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A democracia e a fundamentação das decisões judiciais sob a ótica do processo civil contemporâneo
O Brasil é uma democracia constitucional, que necessita de um Poder Judiciário independente, cuja atuação seja pautada na imparcialidade, na técnica e comprometida com os princípios do Estado Democrático de Direito. O Poder Judiciário brasileiro constitui-se numa relevante instituição da República, vinculada às normas constitucionais, que tem como uma de suas funções precípuas justamente impor limites, não apenas às autoridades investidas, como também à maioria da população.
O processo civil contemporâneo somente pode ser satisfatoriamente compreendido quando atendidas as exigências que são impostas pelo conceito de “Estado Constitucional”, razão pela qual se afirma que a promulgação do Código de Processo Civil brasileiro de 2015 adveio, especialmente, da necessidade de se adequá-lo às normas presentes na Constituição Federal de 1988.
Realmente, o CPC/2015 inseriu-se no contexto do Estado Democrático de Direito, na medida em que encampou suas características, exigindo, de um lado, a observância à legalidade, à isonomia, à segurança jurídica e à confiança legítima, inerentes ao Estado de Direito, de onde se extrai a boa-fé objetiva, relacionada com a honestidade ou lealdade, que deve nortear o comportamento de todos os sujeitos processuais, colaborando para a decisão final de mérito, assegurando, por outro lado, a legitimidade, a liberdade e a participação, fundamentos do Estado democrático.
Neste cenário, CPC/2015 consagrou a fundamentação das decisões judiciais como elemento essencial ao modelo democrático. Este breve ensaio pretende reforçar a evidente compatibilização entre a exigência de fundamentação das decisões judiciais, prevista no artigo 489, §1º do CPC/2015, com os princípios democráticos, destacando os avanços normativos, os limites práticos de aplicação e os desafios estruturais do Poder Judiciário brasileiro.
O dever de fundamentar, adequadamente, as decisões judiciais, erigido à garantia constitucional no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988, representa um pilar do Estado Democrático de Direito, na medida em que funciona, a um só tempo, como um mecanismo de controle e de legitimação da atividade jurisdictional. A um, porque a fundamentação garante a transparência do processo decisório, ao permitir que as partes, os juízes e os tribunais e, de resto, a própria sociedade, compreendam aos motivos que levaram o julgador a chegar à determinada conclusão. A dois, porque a fundamentação funciona como um mecanismo de controle da decisão judicial, permitindo-se avaliar se o juiz aplicou corretamente a lei, interpretou adequadamente os fatos e as provas, e, enfim, se sua decisão não foi arbitrária.
Na lição de Michele Taruffo, o dever de fundamentação das decisões judiciais deve ser visto como uma garantia de controle democrático da Justiça, na medida em que os pronunciamentos judiciais são proferidos, em última análise, em nome do povo[1]. Além de uma função endoprocessual, dirigida às partes, aos advogados e aos órgãos de apreciação superior, a motivação possui uma função extraprocessual, dirigida à opinião pública.
Deste modo, o dever de fundamentação das decisões judiciais é mais do que uma exigência procedimental, pois se trata de um verdadeiro instrumento de controle democrático do Poder Judiciário. No entanto, sua eficácia depende não apenas da norma, mas da atuação institucional concreta dos magistrados e da cultura jurídica que os cerca.
As decisões judiciais não só resolvem conflitos entre as partes, pois, no maior das vezes, também criam incentivos e desincentivos que podem moldar, de modo significativo, comportamentos econômicos e sociais, para além das partes do processo. Realmente, inúmeras decisões judiciais, oriundas tanto dos juízes de primeiro grau, como de tribunais ordinários e dos superiores, que, à primeira vista, parecem envolver, apenas e tão-somente, meras questiúnculas legais, carregam consigo profundas implicações sociais e econômicas, que repercutem, demasiadamente, na realidade social.
Em razão disso, não se tolera mais pensar o Direito como um sistema hermético e exclusivamente dogmático, que não permite a interlocução com outras áreas do conhecimento, já que, diuturnamente, vislumbram-se contribuições das ciências comportamentais, a exemplo da economia, da neurociência e da psicologia, no processo de construção e de aplicação das mais diversas normas jurídicas.
Pensar de maneira interdisciplinar, no atual cenário jurídico brasileiro, é imprescindível ao profissional do direito. A leitura do comportamento e da conduta humanos, a partir da compreensão de elementos das ciências humanas afins, pode auxiliar os atores do cenário jurídico a buscarem uma atuação mais eficiente, seja para prevenir os conflitos, seja para resolvê-los definitivamente.
Como se sabe, as decisões judiciais resultam de uma atividade cognitiva complexa, caracterizada por inúmeras escolhas entre diferentes alternativas concorrentes, servindo o Direito para estabelecer critérios dogmáticos que poderão, em tese, guiar tais escolhas, fornecendo uma solução mais consentânea com a realidade. Sendo assim, a motivação da decisão não pode ser meramente teórica, pois deve demonstrar uma análise pragmática que conecte a aplicação do direito aos seus impactos nas realidades social, econômica e política.
Neste sentido, o texto do art. 20 da Lei de Introdução às normas do direito brasileiro (LINDB) impõe a consideração das possíveis alternativas. Isso reflete a ideia de que a decisão deve ser o resultado de um processo reflexivo que pondere possíveis alternativas decisórias e seus potenciais impactos. Tal exigência de explicitar a análise das consequências práticas na fundamentação decisória transforma o dever de motivar. A consideração das consequências práticas passa a ser um critério para a aferição da justiça e da efetividade da decisão. Não basta que a decisão esteja formalmente correta; ela deve demonstrar que seus efeitos foram pensados e justificados, especialmente quando baseada em conceitos abertos.
Tal correlação também se manifesta na busca por maior estabilidade, previsibilidade e segurança jurídica na tomada de decisões. Ao obrigar o julgador a explicitar a análise consequencial, a regra constante no parágrafo único do art. 20 da LINDB, sem dúvida, reduz o espaço para decisões surpreendentes ou arbitrárias baseadas unicamente em interpretações subjetivas de normas abstratas.
Bem por isso, o CPC/2015, ao fortalecer a exigência de fundamentação, buscou alinhar o processo civil aos ideais de uma democracia substancial. Contudo, a distância entre a norma e a prática ainda é significativa. A mudança cultural no Poder Judiciário e a valorização da argumentação jurídico-pragmática crítica são caminhos indispensáveis para a consolidação do processo como espaço de cidadania e não apenas de formalismo técnico.
Em conclusão, a fundamentação judicial, como instrumento de controle democrático e efetividade jurisdicional, não se limita ao cumprimento de uma formalidade processual, mas representa um elo essencial entre o Poder Judiciário e a sociedade. Para que a promessa do CPC/2015 se concretize, é necessário que o sistema judicial ultrapasse letra “fria” da lei e cultive uma cultura institucional voltada à reflexão crítica, ao compromisso com a realidade econômico-social e à promoção da justiça substancial.
[1]TARUFFO, Michele. La motivación de la sentencia civil. Tradução Lorenzo Córdova Vianello. México: Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, 2006, p. 355-356.