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Responsabilidade democrática: um dever compartilhado entre o poder público, setor privado e sociedade civil
Na mitologia grega, kairós, o deus do momento certo, representa a oportunidade que é aproveitada antes que ela passe. Kairós era filho de Cronos, esse conhecemos bem, o senhor sobre o tempo cronológico, linear, que nos governa. As poucas representações que existem de kairós o mostram como uma figura com pés alados, um longo cacho na testa e a parte de trás da cabeça calva. Ele é muito rápido e só podemos agarrá-lo no momento certo, pela nuca, quando ele estiver perto de nós. Depois que ele passa, não podemos mais aproveitá-lo. Esse momento geralmente tem a ver com a tomada de responsabilidade, sendo um momento adequado ou favorável para uma ação. Walter Benjamin, no seu tratado “Sobre o Conceito de História”, vislumbra uma visão de história não cronológica, mas de kairós, um momento no tempo em que algo especial acontece e oferece uma chance de luta contra o esquecimento, a perpetuação da injustiça e a ideia de progresso cego e otimista. Uma história de reparação dos inúmeros choques e tragédias na sociedade moderna, que resgata a memória dos vencidos, luta contra a amnésia oficial e resulta num todo utópico costurado por esses fragmentos. Ouso pensar que a distopia atual seja o nosso kairós.
Essa passada pela mitologia busca lançar luz sobre a compreensão da sociedade que partilhamos por milênios. A mitologia grega tem exercido uma grande influência na cultura, nas artes, na democracia e permanece como parte da herança e da linguagem na civilização ocidental. Mas o que restou do Ocidente? Em tempos disruptivos, de guerras, colapso climático, dilaceramento do multilateralismo, fim de valores compartilhados, implosão de democracias, quebra da ordem econômica e geopolítica, e em tempos da era inteligente, precisamos nos perguntar o que queremos como sociedade e se ainda compartilhamos do mesmo caldo cultural e entendimento de mundo.
Interessante pensarmos aqui na questão metafísica do sedentarismo cognitivo coletivo causado pelo mundo digital, criando um outro tipo de amadurecimento atrofiado da nossa inteligência, uma passividade sedentária existencial, não física, como se a vivência humana estivesse sendo reduzida a algo mais banal do que nós desejávamos como humanidade em tempo de precariedade técnica, conforme precisamente descreve o jornalista Bruno Torturra, criador do portal de notícias Mídia Ninja. Questões espirituais, teológicas, epistemológicas – de volta aos gregos - importantes, de transcendência, parecem não ser relevantes nesse novo agir coletivo.
E isso me faz voltar a Kairós e Cromos. Kairós tinha uma ideia metafórica de tempo antagônica à do seu pai. Kairós é tido como o tempo de Deus, Cronos o tempo dos homens, aquele que devora enquanto gera. A transformação tecnológica traz grandes consequências existenciais e a vida, enquanto não formos engolidos pela catástrofe climática e política, segue. E ficam as perguntas: a que Deus servimos? Temos nós, humanidade, ainda chance de determinarmos a jogada? Quem sabe diante de tantas incertezas tenhamos uma chance real de criarmos uma mitologia, ou melhor, um sistema de conhecimento múltiplo, com diferentes maneiras de perceber e explicar o mundo, e achar soluções urgentes para tantos problemas da nossa sociedade, não apenas baseada num universalismo iluminista, mas num mosaico de epistemologias, baseado num pluriverso, conceito extraído da declaração zapatista: “O mundo que queremos é um mundo em que caiba muitos mundos”.
O ponto de partida da minha teoria sobre responsabilidade democrática é o entendimento de democracia como uma forma de vida, onde os cidadãos devem vivenciar no seu dia a dia experiências democráticas positivas e ver os direitos básicos e fundamentais para sua existência garantidos. A democracia representativa não é somente um sistema político e o direito de sufrágio não pode ser o auge da prática democrática. A democracia ocorre em todos os lugares a todo tempo e deve ser declinada, de forma multidimensional, no cotidiano das pessoas. Somente então, nas palavras de Hannah Arendt, elas sentirão a public happiness, a felicidade de ser parte integral e ativa de uma sociedade.
Para falarmos de responsabilidade democrática temos que fazer um exercício de reflexão sobre contrato social e coesão social. A meu ver a democracia nasce, ancorada pela vontade de todos, com o poder constituinte, é parte indelével do Estado Democrático de Direito, como a própria terminologia revela, e é preceito constitucional explícito, que encontra fundamento no art. 1 caput e no Parágrafo único da Constituição Federal. A intenção metalinguística da democracia surge, portanto, com o ato constitutivo e dessa forma ela atravessa nossa existência como um vetor. Dessa coexistência intrínseca e simbiótica entre Estado de direito e democracia emana a responsabilidade democrática. E, portanto, ela vincula e permeia todas as esferas de nossa existência, vinculando o poder público, o setor privado e a sociedade civil.
Esse entendimento de democracia como meta-nível pressupõe participação política. Em outras palavras, a responsabilidade democrática é inerente à cidadania plena e obriga a todos em todas as esferas da nossa existência. Entendo a participação política como parte indelével da responsabilidade democrática de todos os grupos da sociedade na construção de uma sociedade justa e plural. A responsabilidade democrática é um dever indisponível, independente de qual tarefa exercemos. Desta forma, a construção, a manutenção e a inovação da democracia são uma responsabilidade coletiva, que deve pautar todos as ações de todos os membros da sociedade em todos os setores. Essa a minha proposição inicial.
Parece-me, porém, que esta é a questão crucial: saber se a responsabilidade democrática obriga não só a sociedade civil, os cidadãos, mas também o poder público e o setor privado. O entendimento sobre Estado democrático de Direito e sobre sociedade não é algo estático e insuscetível de mudanças. Diante das transformações estruturais do mundo globalizado, o Estado está se tornando cada vez mais primus inter pares, convidando, incentivando a participação do setor privado na tomada de responsabilidade. As pessoas jurídicas voltadas à produção econômica devem, nesse entendimento, assumir em igualdade de condições com o Estado essa responsabilidade.
O conceito de ESG, que reúne as políticas de meio-ambiente, responsabilidade social e governança, propõe uma transformação dos negócios e envolve a construção de um mundo inclusivo, ético e ambientalmente sustentável e que garanta a qualidade de vida para todos, é no meu ponto de vista uma forma de tomada de responsabilidade democrática. Aqui alguns casos concretos para ilustrar minha linha de raciocínio: a responsabilidade subsidiária e extraterritorial em crimes ambientais, como no processo de Brumadinho; a responsabilidade pela cadeia de suprimentos, como no caso da empresa Zara, que plantava algodão em terras de queimada na Amazônia e foi processada na Alemanha com base na Lei da devida diligência na cadeia de suprimento. Com essa legislação, a responsabilidade das empresas alemãs de respeitar os direitos humanos e proteger o meio ambiente em toda cadeia de suprimentos globais se tornou obrigatória. Esses exemplos corroboram, a meu ver, com a minha tese e são respostas adequadas às novas exigências mundiais. A responsabilidade democrática ante o bem-estar público e o meio ambiente é, portanto, uma tarefa conjunta e um tema central numa política pública ciente da sua responsabilidade perante a coletividade.
Estamos falando de responsabilidade democrática como um dever compartilhado e de solidariedade orgânica, como o laço que une os indivíduos numa sociedade, responsável pela coesão social. A coesão social é a base para a convivência em um Estado democraticamente organizado, um fator essencial para o desenvolvimento sustentável do futuro e um pré-requisito importante para uma transformação pacífica da sociedade.
Minha filha, Tessa, disse numa palestra escolar na Inglaterra: “A criatividade e a arte são essenciais para nos diferenciar e nos capacitar em tempos de inteligência artificial.” Uma garota de 16 anos, da primeira geração totalmente tik tok, tem a visão que a muitos falta. E ela não está sozinha. Uma contracultural criativa está em andamento e a volta da inteligência analógica vem pipocando em vários cantos do mundo e reflete um desejo por narrativas mais humanas e conexões tangíveis. Inclusive CEOS de grandes empresas voltaram a estudar filosofia e história. E isso não é uma involução. Num mundo automatizado, quem quer despontar precisa voltar a pensar. O escritor Salman Rushdie afirma, em outras palavras: o que diferencia o homem do resto das suas espécies (e aqui incluo a Inteligência Artificial) é sua capacidade de contar histórias, de confabular. Já o artista alemão Josef Beuys pleiteava que todo indivíduo não só poderia como teria a obrigação, com a sua criatividade, de participar na formação da plástica social. Ou seja, no seu entendimento, a responsabilidade democrática é tarefa de todos e está entrelaçada à criatividade e à participação política numa democracia.
Estamos deficitários como sociedade, na beira do abismo, precisamos reagir e criar em conjunto uma visão promissora de futuro, e essa talvez seja a nossa última chance. Pode parecer fatalista, mas é disso que precisamos nesse limiar: de uma mudança de paradigma. Há urgência em resgatar acordes mais humanistas e redefinir o poder epistemológico das big techs, redirecionando-o para atender os autênticos interesses dos cidadãos, como bem coloca o Ministro Ricardo Lewandowski. Só podemos ganhar enquanto sociedade, se entendermos que a responsabilidade democrática é um dever compartilhado para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária nos termos da nossa Constituição cidadã.
Texto publicado em referência ao Dia Internacional da Democracia, celebrado em 15 de setembro.