecimento ao inimigo.
Enquanto os franceses passavam fome, Lisboa era fartamente abastecida por uma corrente quase ininterrupta de navios vindos do Brasil com alimentos e demais provisões.
Depois de alguns meses de penúria, Massena ordenou a retirada de suas tropas para a Espanha. Wellington limitou-se a fustigar essa retirada, não se expondo a um combate decisivo, ainda que em Talavera, já em terras espanholas, houvesse se travado uma batalha importante, vencida pelo exército luso-britânico. A essa altura, porém, metade da Espanha já estava sublevada contra os franceses, obrigando Bonaparte a manter grande número de suas melhores tropas na península ibérica.
Enquanto isso, Napoleão se aventurava na Rússia, onde o "general inverno" e uma tática de "terra arrasada", semelhante à de Wellington, o derrotaram. Em 1812, vencido e cansado, Napoleão se rendeu e abdicou, sendo confinado na ilha de Elba, na costa italiana. Portugal, Espanha e Rússia haviam sido o seu Vietnã, Camboja e Laos.
Em Portugal começava a reconstrução do país devastado pelas duas invasões. As províncias da Beira e da Estremadura eram as mais sofridas, não só pela ação do inimigo, mas principalmente pelas medidas defensivas de Wellington. Para custear a reedificação das moradias e para o replantio das lavouras, o Príncipe Regente D. João (depois D. João VI) criou um "Plano Marshall" para restaurar aquelas províncias (para quem tem menos de 60 anos... foi o plano elaborado pelo General George Marshall, americano, que reergueu a Europa depois da II Guerra Mundial).
Mas um plano desses custa caro. Quem o pagaria?
D. João não hesitou e "houve por bem consignar nas alfândegas da Bahia, Pernambuco e Maranhão, pelo espaço de quarenta anos, a quantia anual de cento e vinte mil cruzados" a ser empregada na recuperação econômica da Estremadura e da Beira.
Um lindo gesto, sem dúvida... mas o chapéu era nosso!
A Regência, apesar dos frequentes tumultos e rebeliões, encontrou tempo para organizar administrativamente o Império, dotando-o de uma estrutura governamental centralizada , mas racional. A Fazenda Pública foi objeto de uma reforma total, entre 1830 e 1832, com a extinção do Erário Régio, das Juntas e do Conselho da Fazenda, substituídos pelo Tribunal do Tesouro Público e pelas Tesourarias Gerais. Criaram-se as Mesas de Rendas e as Coletorias, ao mesmo tempo em que se aboliam numerosas repartições locais, que já não tinham razão para existir.
As Alfândegas ganharam finalmente uma nova legislação, para substituir o velho foral da Alfândega de Lisboa, de 1587. Em 25 de abril de 1832 foi baixado por decreto o Regulamento das Alfândegas do Império, substituído por um novo em 22 de junho de 1836. Paralelamente, a Regência criava, nos portos onde não houvesse aduana, as Mesas de Rendas, regulamentadas por decreto de 30 de maio de 1836. Os velhos Juízes da Alfândega foram, em 1834, substituídos pelos Inspetores da Alfândega.
Em 1845, o Ministro da Fazenda, Alves Branco, estabelece nova tarifa aduaneira, esboçando um regime protecionista que pouco durou, mas constituiu um marco na história econômica do Brasil.
A grande reforma do Tesouro, em 1850, pouco afetou as alfândegas em si, mas uma importante repartição foi criada para centralizar a administração tributária, a Diretoria Geral das Rendas Públicas, que, com algumas modificações, subsistiu até a Reforma Aranha, em 1934.
Em 1860, entretanto, um novo Regulamento para as alfândegas foi baixado pelo decreto n. 2647, de 19 de setembro. Em 2 de agosto de 1876, esse Regulamento sofreu profundas alterações, introduzidas pelo decreto n. 6.272.Foi esse diploma legal que serviu de base para a célebre Consolidação das Leis das Alfândegas e Mesas de Rendas, mandada executar por uma circular datada de 24 de abril de 1885. Curiosamente, essa consolidação fora feita por um funcionário aduaneiro para seu uso pessoal, mas ficara tão perfeita que o governo a adotara. Posteriormente, ela foi atualizada, chegando até nossos dias com o nome de Nova Consolidação das Leis das Alfândegas e Mesas de Rendas, a famosa N.C.L.A.M.A.R.
O café havia reativado o comércio exterior do Brasil na segunda metade do século XIX. O Brasil voltara a crescer; mais uma vez as alfândegas iriam desempenhar um papel decisivo na administração fiscal. Apesar do liberalismo dominante, algumas tênues medidas protecionistas foram adotadas. Isso resultou num incremento do contrabando, especialmente na fronteira meridional, no final do século, obrigando o governo a criar, no Rio Grande do Sul, um Serviço Especial de Repressão ao Contrabando, composto de um esquadrão de cavalaria, com mais de uma centena de guardas. A situação ali era tão grave, que eram comuns os tiroteios entre contrabandistas e guardas aduaneiros, como noticiava, em 3/4/1912, o Diário Oficial da União.
A Primeira Guerra Mundial, embaraçando o comércio marítimo, obrigou o Brasil a produzir e substituir artigos que não mais podiam ser importados. A industrialização brasileira tomou corpo e logo se tornou irreversível, ainda que em proporções modestas. A crise de 1929, também constritora do comércio internacional, acabou por beneficiar essa tendência industrial, embora a grande depressão a prejudicasse nos primeiros anos. Aliás, como conseqüência da crise mundial, eclodiu em 1930 a Revolução Liberal, que, na verdade, resultou numa longa ditadura de cunho nacionalista e fascistizante.
Para quebrar a resistência das velhas oligarquias burocráticas, enquistadas no Ministério da Fazenda, o Ministro Oswaldo Aranha, em 1934, procedeu a uma radical reforma na sua estrutura administrativa, substituindo o Tesouro Nacional pela Direção Geral da Fazenda Nacional, gigantesco órgão composto de Departamentos, um dos quais era o de Rendas Aduaneiras, dando pela primeira vez uma direção especializada para as alfândegas. Essa reforma, necessária do ponto de vista político, era bastante discutível sob o prisma técnico, pois importava na duplicação de órgãos de apoio e na inevitável rivalidade entre os diversos Departamentos.
Em 1938, o Brasil já começava a se recuperar dos efeitos da crise, mas nova guerra era iminente. Em uma reunião realizada em Teresópolis, o Presidente Vargas concluiu uma aliança tácita com o empresariado nacional: a política aduaneira seria alterada, com a criação de barreiras tarifárias, de modo que a indústria brasileira pudesse se desenvolver sem a competição de produtos importados. A efetiva eclosão da Segunda Guerra Mundial em Setembro de 1939 consolidou tal acordo, lançando o país no mais desvairado protecionismo alfandegário.
Nem o fim do Estado Novo, nem as sucessivas mudanças na Administração Pública modificaram esse regime de proteção, que perdurou intacto até 1964. O governo Castelo Branco liberalizou um pouco as importações, abolindo barreiras administrativas e cambiais e reduzindo as tarifas fiscais, mas elas foram novamente elevadas, no governo Costa e Silva. Os governos militares que se seguiram , imbuídos da intenção de modernizar o país e premidos pela crise cambial resultante da elevação dos preços do petróleo, não quiseram ou não puderam liberalizar mais o nosso comércio exterior. Pelo contrário, instituíram a reserva de mercado para a informática e estimularam, através de incentivos fiscais, a produção interna de numerosos setores industriais.
Um avanço, entretanto, foi conseguido; o Decreto Lei n. 37, de 18 de novembro de 1966, fruto dos estudos e pesquisas do aduaneiro Oswaldo da Costa e Silva, chefe de uma das equipes da Comissão de Reforma do Ministério da Fazenda, substituiu a velha N.C.L.A.M.A.R, dotando nossas alfândegas de uma legislação moderna e atualizada.
A criação da Secretaria da Receita, em 1968, restabeleceu a racionalidade da organização fiscal federal, e permitiu ao governo administrar convenientemente o complexo sistema de incentivos fiscais, ao mesmo tempo em que, modernizando os métodos, conseguiu reprimir, pelo menos em parte, a avalanche de contrabando que se despenhava contra as barreiras protecionistas (um erro cometido na criação da S.R.F., abolir o nome "alfândega", só agora foi reparado, com a implantação do sistema de controle aduaneiro; o cargo de "inspetor da alfândega", que fora substituído, poucos dias antes da instalação da Receita, pelo de "administrador da alfândega", e logo depois pelos Inspetores e Delegados da Receita Federal, também foi restabelecido). Além disso, o endividamento externo causado pela crise do petróleo forçou o país a multiplicar as exportações; conseqüentemente, também aumentaram, embora em menor grau, as importações. O saldo obtido, necessário para o pagamento dos juros e amortizações da dívida externa, passou a gerar efeitos inflacionários e a servir de motivo para críticas estrangeiras, desejosas de que ele fosse usado para importações.
Ao mesmo tempo, esse regime protecionista estimulou também o descaminho, forçando a criação, em 1977, de um órgão especializado, a Comissão de Planejamento e Coordenação de Combate ao Contrabando - COPLANC. Em 1988 se implantou a Coordenação do Sistema de Controle Aduaneiro, num reconhecimento claro das necessidades geradas pelo incremento do comércio exterior.
Foi a partir do governo Collor, empossado em 1990, que se tentou realmente uma completa abertura dos portos aos produtos manufaturados estrangeiros. O assunto, entretanto, é delicado e envolve sérias discussões, pois países que realizaram política semelhante estão colhendo resultados contraditórios, como a baixa da inflação à custa de desemprego em massa, sucateamento de seus parques industriais e graves conflitos sociais. Mesmo o Mercado Comum Europeu, considerado como a mais brilhante experiência de cooperação econômica internacional, já é visto hoje, por alguns, como sendo na verdade uma gigantesca muralha aduaneira em torno dos consumidores europeus.
As Américas reagiram a esse fechamento dos portos europeus com a criação de mecanismos semelhantes, o NAFTA, liderado pelos Estados Unidos, e o MERCOSUL, integrado pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. É paradoxal que o néo-liberalismo tenha levado à criação dessas gigantescas alianças alfandegárias... Parecemos marchar, não para um mundo de livre comércio, mas para um planeta dividido em blocos aduaneiros.
Mas, isso pertence ao futuro, e a História não trata do futuro.
(1) - LIBERATO DE CASTRO CARRERA, História Financeira e Orçamentária do Império do Brasil, 158.
(Autor: José Eduardo Pimentel de Godoy)