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ARTIGO
Democracia na Era da Inteligência Artificial: Persuasão algorítmica x Autonomia Cidadã
Joelson Dias, advogado e sócio fundador do IDECON - Instituto de Estudos Jurídicos e Diálogos Constitucionais; Lara Magalhães, mestranda em Direito Algorítmico e Governança de Dados pela Université Côte d’Azur e Sarah Campos, Procuradora-Geral do Município de Contagem e Membro da Comissão de Jurimetria do Observatório da Democracia da AGU.
A história da democracia está profundamente ligada ao poder da palavra e à capacidade de persuadir. Na pólis grega, conforme analisa Hannah Arendt, a deliberação pública ocorria pela força do discurso, e não pela coerção. Aristóteles já entendia a retórica como meio legítimo de condução do convencimento.
Ao longo do tempo, discursos como o de Abraham Lincoln, em Gettysburg, e o de Martin Luther King Jr., em Washington, demonstraram o potencial da oratória para afirmar valores como igualdade e justiça. Contudo, a persuasão também assumiu formas destrutivas, como nos discursos de Adolf Hitler, que utilizaram a emoção como instrumento de manipulação social e legitimação da violência. A história revela, assim, que a persuasão pode fortalecer o ideal democrático ou degradá-lo.
Durante a era dos meios tradicionais de comunicação, como jornais, rádio e televisão, a persuasão operava em lógica unidirecional. A circulação de informações dependia de intermediários reconhecidos e submetidos a algum grau de escrutínio ético e jurídico. Mesmo com limitações, havia maior visibilidade das fontes e possibilidade de responsabilização pública. A chegada da internet e das redes sociais, contudo, alterou esse cenário. A esfera pública digital tornou-se descentralizada, veloz e guiada por mecanismos de engajamento. A comunicação política passou a ser contínua, personalizada e orientada por algoritmos que hierarquizam conteúdos conforme a capacidade de gerar reações, e não segundo critérios de relevância pública.
Nesse ambiente, a persuasão deixou de atuar apenas sobre coletivos amplos e passou a alcançar indivíduos com base em seus dados comportamentais. A economia da atenção transformou emoções como medo, indignação e euforia em instrumentos de captura algorítmica. Renée DiResta denomina esse fenômeno como produção de realidades sob medida, nas quais cada usuário recebe conteúdos que reforçam suas crenças preexistentes, reduzindo a exposição ao contraditório. A consequência é a fragmentação do espaço público em bolhas informacionais e a erosão de um campo comum para o debate democrático.
Os processos eleitorais tornaram-se especialmente vulneráveis a essas dinâmicas. A influência digital não é mais hipótese, mas realidade documentada. Em 2024, o Tribunal Constitucional da Romênia anulou o primeiro turno das eleições presidenciais após comprovar uma operação estrangeira baseada em contas falsas, impulsionamento algorítmico e uso estratégico de influenciadores digitais. Em 2025, nas eleições municipais de Buenos Aires, circulou um vídeo falso, gerado por inteligência artificial, atribuído ao ex-presidente Mauricio Macri, com potencial de interferir na decisão eleitoral. O episódio exigiu intervenção judicial imediata para retirada do conteúdo. Esses casos revelam como a IA generativa potencializa a manipulação informacional ao criar narrativas sintéticas com alto grau de verossimilhança.
Além disso, a formação da vontade política pode ser afetada por sistemas treinados com dados enviesados que reproduzem desigualdades históricas. Cathy O’Neil alerta que algoritmos opacos podem atuar como “armas de destruição matemática”, influenciando decisões com base em padrões discriminatórios. A persuasão algorítmica, portanto, não é neutra: ela reflete interesses de quem controla os fluxos informacionais e os critérios de recomendação.
Diante desse cenário, torna-se essencial refletir sobre a autonomia do eleitor na era digital. Se as preferências são continuamente moldadas por sistemas que operam sem transparência e com capacidade de prever comportamentos, a liberdade de escolha pode ser reduzida a uma ilusão. Como observam Agrawal, Gans e Goldfarb, inovações disruptivas exigem reconfigurações institucionais profundas. A democracia, para se manter legítima, precisa adaptar-se a uma realidade na qual a deliberação pública é mediada por algoritmos que operam com velocidade superior à capacidade regulatória dos Estados.
A inteligência artificial pode ser utilizada para fortalecer a democracia, desde que submetida a princípios de transparência, auditabilidade e responsabilidade. Sistemas de verificação automatizada, rotulagem de conteúdos sintéticos e fiscalização de publicidade política algorítmica podem proteger o eleitor. Ao mesmo tempo, é necessário investir em educação midiática, governança ética da IA e proteção de direitos fundamentais.
O Dia da Democracia convida à reflexão sobre o poder da persuasão em um mundo em que a palavra continua central, mas agora é ampliada por máquinas capazes de prever e influenciar comportamentos. A defesa da democracia na era algorítmica exige reconhecer que a construção da vontade coletiva depende de condições informacionais justas, pluralistas e auditáveis. Preservar a autonomia cidadã diante da inteligência artificial é preservar a própria essência da democracia.