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ARTIGO
MEDIDAS DE CLEMÊNCIA E CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO
As medidas de clemência previstas no ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam, a anistia, a graça e o indulto, representam um conjunto restrito de instrumentos voltados à mitigação ou extinção de sanções estatais em situações excepcionais. Embora distintas quanto à forma de concessão e aos efeitos produzidos, todas compartilham a condição de medidas extraordinárias e sua utilização deve ser compatível com os princípios que regem a ordem constitucional vigente.
Essa exigência de compatibilidade insere-se no marco do Estado Constitucional, modelo estatal resultante de um processo histórico de amadurecimento institucional e normativo, no qual o exercício do poder não se limita à mera observância da legalidade formal. Ele se encontra intrinsecamente vinculado à centralidade dos direitos fundamentais, à supremacia da Constituição e à força normativa dos princípios constitucionais. Trata-se de um paradigma que impõe aos agentes políticos não apenas o cumprimento das regras postas, mas também a conformidade substancial de suas decisões com os valores que estruturam a ordem democrática.
Nesse contexto, toda manifestação de poder estatal, inclusive aquela exercida por maioria parlamentar, deve ser orientada à realização do interesse público, à proteção da democracia e à preservação da integridade do pacto constitucional, de modo que a adoção de medidas de clemência, como expressão do exercício do poder estatal, também se submete à exigência de plena compatibilidade constitucional.
A presente reflexão volta-se especificamente ao instituto da anistia legislativa. Prevista no artigo 48, inciso VIII, da Constituição Federal, como uma prerrogativa do Poder Legislativo, a anistia, como toda medida legislativa, está submetida a um regime de controle e limites materiais. Trata-se de um instituto de aplicação excepcional, historicamente associado a momentos de transição ou superação de rupturas institucionais graves, como forma de recompor a coesão social e pacificar contextos de conflito já encerrados.
A proposta de anistia atualmente em discussão no Congresso Nacional, composta por pelo menos oito projetos de lei apresentados por diferentes parlamentares, todos apensados ao Projeto de Lei nº 2858/20221[1], visa conceder anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023, que culminaram na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, bem como a participantes de outras manifestações anteriores classificadas como antidemocráticas. Tais projetos, contudo, merecem detida análise a partir dos marcos constitucionais que orientam a atuação dos poderes públicos.
Seus defensores sustentam que a concessão da anistia, nesse caso, seria uma medida necessária à pacificação nacional, capaz de pôr fim à polarização política e social intensificada nos últimos anos. Argumenta-se, ainda, que muitos dos anistiados teriam apenas exercido seu direito à liberdade de expressão e de reunião, e que eventuais sanções aplicadas ou em curso estariam marcadas por excessos punitivos, desproporcionais à gravidade de sua conduta individual. Por tais fundamentos, a anistia surgiria como um gesto de reconciliação institucional e de respeito aos direitos civis dos envolvidos.
Embora apoiadas no fundamento de pacificação nacional, essas propostas buscam, essencialmente, neutralizar a responsabilização penal de pessoas envolvidas em atos antidemocráticos. Esses indivíduos são investigados, processados e condenados por condutas que atentaram contra as instituições democráticas, a estabilidade institucional entre os poderes e, por conseguinte, a própria Constituição. Nos termos dos projetos apresentados, a anistia poderia abranger não apenas os executores materiais dos atos, mas também seus articuladores, financiadores e incitadores, esvaziando, assim, a finalidade histórica e constitucional do instituto.
Os argumentos de apoio à medida, portanto, não resistem à análise da natureza e da gravidade dos atos praticados. Não se está diante de manifestações amparadas pela liberdade de expressão, mas de investidas deliberadas contra a legitimidade do processo eleitoral, a autoridade dos Poderes constituídos e a integridade das instituições democráticas.
A utilização da anistia fora dos marcos constitucionais que a orientam compromete sua legitimidade e pode representar autêntico desvio de finalidade, sobretudo quando empregada para impedir a apuração e punição de atos que afrontaram diretamente o Estado Democrático. Transformar a anistia em instrumento de proteção política significa inverter sua lógica histórica e esvaziar seu papel conciliador, convertendo-a em mecanismo de erosão institucional. A verdadeira pacificação não se constrói sobre a negação da justiça, mas sim sobre a responsabilização daqueles que atentaram contra os fundamentos da República.
Assim, a tentativa de incluir entre os beneficiários da anistia lideranças públicas diretamente implicadas na articulação aos atos golpistas revela não um gesto de reconciliação, mas uma estratégia política para interromper o curso natural de responsabilização institucional. Anistiar um agente político acusado de atentar contra o próprio regime que o legitimou é, em última instância, negar o compromisso republicano de que ninguém está acima do ordenamento jurídico, sem descuidar que a todos estes socorrem as garantias de ampla defesa, contraditório e devido processo legal.
Esse cenário evoca, ainda que por analogia, o paradoxo da tolerância formulado por Karl Popper em A Sociedade Aberta e seus Inimigos[2], segundo o qual uma sociedade democrática não pode tolerar ilimitadamente os intolerantes, sob pena de comprometer sua própria existência. A pertinência jurídica dessa advertência torna-se evidente diante de propostas que, sob a aparência de legalidade, visam institucionalizar a impunidade e corroer os fundamentos do Estado Constitucional de Direito.
Da mesma forma, advertiu Karl Loewenstein[3] que “a democracia foi incapaz de proibir aos inimigos de sua própria existência o uso das instrumentalidades democráticas”, permitindo que partidos e movimentos hostis à ordem constitucional se valessem de direitos e garantias destinados à sua preservação para miná-la por dentro, a exemplo das medidas de clemência. Para o autor, esse “formalismo exagerado do Estado de Direito” representa um erro grave, pois ignora que “as constituições precisam ser enrijecidas e endurecidas quando confrontadas por movimentos que visam sua destruição”. A concessão de anistia a agentes que atentaram contra as instituições democráticas repete, nos nossos dias, os mesmos riscos que Loewenstein identificou como assumidos na República de Weimar, ou seja, uma tolerância jurídica que, em vez de proteger a democracia, põe-na em grave situação de risco.
Não se ignora que, historicamente, a anistia desempenhou, em circunstâncias específicas e com as devidas ressalvas, um papel relevante na restauração institucional e na superação de traumas coletivos. Contudo, o uso atual pretendido inverte essa lógica. Ao invés de consolidar a transição para a democracia, ela se apresenta como barreira à sua plena afirmação, favorecendo juridicamente aqueles que buscaram justamente impedir seu funcionamento.
Trata-se, portanto, de uma anistia que rompe com os fundamentos do constitucionalismo democrático e com a legitimidade do instituto, colocando-o a serviço do retrocesso institucional e da desdemocratização[4]. Por essas razões, a anistia proposta não encontra amparo jurídico legítimo e colide com o núcleo essencial do Estado Constitucional. Seu verdadeiro propósito não é restaurar a harmonia social, mas interromper processos de responsabilização criminal, em descompasso com a necessária preservação da integridade democrática, imposta pelo art. 23, I, da Constituição e a que se ocupa do Título XII da Parte Especial do Código Penal Brasileiro.
Portanto, conceder anistia a quem atentou contra a democracia representa não um gesto de pacificação, mas uma negação da justiça. Em vez de promover reconciliação, essa medida consolida a erosão das instituições e enfraquece os alicerces do sistema constitucional vigente. É precisamente nesse momento que se exige o compromisso intransigente com a Constituição de 1988, com a memória coletiva e com a responsabilidade histórica que sustentam a democracia não apenas como forma de governo, mas como projeto de sociedade fundado na proteção dos direitos fundamentais, na responsabilização por violações institucionais, na preservação das instituições e na defesa contínua da integridade da ordem democrática.
[1]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2339647&fichaAmigavel=nao
[2] POPPER, Karl R.; AMADO, Milton (trad.). A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998.
[3] LOEWENSTEIN, Karl. Democracia Militante e Direitos Fundamentais, I. The American Political Science Review, v. 31, n. 3, p. 417-432, 1937.
[4] TILLY, Charles. Democracy. Cambridge University Press, 2007.