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ARTIGO
A (significativa) relevância do sistema de justiça na consolidação da democracia e na proteção das instituições
Os seres humanos, em sua essência, são vocacionados para a sociabilidade, e, justamente por isso, precisam desenvolver uma série de habilidades para se relacionarem com o mundo que os cerca. Normalmente, a vida social é harmônica, disposta de modo ordenado, onde seus sujeitos se comportam pacificamente, limitando sua própria liberdade para respeitar a liberdade dos demais que convivem em sociedade[1].
A sociabilidade é uma propensão do homem para viver junto com os outros e comunicar-se com eles, torná-los participantes das próprias experiências e dos próprios desejos, ou seja, conviver com eles as mesmas emoções e os mesmos bens[2].
No entanto, em qualquer tipo de sociedade, assim como há situações de solidariedade, as relações intersubjetivas também são marcadas por dissentimentos de naturezas distintas (econômicas, emocionais, familiares, ideológicas, sociais, políticas e profissionais), divergências estas que podem definir a origem de um dos fenômenos mais comuns e recorrentes na vida social: o conflito.
Neste sentido, a sociedade contemporânea de massa[3] gera conflitos, que, no maior das vezes, resultam em litígios judiciais numa velocidade exponencialmente superior à capacidade de o Poder Judiciário solucioná-los, e, ademais, há dificuldades intrínsecas ao devido processo legal[4] para lidar com as diversas especificidades de cada litígio judicial.
Atualmente, a sociedade brasileira, com uma população que ultrapassa os 200 milhões de habitantes, sofre, naturalmente, com um sem-número de conflitos intersubjetivos das mais variadas origens, levando milhares de cidadãos brasileiros a transformarem suas divergências em litígios judiciais, na expectativa de terem seus direitos definitivamente reconhecidos pelo Poder Judiciário.
Em razão disso, o contencioso judicial nacional, cada vez mais, é visto, metaforicamente, como um gigante que é retroalimentado pelas novas demandas que surgem, dia a dia, em virtude de uma cultura de litigiosidade arraigada na conservadora sociedade brasileira.
A cultura de um povo, como se sabe, consiste no seu conjunto de crenças e hábitos. A “cultura da litigância judicial” faz parte da cultura do povo brasileiro e diz respeito à forma com a qual se lida com os conflitos interpessoais, configurando, pois, uma ideia presente no inconsciente da população brasileira de que apenas o Poder Judiciário teria aptidão e competência para resolver, definitivamente, os litígios advindos da vida em sociedade.
Nesse cenário complexo, o sistema de Justiça desempenha um papel essencial na consolidação da democracia e na proteção das instituições, ao garantir o respeito ao Estado Democrático de Direito, e, por conseguinte, às normas constitucionais, ao resguardar os direitos fundamentais e ao resolver os conflitos judiciais, servindo, assim, como ponto de equilíbrio entre os poderes constituídos e a estabilidade institucional. Vale dizer: a autonomia e a imparcialidade do sistema de Justiça são pilares que sustentam a democracia, funcionando como instância de contenção de abusos de poder e de proteção das liberdades públicas, garantindo, ao fim e ao cabo, que o direito prevaleça sobre a força e o arbítrio.
O formato das instituições destinadas a solucionarem[5] os conflitos jurídicos e a maneira como estão estruturadas são fatores institucionais[6] que interferem – positiva ou negativamente – na mitigação das incertezas da interação humana. Não por acaso, o Direito se constitui – desde suas origens – como instrumento de pacificação social e de garantia do indivíduo em sua trajetória existencial, razão pela qual a prestação jurisdicional e as diversas estruturas de acesso à justiça – jurisdicionais ou não – que a orbitam não constituem um fim em si mesmo, mas sim ferramentas em prol de uma sociedade justa, livre e pacífica.
Enfim, a relevância do sistema de justiça também se expressa em sua capacidade de adaptação a contextos de crise, como nos momentos de instabilidade política ou de questionamento das regras democráticas. Ao reafirmar os limites legais da atuação estatal e a responsabilização de agentes públicos e privados, o sistema de justiça contribui para a proteção das instituições e para a continuidade democrática.
Vive-se, pois, um momento crucial para o aprimoramento do sistema de justiça brasileiro, especialmente num panorama de massificação de litígios, de automação crescente de atividades jurídicas e da necessidade de criar inteligência estratégica, que são desafiadoras e acarretam a necessidade premente de reavaliar a sua atuação, de modo a permitir maior eficiência e antecipação estratégica em temas judiciais relevantes.
Bem por isso, o sistema de justiça brasileiro pode ser compreendido como um pilar estruturante da democracia, cuja legitimidade depende não apenas de sua atuação técnica, mas também de sua independência, transparência e compromisso com os valores constitucionais.
No entanto, não se pode incorrer na ingenuidade de imputar a apenas uma variável todos os problemas do sistema de justiça brasileiro.
O problema, portanto, é multifatorial e interdisciplinar, não se confinando apenas nas fronteiras do Direito, espraiando-se por outras searas, valores e interesses que não podem ser desconsiderados. A sua definitiva solução é extremamente difícil, recomendando-se uma significativa mudança cultural dos atores do sistema de justiça, na busca de respeito aos precedentes judiciais obrigatórios, ao cumprimento das decisões judiciais e, enfim, à efetiva utilização dos meios adequados para a resolução das controvérsias trazidas ao exame do Poder Judiciário brasileiro.
Caso alcancemos essa desejada maturidade organizacional em relação ao aprimoramento do sistema de justiça brasileiro, certamente, lograremos êxito na consolidação consistente da democracia e, por consectário lógico, na eficiente proteção das instituições brasileiras.
[1] FILHO, Petrônio Calmon. O conflito e os meios de sua solução. Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. DIDIER JR, Fredie; JORDÃO, Eduardo Ferreira (org).
Salvador: JusPodivm, 2008, p. 825-840.
[2] MONDIN, Battista, trad. de R. Leal Ferreira e M.A.S Ferraria, O Homem, quem é ele? Elementos de Antropologia Filosófica. São Paulo: Paulus, 1980, p. 159.
[3] Conforme Norberto Bobbio: “Sob o ponto de vista descritivo, a sociedade de massa pode ser definida como uma sociedade em que a grande maioria da população se acha envolvida, seguindo modelos de comportamento generalizados, na produção em larga escala, na distribuição e no consumo dos bens e serviços, tomando igualmente parte na vida política, mediante padrões generalizados de participação, e na vida cultural, através do uso dos meios de comunicação de massa. A sociedade de massa surge num estágio avançado do processo de modernização: quer quanto ao desenvolvimento econômico, com a concentração da indústria na produção de bens de massa e o emergir de um setor terciário cada vez mais imponente; quer quanto à urbanização, com a concentração da maior parte da população e das instituições e atividades sociais mais importantes nas grandes cidades e nas megalópoles; quer quanto à burocratização, com o predomínio da racionalidade formal sobre a substancial e com a progressiva redução das margens da iniciativa individual”(BOBBIO, Norberto. MATTEUCI, Nicola. PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 11ª. Edição. Brasília: UNB, 1998. p. 1211).
[4] FULLER, Lon. The Forms and Limits of Adjudication, 92 Harvard Law Review L. Rev. 353. 1978.
[5] LEDERACH, Jean Paul. Conflict Transformation. Beyond Intracratability. Conflict Research Consortium, University of Colorado, Boulder. Disponível em <https://www.beyondintractability.org/essay/transformation>. Acesso em: 05.05.2025.
[6] NORTH, Douglas. Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico, São Paulo: Três Estrelas, 2018.
Artur Orlando Lins
Procurador Federal da AGU, em colaboração com o Observatório da Democracia da AGU.