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ARTIGO
Direito ao futuro
Destacado dentre as dez nações mais ricas do mundo, o Brasil também está entre as dez mais desiguais[1], contando com a maioria da população composta por pessoas negras (56%), das quais metade é de mulheres negras (28%)[2]. Esse marcador de raça e de gênero, que o distingue de modo sui generis dentre os ricos, não permite esquecer que a formação do País se deve à negritude escravizada, subjugada para produzir a riqueza da qual não partilha, desde tempos coloniais.
O racismo, a misoginia e as desigualdades socioeconômicas reveladas com a exclusão sistemática dessas pessoas dos espaços decisórios[3] e da tomada de decisões formadoras de políticas públicas impedem ascensão ao mercado de trabalho, ao sistema de justiça, aos serviços de saúde, de educação, moradia, enfim, aos itens básicos para uma vida digna[4].
Tal minimalismo se contrapõe aos superlativos índices de desemprego, baixa remuneração, atividades insalubres, violência doméstica, chefia solitária de famílias em situação de vulnerabilidade e escassez de recursos[5].
De posse dos dados públicos examinados, não é preciso muito esforço para localizar quem está embaixo e atrás na fruição dos bens fundamentais, apontando a primeira população a ser priorizada na edificação de um novo Brasil.
A inserção de mulheres negras nos espaços decisórios da política, em especial, precisa se fazer como medida de justiça para cumprimento da cláusula constitucional de igualdade e, mais que nada, para que a vivência, a experiência, a criatividade e a capacidade de resistência delas possam ser aplicadas para melhorar a vida de todas as pessoas e permitir democracia em abundância.
Vale relembrar que há importantes ações afirmativas em movimento, como a distribuição de recursos financeiros para a campanha política, propaganda eleitoral garantida em todas as faixas da programação no rádio e na televisão, além da recomendação para a adoção das comissões de heteroidentificação pelos partidos políticos, para facilitar ainda mais a participação de mulheres negras no processo eleitoral.
Contudo, os números avançaram muito pouco: de 6% de vereadoras negras, em 2020, passou-se para 7,5%, nas eleições municipais de 2024, sendo que em muitas cidades não há uma única mulher negra em espaço de poder político.
Conferindo essa tendência, pesquisas importantes dão conta que serão necessários séculos para que se possa falar em paridade de gênero e equidade racial na ocupação dos espaços públicos[6]. Mas não há tempo a perder!
Os números pífios são ainda mais perturbadores no aniversário de 137 anos de abolição formal da escravidão, que segue inconclusa diante de violências seculares praticadas contra as mulheres negras, problema multifatorial, que exige respostas complexas, reclamanddo particular atenção no ambiente digital.
A par dessa realidade, redes sociais formadas nas plataformas digitais são uma espécie de praça pública, transformando o modo de interagir, nesse outro modelo comunicacional de que tanto se fala nos últimos anos.
Ao tempo em que servem à amplificação de vozes silenciadas cotidianamente, é fato, também, que a terra sem lei para a qual descambou o mundo digital, se revela propícia à produção de desinformações, à exortação ao ódio e à atuação de milícias digitais a serviço de projetos políticos autoritários e ganhos individuais ilícitos.
Nesse campo repleto de paradoxos, as principais vítimas são as mulheres negras[7], que enfrentam obstáculos estruturais sedimentados, apontando, outra vez, para a prioridade no enfrentamento do grave problema que afeta a saúde da democracia substancial e debilita direitos humanos.
Calha, por isso mesmo, destacar a importância do dever de cuidado com a veiculação de conteúdos no mundo digital, a fim de eliminar riscos identificados quanto à violência política praticada contra meninas e mulheres, antes mesmo do período eleitoral.
As plataformas digitais têm o dever de elaborar e difundir planos de integridade voltados à proteção desse público específico, ainda mais reforçado, no momento, com a inserção do parágrafo único no art. 147 do Código Penal brasileiro, que aumenta a pena para o crime de violência psicológica contra a mulher, se a conduta é praticada com o uso de inteligência artificial ou outro recurso tecnológico que altere a imagem ou som da vítima.
Vale debater os elementos dessa novidade legislativa, não se alheando ao dever de promover vigilância em busca de conteúdos ilícitos nas redes, com adoção de providências imediatas para fazer cessar atos racistas e misóginos, inclusive suspendendo o uso e/ou a monetização de perfis que os pratiquem, quando for o caso, levando informações para apuração de responsabilidade ao Sistema de Justiça.
As condutas ilegais adotadas para alijar a participação das mulheres da vida coletiva, como é ressabido, vão desde ameaças físicas, invasão de páginas ou perfis, hackeamento de contas, divulgação de imagens íntimas e dados pessoais, até fake news. Há também as deepfakes, que são montagens com recriação de voz, imagem e expressões faciais por meio de inteligência artificial, em falseamento bastante crível, de que se ocupam o dispositivo do Código Penal referido e a Resolução nº 23.610/2019 do TSE.
O desenvolvimento de fórmulas algorítmicas alimentando a tecnologia se tornem dia a dia mais refinadas, porque quanto mais usadas, mais se desenvolvem, em ciclos cada vez mais velozes.
Assim, é urgente que as plataformas digitais adotem dispositivos igualmente potentes e velozes para o aprendizado de máquinas, como os algoritmos rastreadores da violência política[8].
Defende-se, portanto, que o desvio no uso da tecnologia seja corrigido com ações práticas e ferramentas digitais capazes de barrar a agressão, a fim de promover a diversidade e proteger a democracia substancial.
Logo, o desenvolvimento e adoção dos algoritmos para rastreamento violência contra as mulheres deve partir das próprias plataformas. De igual modo, faz-se essencial que humanos avaliem os conteúdos removidos, a fim de notificar as autoridades para apuração dos crimes e outros ilícitos civis e eleitorais perpetrados.
Ainda, é primordial que o Sistema de Justiça evolua na criação e investimento em delegacias digitais[9], com agentes especializadas na cadeia de custódia da prova digital, operando de maneira respeitosa na análise dos conteúdos, a fim de garantir proteção às vítimas e responsabilização dos infratores, tudo isso de maneira célere e respeitosa dos princípios constitucionais de transparência, ampla defesa e contraditório[10], em busca de atalhar danos.
Tudo isso deve vir acompanhado de regras e termos de uso acessíveis, objetivando instruir as pessoas usuárias, inclusive mediante curadoria de conteúdos nas redes sociais, garantindo a compreensão do papel das fórmulas e instruções - os algoritmos que as fazem funcionar. Até porque, ao mesmo tempo que se alimentam de dados pessoais para perfilizar e segmentar grupos, facilitando conexões, também possibilitam práticas violentas exatamente em decorrência dessa pulverização, que enfraquece o senso de pertencimento.
Urge enfrentar o cancelamento do futuro, com ações imediatas. A democracia agradece!
[1] WORLD INEQUALITY LAB. World Inequality Report 2022. Disponível em: https://wir2022.wid.world/www-site/uploads/2023/03/D_FINAL_WIL_RIM_RAPPORT_2303.pdf. Acesso em 15 maio 2025.
[2] BRASIL. Ministério de Igualdade Racial. Informe MIR: Monitoramento e avaliação nº 2 – Edição Mulheres Negras. Disponível em: https://www.gov.br/igualdaderacial/pt-br/composicao/secretaria-de-gestao-do-sistema-nacional-de-promocao-da-igualdade-racial/diretoria-de-avaliacao-monitoramento-e-gestao-da-informacao/informativos/informe-edicao-mulheres-negras.pdf. Acesso em: 15 maio 2025.
[3] MALINVERNI, Clarissa; CROPALATO, Mariana; PAULA, Janiele de. Desafios (e ações) para mais mulheres negras em posições de liderança no setor público. Fundação Lemann, 2023. Disponível em: https://fundacaolemann.org.br/noticias/desafios-e-acoes-para-mais-mulheres-negras-em-posicoes-de-lideranca-no-setor-publico/#:~:text=Quando%20mulheres%20negras%20s%C3%A3o%20apartadas,a%20realidade%20diversa%20do%20pa%C3%ADs.. Acesso em 15 maio 2025.
[4] PACTO GLOBAL DA ONU; 99Jobs. Mulheres Negras na Liderança. 2023. Disponível em: https://inquietaria.99jobs.com/lideran%C3%A7a-de-mulheres-negras-ainda-%C3%A9-tabu-nas-organiza%C3%A7%C3%B5es-bf3daf0a9d0f. Acesso em: 15 maio 2025.
[5] SERPA, Verônica. Mulheres negras recebem 53% a menos do que homens brancos, aponta Dieese. Alma Preta Jornalismo, 2025. Disponível em: https://almapreta.com.br/sessao/cotidiano/mulheres-negras-salario-homens-brancos-aponta-dieese/#:~:text=A%20negras%20ganham%2053%2C49,Estat%C3%ADstica%20e%20Geografia%20(IBGE). Acesso em: 15 maio 2025.
[6] INSTITUTO ALZIRAS; OXFAM BRASIL. Desigualdades de Gênero e Raça na Política Brasileira. 2022. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/noticias/estudo-mostra-que-equidade-de-genero-na-politica-brasileira-pode-levar-mais-de-um-seculo/. Acesso em: 15 maio 2025.
[7] BUENO, Samira et al. Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil - 4ª edição – 2023 - Diagramação: Oficina22. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/03/visiveleinvisivel-2023-sumario-executivo.pdf. Acesso em: 15 maio 2025.
[8] MORAES, ALEXANDRE DE; LÔBO, EDILENE. «Manifiesto. Algoritmos de seguimiento de la violencia política en el entorno digital: prevención y cuidado en tiempos de democracia amenazada». Astrolabio: revista internacional de filosofia, 2023, núm. 27, p. 149-50, https://raco.cat/index.php/Astrolabio/article/view/427371.
[9] Conforme proposto in: LÔBO, Edilene; OLIVEIRA, Núbia Franco. Direitos Fundamentais e Inteligência Artificial: reflexões sobre os impactos das decisões automatizadas. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2023, p. 120-121.
[10] BRASIL. Câmara dos Deputados. Violência política visa afastar mulheres dos espaços de poder, afirmam debatedoras. Agência Câmara de Notícias, 2024. Disponível: https://www.camara.leg.br/noticias/1094467-violencia-politica-visa-afastar-mulheres-dos-espacos-de-poder-afirmam-debatedoras/#:~:text=Delegacias%20digitais&text=%22Isso%20aumentaria%20a%20possibilidade%20de,il%C3%ADcito%22%2C%20disse%20a%20ministra. Acesso em: 15 maio 2025.