Caso Comunidades Quilombolas de Alcântara VS. Brasil
RESUMO OFICIAL EMITIDO PELA CORTE INTERAMERICANA
No dia 21 de novembro de 2024, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante “a Corte Interamericana”, “a Corte” ou “o Tribunal”) proferiu uma sentença na qual declarou internacionalmente responsável a República Federativa do Brasil (doravante “o Estado”, “o Estado do Brasil” ou “Brasil”) por violações de direitos humanos de 171 comunidades quilombolas localizadas no município de Alcântara, Maranhão, relacionadas com o funcionamento do Centro de Lançamento Aeroespacial (doravante “CLA”) em parte de seu território tradicional. Foi declarada a violação dos direitos à propriedade coletiva e à livre circulação e residência em razão do descumprimento da obrigação de delimitar, demarcar, titular e desintruir o território das comunidades; da outorga de títulos individuais de propriedade, e do descumprimento do dever de garantir o pleno uso e gozo do território por parte das comunidades. Ademais, determinou a violação da obrigação de realizar uma consulta prévia, livre e informada às comunidades acerca de medidas suscetíveis de impactálas. Além disso, a Corte concluiu que o projeto de vida coletivo das comunidades em seu território tradicional foi afetado em decorrência da falta de acesso à justiça. Também foi declarada a violação dos direitos à proteção da família, à alimentação e habitação adequadas, à participação na vida cultural e à educação, em razão das condições enfrentadas pelas comunidades após o reassentamento. Igualmente, constatou-se que o Estado não adotou medidas suficientes para reverter a situação de discriminação estrutural em que se encontram as comunidades para gozar de seus direitos. Por fim, declarou que houve violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial.
O Estado realizou um reconhecimento parcial de responsabilidade relacionado à violação do direito à propriedade coletiva, em razão da falta de demarcação e titulação do território, e à violação do direito à proteção judicial, devido à demora processual e à ineficácia das autoridades estatais para o exercício do direito à propriedade coletiva.
I. Fatos
A. As Comunidades Quilombolas de Alcântara
As Comunidades Quilombolas são comunidades afrodescendentes inicialmente formadas por pessoas que escaparam da escravidão ou que já eram livres. Em virtude de sua relação particular com o território em que vivem, sua cosmovisão, identidade cultural e formas de organização, as Comunidades Quilombolas se caracterizam como povo tribal, à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Essas comunidades são reconhecidas, no âmbito constitucional, como grupos étnico-raciais com trajetória histórica, dotados de relações territoriais específicas e acreditados por autodefinição.
Alcântara está situada no estado do Maranhão, na região nordeste do Brasil, sendo um dos municípios com maior número de Comunidades Quilombolas no país. Atualmente, existem pelo menos 171 comunidades quilombolas ali. Ao longo dos anos, as Comunidades Quilombolas de Alcântara passaram a ocupar uma extensão territorial total de 85.537,3 hectares, equivalente a 73.7% da superfície do município de Alcântara. Essa ocupação é limitada, ao norte, pela Baía de Cumã e pelo oceano Atlântico; a leste, pelo oceano Atlântico; ao sul, pela Baía de São Marcos; e a oeste, pelo Rio Itapetininga.
B. O processo de instalação e desenvolvimento do CLA
No Brasil, as atividades espaciais tiveram início na década de 1960. Em agosto de 1979, o Ministro da Aeronáutica enviou ao governador do estado do Maranhão o Aviso Nº 007/GM4/C033, manifestando o interesse em utilizar parte do território de Alcântara para a implementação de um centro de lançamento espacial brasileiro. Solicitou a reserva da área a ser declarada de utilidade pública por Decreto Estadual, para que, posteriormente, fosse expropriada e doada ao Ministério da Aeronáutica. Em 12 de setembro de 1980, o estado do Maranhão publicou o Decreto Estadual Nº 7.820, que declarou de utilidade pública, para fins de expropriação, uma área de 52.000 hectares em Alcântara, com o objetivo de implementar o CLA. Posteriormente, em 1º de março de 1983, o Governo Federal publicou o Decreto Nº 88.136, que criou oficialmente o CLA, com o propósito de executar e apoiar as atividades de lançamento e acompanhamento de dispositivos aeroespaciais, bem como realizar testes e experimentos de interesse para o Ministério da Aeronáutica, relacionados à Política Nacional de Desenvolvimento Aeroespacial. A partir de 1983, iniciou-se a instalação de uma base espacial na cidade de Alcântara.
Em 18 de abril de 1986, foi adotado o Decreto Nº 92.571, sobre o ordenamento das zonas destinadas ao CLA. O decreto determinou o deslocamento obrigatório das comunidades quilombolas para agrovilas, em quatro fases, a fim de liberar as zonas costeiras para a instalação do CLA. A Fase 1 do deslocamento obrigatório ocorreu em 1986. A população que ocupava a chamada “zona residencial e de apoio logístico” foi transferida para a área da fazenda Norcasa, onde foram construídas as Agrovilas Espera, Cajueiro, Ponta Seca, Pepital e Só Assim. Foram deslocadas um total de 112 famílias (521 pessoas). A Fase 2 ocorreu em 1987, quando as famílias que ocupavam a “zona central do CLA” foram transferidas para uma área que compreendia parte das fazendas de Río Grande e Mutiti e as terras devolutas VIII, onde foram estabelecidas as Agrovilas Perú e Marudá. Foram deslocadas um total de 200 famílias (829 pessoas). Até o ano de 2001, um total de 312 famílias de 31 Comunidades Quilombolas haviam sido deslocadas e reassentadas em sete agrovilas, permanecendo pendentes duas fases adicionais de deslocamento.
As famílias deslocadas foram instaladas em casas de 72 metros quadrados, em lotes rurais de 15 hectares cada, localizados longe do mar e das zonas tradicionalmente utilizadas para a pesca marítima, principal meio de alimentação e subsistência. A distribuição dos lotes nas agrovilas foi feita de maneira aleatória, sem considerar crenças religiosas, atividades produtivas, práticas de uso comum da terra e as hierarquias próprias de cada comunidade. As famílias não receberam títulos de propriedade dos lotes nem permissão para construir novas casas ou realizar melhorias nas existentes. Algumas famílias recorreram a ações judiciais em busca de soluções ou reparação, sem obter resposta efetiva. Em relação à disponibilidade de meios de subsistência, após o reassentamento nas agrovilas, a produção de alimentos diminuiu, devido ao tamanho das parcelas e à baixa fertilidade do solo. Ademais, os ecossistemas naturais utilizados por centenas de famílias foram reduzidos, o que aumentou a pressão sobre os recursos naturais da região. A diminuição dos alimentos impactou negativamente a celebração de festividades tradicionais. Os cemitérios comunitários, que permaneceram na área ocupada pelo CLA, foram transformados em depósitos de resíduos ou ficaram em áreas de acesso restrito, sob estrito controle do CLA. Essas circunstâncias impactaram o tecido social, fragilizaram a socialização e a identidade comunitária, e levaram à migração de muitos membros das comunidades para a periferia das cidades, para o centro de Alcântara e para São Luís.
Em 8 de agosto de 1991, o Presidente da República ampliou o território objeto de expropriação, decretando de utilidade pública, para fins de desapropriação, 62.000 hectares de terra no município de Alcântara. O Estado promoveu o deslocamento de outras Comunidades Quilombolas impactadas pelo projeto de ampliação do CLA. Por meio do Decreto Administrativo Nº 12, de 23 de fevereiro de 1995, a Superintendência Regional do INCRA do estado do Maranhão aprovou o reassentamento de 594 famílias de “pequenos produtores rurais” que viviam no território quilombola. Conforme consta dos autos, esse processo não teria sido implementado.
Quanto ao funcionamento do CLA, as atividades de lançamento, que normalmente duram entre 1 e 5 dias, implicam a proibição da circulação e navegação em áreas terrestres e marítimas relacionadas ao lançamento, durante dias ou semanas. Durante esse período, as Comunidades Quilombolas são informadas dessas restrições por meio de folhetos e sofrem restrição absoluta para a atividade de pesca, sem compensação.
Após a criação e os primeiros anos de funcionamento do CLA, nos anos 2000, 2002, 2003, 2006 e 2019, o Brasil assinou e/ou promulgou acordos com os Estados Unidos da América e com a Ucrânia para o uso do CLA. Adicionalmente, em 2007, o Brasil autorizou empresas contratadas pela empresa Alcântara Cyclone Space a realizar trabalhos nas terras das Comunidades Quilombolas de Mamuna e Baracatatiua, localizadas ao norte da área do CLA, com o objetivo de construir novos locais de lançamento.
C. Delimitação e titulação do território quilombola e consulta às comunidades
Em 4 de novembro de 2008, foi publicado no Diário Oficial da União o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território (doravante “RTID”) da Comunidade Remanescente do Quilombo de Alcântara, por meio do qual o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (doravante “INCRA”) identificou e delimitou, para fins de titulação, uma área total de 78.105,3466 hectares de terra como território quilombola. A área indicada no RTID excluiu os 8.713,1830 hectares do perímetro efetivamente ocupado pelo CLA.
Entre 2008 e 2023, diversos procedimentos administrativos e judiciais foram realizados relacionados à identificação, delimitação e titulação das terras das Comunidades Quilombolas de Alcântara, sem que se chegasse a um acordo ou a uma decisão final.
Em janeiro de 2021, o Estado emitiu títulos de propriedade individuais para vários residentes das agrovilas, mediante contratos de doação de lote por parte da União ao(s) morador(es).
Em 19 de setembro de 2024, a União e as Comunidades Quilombolas de Alcântara celebraram um “Acordo de Conciliação, Compromissos e Reconhecimentos Recíprocos” no qual, entre outras disposições, foram estabelecidos acordos sobre a identificação e delimitação do território quilombola de Alcântara e a continuidade do funcionamento do CLA no local onde está instalado.
D. Ações judiciais
Em 1999, 2003, 2009, 2013 e 2016, o Ministério Público Federal apresentou ações civis públicas e cautelares, relacionadas a falhas no licenciamento ambiental do CLA, ao reconhecimento e titulação ou ao uso do território das Comunidades Quilombolas de Alcântara. À data do proferimento desta Sentença, alguns dos processos não contavam com decisão de primeira ou segunda instância, foram declarados extintos ou não se conta com informação sobre o seu estado processual.
Em 17 de abril de 2020, foi proposta uma ação popular questionando a legalidade da Resolução Nº 11, que estabeleceu diretrizes relacionadas à elaboração do Plano de Consulta às Comunidades Quilombolas de Alcântara. Em 12 de maio de 2020, em decisão preliminar, a Oitava Vara Federal do estado do Maranhão considerou a ação parcialmente procedente e ordenou ao Estado a suspensão do processo de reassentamento das comunidades tradicionais situadas na área de ampliação do CLA, até que fosse concluído o processo de consulta prévia às comunidades impactadas.
II. Mérito A. Direitos à propriedade coletiva; à autodeterminação; à consulta prévia, livre e informada; à livre circulação e residência; à vida digna; à integridade pessoal; à liberdade pessoal; às garantias judiciais; à proteção da honra e da dignidade; à igualdade perante a lei, e ao acesso à justiça
A.1. O direito ao território
O Tribunal recordou que o artigo 21 da Convenção obriga os Estados a garantir o direito à propriedade coletiva dos povos indígenas e tribais por meio da delimitação, demarcação e titulação de seus territórios.
No caso, a Corte observou que, conforme o Acordo assinado pelas partes, a área de 78.105 hectares reconhecida no RTID, que exclui a área de 9.256 hectares destinada ao CLA, será delimitada e titulada em favor das Comunidades Quilombolas de Alcântara. No entanto, constatou que o Estado falhou em suas obrigações por: (i) não cumprir sua obrigação de delimitar, demarcar, titular e desintruir o território das Comunidades Quilombolas de Alcântara; (ii) outorgar títulos individuais de propriedade em vez de reconhecer a propriedade coletiva em favor da comunidade; e (iii) descumprir o dever de garantir o pleno uso e gozo do território coletivo pelas Comunidades Quilombolas, inclusive com medidas compensatórias em razão do impacto das restrições sistemáticas durante as “janelas de lançamentos” no uso de seu território e em seu direito de circulação para o exercício de seus cultos, de sua atividade econômica e de sua alimentação.
Em virtude do anterior, a Corte declarou a responsabilidade do Estado pela violação dos direitos à propriedade coletiva e à livre circulação e residência, estabelecidos nos artigos 21 e 22 da Convenção Americana, em relação ao seu artigo 1.1.
A.2. O direito à consulta prévia, livre e informada
O Tribunal recordou que esse direito implica a obrigação dos Estados de garantir aos povos indígenas e tribais a participação nas decisões relativas a medidas que possam afetar seus direitos, em particular o exercício de seu direito à propriedade comunal, de acordo com seus 5 valores, costumes e formas de organização. Ademais, reiterou que esse direito está relacionado aos direitos à autodeterminação dos povos e de acesso à informação. No caso, a análise das obrigações decorrentes do direito à consulta prévia se concentrou nos acordos firmados pelo Estado relacionados ao uso da área ocupada pelo CLA, com potencial de impacto nas comunidades. A esse respeito, a Corte evidenciou que os acordos celebrados entre Brasil e Ucrânia, relativos ao funcionamento do CLA, tinham e têm o potencial de causar impactos significativos às Comunidades Quilombolas de Alcântara, seja pelo simples aumento do trânsito de pessoas alheias às comunidades em seu território, seja pela possível pressão sobre os recursos naturais, por eventuais impactos ambientais decorrentes do uso de diferentes tecnologias de lançamento de foguetes ou para a realização de outras atividades, ou ainda pelo eventual aumento da quantidade ou complexidade dos lançamentos, o que poderia implicar em um aumento das janelas de lançamentos, entre muitas outras consequências potenciais.
Diante da ausência de uma consulta prévia, livre e informada às Comunidades acerca de medidas suscetíveis de impactá-las, a Corte declarou a violação dos artigos 13, 23 e 26 da Convenção Americana, em relação aos direitos contidos nos artigos 21 e 1.1 do mesmo instrumento.
A.3. A alegada violação do direito à integridade pessoal e ao projeto de vida coletivo
A Corte reiterou sua jurisprudência no sentido de que o projeto de vida se fundamenta nos direitos que a Convenção Americana reconhece e garante. Recordou que, em decisões anteriores, houve referência especial à violação do direito à vida digna e, no âmbito do direito à liberdade, a partir da perspectiva do direito à autodeterminação em diversos aspectos da vida. Sustentou que, como parte do livre desenvolvimento da personalidade, a pessoa tem direito a suas próprias expectativas e opções de vida, e a fazer o que for razoável e estiver licitamente ao seu alcance para realizá-las.
No caso concreto, o Tribunal constatou que as vítimas viram seu projeto de vida coletivo prejudicado, o que se agravou em função da ação institucional, manifestada na falta de acesso à justiça em condições de igualdade, em um contexto de discriminação racial estrutural e sistêmica. Concluiu que o Estado se omitiu em garantir e proteger o núcleo de direitos indispensáveis para o desenvolvimento de um projeto coletivo de vida digna. A duração do processo de titulação da terra e a ausência de uma resposta judicial adequada levaram à perpetuação do abandono e à ampliação de suas consequências. Dessa forma, considerou que a desproteção judicial impactou as expectativas de desenvolvimento social coletivo de forma adversa e prejudicial. Os sentimentos de incerteza, medo e angústia provocados pela potencial expansão do CLA e a sensação de humilhação experimentada por alguns membros das comunidades levaram à violação do direito à integridade moral dos membros das 171 Comunidades Quilombolas de Alcântara como um todo, configurando uma violação atribuível ao Estado.
Nesse sentido, o Tribunal constatou que a falta de resposta judicial às suas reivindicações gerou intensos sentimentos de injustiça, impotência e insegurança e, portanto, afetou seu projeto de vida coletivo em seu território tradicional. Em vista disso, declarou a violação dos direitos protegidos pelos artigos 4, 5, 7, 8, 11, 24 e 25 da Convenção Americana, em relação aos seus artigos 1.1 e 26, em virtude da violação ao projeto de vida coletivo das Comunidades Quilombolas de Alcântara.
B. Direitos à alimentação adequada, à habitação adequada, à água, à participação na vida cultural, ao meio ambiente saudável, à liberdade de associação, à proteção da família, à vida digna e ao direito à educação
A Corte recordou o conteúdo desses direitos. O direito à alimentação protege, essencialmente, o acesso das pessoas a alimentos que possibilitem uma nutrição adequada e apta à preservação da saúde. Quanto ao direito à habitação adequada, entendeu que não se resume apenas a ter um abrigo, mas também ao direito de viver com segurança, paz e dignidade. Por sua vez, o direito dos povos indígenas e tribais à participação na vida cultural inclui o direito à identidade cultural, que tutela a liberdade das pessoas, inclusive agindo de forma associada ou comunitária, de se identificarem com uma ou várias sociedades, comunidades ou grupos sociais, de adotarem um modo ou estilo de vida vinculado à cultura a que pertencem e de participar do seu desenvolvimento. Também recordou que todas as pessoas têm direito à educação, em especial ao ensino primário, deve ser obrigatório e acessível gratuitamente a todos. Por fim, reiterou sua jurisprudência em relação ao direito à proteção da família, que implica a obrigação do Estado de adotar ações positivas e negativas para proteger as pessoas contra ingerências arbitrárias ou ilegais em sua família e favorecer o respeito efetivo à vida familiar.
No caso, o Tribunal constatou que o reassentamento das Comunidades Quilombolas de Alcântara para as agrovilas prejudicou a disponibilidade e a acessibilidade dos recursos naturais que as comunidades utilizavam tradicionalmente para sua alimentação. Além disso, constatou que os membros das Comunidades Quilombolas de Alcântara não contaram com serviços e infraestrutura indispensáveis em suas habitações e enfrentaram restrições por parte das autoridades estaduais que impediram a modificação das casas que lhes foram atribuídas e a construção de novas residências nas agrovilas, o que prejudicou a instalação de novas famílias ou resultou na separação das famílias reassentadas. A Corte evidenciou que o Estado falhou em sua obrigação de adotar medidas para preservar as práticas próprias da economia de subsistência das Comunidades Quilombolas de Alcântara, impactando, assim, seu direito à alimentação culturalmente adequada. Ademais, advertiu que o Estado implementou uma série de restrições nas agrovilas que impediram o acesso dos membros das comunidades à vida, às práticas, aos bens e aos serviços culturais, como o acesso a cemitérios, praias, à celebração de festas religiosas, entre outros.
O Tribunal também constatou que as comunidades enfrentam obstáculos de acessibilidade material à educação, visto que nem todas as agrovilas dispõem de escolas e/ou de transporte regular para acessar instituições de ensino em agrovilas próximas.
Em razão do anterior, a Corte declarou que o Estado é responsável pela violação dos direitos à proteção da família, à alimentação adequada, à habitação adequada, à participação na vida cultural e à educação, protegidos pelos artigos 17 e 26 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, e pelo artigo 13 do Protocolo de San Salvador.
C. Princípio da igualdade e não discriminação, direito à igualdade perante a lei e discriminação estrutural
A Corte lembrou que, enquanto a obrigação geral do artigo 1.1 refere-se ao dever do Estado de respeitar e garantir “sem discriminação” os direitos contidos na Convenção Americana, o artigo 24 protege o direito à “igual proteção da lei”. Indicou que toda pessoa em situação de vulnerabilidade tem direito a uma proteção especial, em virtude dos deveres específicos que o Estado deve cumprir para satisfazer as obrigações gerais de respeito e garantia dos direitos humanos. Recordou que o Estado incorre em responsabilidade internacional nos casos em que, havendo discriminação estrutural, não adota medidas específicas em relação à situação particular de vitimização que concretiza a vulnerabilidade de um grupo de pessoas individualizadas. A própria vitimização dessas pessoas demonstra sua particular vulnerabilidade, o que exige uma ação de proteção também específica.
No caso, a Corte advertiu que as Comunidades Quilombolas de Alcântara, e particularmente as comunidades reassentadas em decorrência da criação e instalação do CLA, não tiveram acesso contínuo e suficiente a serviços básicos de alimentação, habitação e educação. Constatou que a falta de acesso ao conteúdo essencial desses direitos, bem como a ausência de medidas positivas por parte do Estado para corrigir essa situação, não é neutra, mas constitui uma das manifestações da discriminação estrutural em que estão imersas as Comunidades Quilombolas no Brasil. Indicou que a omissão estatal em titular as terras, em garantir a proteção da família e o conteúdo mínimo dos direitos à alimentação adequada, à habitação adequada, à educação e à participação na vida cultural nas agrovilas, a partir de 10 de dezembro de 1998, e a posterior ausência de medidas progressivas para assegurar o gozo desses direitos, constituíram atos de discriminação, pois se inserem em um contexto de desigualdades desproporcionais com origens históricas. Isso, considerando que as Comunidades Quilombolas de Alcântara constituem um grupo de especial proteção, por se tratar de uma comunidade tribal formada por pessoas negras com um legado histórico de escravidão e cuja autonomia, modos de subsistência e cultura deveriam ser objeto de medidas especiais para sua salvaguarda. Além disso, ressaltou que a ausência de medidas estatais direcionadas a mitigar e corrigir a precariedade no gozo dos serviços básicos tem especial gravidade, considerando que foram as próprias ações do Estado que impactaram negativamente as formas tradicionais de autoabastecimento e relacionamento dessas comunidades.
Em consequência, declarou a responsabilidade do Estado pela violação dos direitos à igualdade perante a lei e à proibição de discriminar com base na raça e na condição socioeconômica, contidos nos artigos 24 e 1.1 da Convenção Americana, em relação aos direitos à propriedade coletiva, à proteção da família, à alimentação adequada, à habitação adequada, à participação na vida cultural e à educação, estabelecidos nos artigos 17, 21 e 26 da Convenção Americana, bem como no artigo 13 do Protocolo de San Salvador.
III. Reparações
A Corte estabeleceu que sua Sentença constitui, per se, uma forma de reparação e, adicionalmente, ordenou ao Estado, nos prazos fixados na Sentença: (i) adotar ou concluir as ações pertinentes para garantir o direito de propriedade coletiva a todas as comunidades, oferecendo-lhes um título coletivo que reconheça os 78.105 hectares de seu território e adotando as medidas necessárias para delimitar, demarcar e desintruir adequadamente a propriedade; (ii) abster-se de realizar atos que, alheios ao funcionamento do CLA, possam permitir que agentes do próprio Estado ou terceiros, agindo com sua tolerância, possam afetar a existência, valor, uso ou gozo do território mencionado, em detrimento do acordado no Acordo firmado entre as partes; (iii) instalar uma mesa de diálogo permanente em comum acordo com as comunidades; (iv) realizar consultas prévias, livres e informadas; (v) realizar as publicações estabelecidas na sentença; (vi) realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional; e, (vii) pagar os valores fixados na Sentença a título de indenização por danos materiais e imateriais, e pelo reembolso de custas e gastos.
O Juiz Humberto Antonio Sierra Porto e a Juíza Patricia Pérez Goldberg deram a conhecer o seu Voto conjunto parcialmente dissidente. Os Juízes Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e Ricardo C. Pérez Manrique também deram a conhecer seu Voto conjunto parcialmente dissidente. Por sua vez, a Juíza Verónica Gómez deu a conhecer seu Voto parcialmente dissidente.
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A Corte supervisionará o cumprimento integral da Sentença, no exercício de suas atribuições e em cumprimento de seus deveres conforme a Convenção Americana sobre Direitos 8 Humanos, e dará por encerrado o presente caso uma vez que o Estado tenha dado completo cumprimento ao disposto na mesma.
O texto integral da sentença pode ser consultado no seguinte link: CASO COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE ALCÂNTARA VS. BRASIL
* Integrada pelos seguintes juízes e juízas: Nancy Hernández López, Presidenta; Humberto Antonio Sierra Porto, Juiz; Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, Juiz; Ricardo C. Pérez Manrique, Juiz; Verónica Gómez, Juíza; e Patricia Pérez Goldberg, Juíza. Presentes, ademais, o Secretário Pablo Saavedra Alessandri e a Secretária Adjunta Gabriela Pacheco Arias. O Juiz Rodrigo Mudrovitsch, de nacionalidade brasileira, não participou da deliberação e assinatura desta Sentença, de acordo com o disposto nos artigos 19.1 e 19.2 do Regulamento da Corte.