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Arbitragem, Inovação e a Advocacia Pública
É possível dizer que arbitragem é uma inovação? Dificilmente, pois essa ferramenta é utilizada ao menos desde a Roma antiga para solucionar casos privados. E para o poder público? Também não, pois a Administração recorre à arbitragem há bastante tempo, seja para resolver disputas com outros Estados, seja para litígios com particulares. O que há de novo então no nosso contexto atual? Colocando de outra forma: o que a arbitragem possui de inovador para a Administração brasileira e qual o papel da advocacia pública nessa história?
Eu diria que a inovação, no sentido de verdadeira novidade, pode ser vista em três características atuais: incremento da segurança jurídica, aumento do número de casos e disrupção.
Em relação ao incremento recente da segurança jurídica, é verdade que a arbitragem já era utilizada com frequência pelo Governo brasileiro ao menos desde o século XIX. Em 1895, por exemplo, um laudo arbitral emitido pelo então Presidente norte-americano, atuando como árbitro em disputa entre Brasil e Argentina, definia os limites da fronteira em região estratégica situada no sul do país. Quase 80 anos depois, no famoso Caso Lage, o Supremo Tribunal Federal reconhecia que o Governo poderia resolver por arbitragem uma disputa referente à expropriação de bens particulares durante a 2ª Guerra Mundial.
Porém, nem mesmo o farto histórico e o acórdão do STF foram suficientes para consolidar o instituto. Muitos ainda entendiam que a Administração não poderia litigar contra particulares fora do Poder Judiciário. E esse cenário de grave insegurança jurídica só foi contornado após uma sucessão de medidas de governo (principalmente a edição de leis/regulamentos autorizativos e a prolação de decisões judiciais pró-arbitragem) que incentivavam expressamente o uso pela Administração. Hoje, até mesmo a arbitragem no Direito Tributário está sendo discutida, com chances consideráveis de aprovação no Congresso Nacional, o que seria impensável poucos anos atrás.
A maior segurança jurídica sobre o uso da arbitragem preparou o terreno para a segunda característica atual, que é o aumento rápido no número de casos. Essa relação de causa-efeito é intuitiva e já era previsível: gestores, agora com maior conforto legal, passariam a incluir cláusulas arbitrais em um número cada vez maior de contratos, o que naturalmente resultaria na instauração cada vez mais frequente de arbitragens decorrentes desses mesmos contratos. Hoje, existe um cardápio considerável e crescente de arbitragens em curso, contrapondo Administração e contratantes privados, em setores que vão do saneamento à gestão de parque nacional.
A arbitragem foi, por assim dizer, generalizada para vários setores econômicos em vários níveis federativos. E disso resultou a terceira novidade: muitos órgãos de advocacia pública estão tendo que aprender a toque de caixa como atuar em um procedimento arbitral. Trocar um pneu com o carro andando, na linguagem do dia-a-dia. E acho que a melhor palavra para isso é disrupção, que se desdobra em alguns significados principais.
Disrupção processual, sem dúvida: atuar em arbitragem é totalmente diferente de atuar perante o Poder Judiciário. O procedimento, que segue regras próprias e alheias ao Código de Processo Civil, costuma correr infinitamente mais rápido e demanda um serviço mais sofisticado
de advogados e assistentes técnicos. E se a defesa não for bem-feita, nada de recurso judicial, pois a sentença arbitral é, por lei, definitiva e irrecorrível.
A disrupção dogmática também é relevante: ao julgar os casos, os árbitros costumam levar mais em conta fatores contratuais extraídos do caso concreto do que princípios tradicionais do Direito Administrativo. Ao invés de analisar a incidência do clássico princípio da supremacia do interesse público, por exemplo, os árbitros provavelmente vão avaliar detidamente o comportamento contratual das partes, à luz da boa-fé objetiva. Em outras palavras, um e-mail trocado entre as partes ou uma ata de reunião são mais relevantes que citações principiológicas do antológico manual de Hely Lopes Meirelles.
Por último, também é interessante observar a disrupção filosófica: pode ser difícil, principalmente para entes com menor familiaridade, aceitar que árbitros privados podem julgar, em único grau, questões de sensibilidade coletiva. Como admitir que advogados privados possam decidir sobre o fechamento temporário de um parque nacional, a suspensão de um leilão de aeroporto ou a correção de decisões tomadas no curso de um licenciamento ambiental? Aceitar isso, sem dúvida, requer uma virada de chave em relação à cultura ainda enraizada nas repartições públicas.
Enfim, a arbitragem pode ser disruptiva para o poder público, de várias maneiras diferentes. E isso é ruim?
Parece que não. Para lidar com a falta de familiaridade processual, a advocacia pública pode se capacitar para esse tipo específico de atuação e, no curto prazo, solicitar a colaboração de outros entes públicos; para aumentar a chance de êxito nos casos, as procuradorias podem assessorar o administrador público durante a gestão contratual para que, caso surja um litígio no futuro, a existência de e-mails ou atas de reunião sejam na verdade elementos que complementem e favoreçam o órgão defendido; e para internalizar a mudança filosófica que tudo isso provoca, basta dar um passo atrás e perceber que a arbitragem é nada mais, nada menos, que um produto do movimento de desjudicialização que o próprio Estado brasileiro tem abraçado nos últimos anos.
E se a chance de êxito em determinado caso parecer baixa? Então é dever do bom advogado público sinalizar o risco de derrota e sugerir negociações com o contratante privado. Um contrato sem litígio é um contrato mais eficiente que concretiza o interesse público. E muitas vezes um acordo ruim é melhor que prosseguir a disputa.
E se acordo não ocorrer e a decisão arbitral for desfavorável? Então é dever do procurador diligente provocar uma reflexão na entidade assessorada e na própria procuradoria. Derrotas podem ensinar mais que vitórias e, afinal, podem criar um ambiente mais propício a novas vitórias. Inclusive, decisões desfavoráveis podem ajudar a aprimorar a própria atuação administrativa, indicando os caminhos para uma gestão contratual que reduza riscos para os contratantes.
Esse cenário possui desafios para as procuradorias? Sem dúvida. As funções do procurador, aqui propostas, demandam novas habilidades que o concurso público para acessar o cargo não ensina. Mas parece claro que desse processo disruptivo emerge uma advocacia pública mais moderna, protagonista, inovadora e, afinal, ela própria disruptiva.