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A CORRUPÇÃO COMO FENÔMENO PLURIOFENSIVO: Impacto sobre os direitos fundamentais e a democracia no marco do dia internacional contra a corrupção
No dia 9 de dezembro celebra-se o Dia Internacional contra a Corrupção, instituído pela Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (CNUCC)[1] por ter sido essa a data em que, em 2003, o tratado foi aberto para assinatura em Mérida, no México[2]. Considerada o primeiro instrumento global anticorrupção com força jurídica vinculante, a Convenção reuniu países de todo o mundo em torno de um conjunto comum de normas e mecanismos de prevenção, detecção, repressão e cooperação internacional. Esse marco inaugurou um padrão internacional de integridade, reafirmando que o enfrentamento da corrupção é um esforço global e permanente.
Embora a CNUCC pareça distante do cotidiano, seus efeitos estão presentes em temas que afetam diretamente a vida de qualquer pessoa, como a precariedade de serviços públicos essenciais, a insuficiência de investimentos em saúde e educação, a degradação de infraestruturas urbanas e rodoviárias, a morosidade na execução de políticas sociais. A corrupção desvia recursos, distorce prioridades e reduz a capacidade do Estado de entregar serviços públicos essenciais. Por isso, a data é emblemática não apenas no plano internacional, mas no dia a dia de cada cidadão.
O Brasil aderiu à Convenção desde a sua abertura e incorporou o tratado ao ordenamento pelo Decreto nº 5.687/2006, assumindo compromissos de prevenção, repressão, cooperação internacional e fortalecimento das políticas de integridade.
No preâmbulo da CNUCC, Kofi Annan, então Secretário-Geral das Nações Unidas, descreveu a corrupção como uma “praga insidiosa” capaz de corroer a própria democracia e o Estado de Direito, produzindo efeitos diretos na violação de direitos humanos.
A compreensão mais ampla da corrupção, que ultrapassa o ato clássico de pagamento de propinas, é essencial para entender seus impactos simultâneos sobre direitos fundamentais, compreendidos como a expressão, no plano constitucional, do conteúdo normativo dos direitos humanos, traduzindo a positivação estatal das exigências universais de dignidade e liberdade inerentes à pessoa humana, e sobre o próprio funcionamento da democracia.
Nos termos delineados pela CNUCC, evidencia-se que a corrupção não se limita às figuras tradicionais previstas no Código Penal brasileiro, como a corrupção ativa e passiva (artigos 317 e 333). Trata-se de um fenômeno pluriofensivo que abarca práticas como peculato, malversação, abuso de funções, tráfico de influências, lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito e obstrução da justiça, condutas que simultaneamente atingem diferentes bens jurídicos e desestruturam o funcionamento regular do Estado.
A discussão conceitual sobre corrupção, no âmbito jurídico-penal, costuma partir da teoria da agência, conforme desenvolvido por Jiménez com base nos estudos de Susan Rose-Ackerman e Robert Klitgaard, segundo a qual a relação entre principal (a sociedade) e agente (governantes e gestores) envolve riscos permanentes de desvio de finalidade[3].
É nesse contexto que autores como o penalista espanhol Nicolás Rodríguez-García destacam que não há uma definição penal fechada de corrupção. O termo passou a designar diversas formas de abuso de mandato na relação principal-agente, orientadas ao benefício próprio ou de terceiros e em desvio do interesse geral, distorcendo o funcionamento regular da Administração Pública[4].
Na mesma linha, Ignacio Berdugo e Fabián Caparrós definem a corrupção como o uso desviado do poder para fins particulares. Segundo eles, trata-se de um fenômeno tão antigo quanto o próprio poder, que se ampliou tanto em modalidades quanto em sujeitos envolvidos e bens jurídicos atingidos. Essa ampliação reflete precisamente a complexidade das relações de agência e os múltiplos pontos de vulnerabilidade institucional que elas comportam[5].
Daí decorre sua natureza estrutural, na medida em que a corrupção não é um ato isolado, mas parte de um sistema que combina assimetria de poder, fragilidade institucional e incentivos distorcidos. E é justamente esse caráter sistêmico que explica seus efeitos sobre direitos fundamentais e sobre a democracia.
No contexto do Estado Social, quando recursos públicos deixam de ser aplicados em educação, saúde, cultura, segurança e políticas de inclusão, quem sofre são principalmente os grupos mais vulneráveis. A corrupção acaba por aprofundar desigualdades e comprometer a efetividade de direitos sociais que dão substância ao próprio ideal democrático.
Essa dimensão humana é ressaltada pelo Ministro Luís Roberto Barroso, ao afirmar em seu voto na ADI 5874:
“(...) há uma crença que considero equivocada, a propósito da corrupção; e penso que precisamos requalificar isso nesse momento brasileiro. A corrupção é um crime violento, praticado por gente perigosa, é um equívoco supor que não seja assim. Corrupção mata! Mata na fila do SUS; mata na falta de leitos; mata na falta de medicamentos; mata nas estradas que não têm manutenção adequada. A corrupção destrói vidas que não são educadas adequadamente, em razão da ausência de escolas, deficiências de estruturas e equipamentos”[6].
Ao mesmo tempo, a corrupção atinge a democracia naquilo que ela possui de mais essencial: a igualdade política, a representação legítima, o controle institucional e a confiança pública.
Quando decisões estatais passam a responder a interesses particulares, instala-se a chamada captura institucional. Ela se manifesta na manipulação de licitações, no direcionamento de políticas públicas, na apropriação de órgãos reguladores e no desvio de prioridades governamentais.
Com isso, enfraquece-se a capacidade dos mecanismos de controle, como auditorias, corregedorias, tribunais de contas, Ministério Público, imprensa e a própria sociedade civil, de coibir desvios e garantir a necessária transparência. Surgem, assim, ambientes em que a fiscalização se torna limitada e pouco efetiva, incompatíveis com as exigências do Estado Democrático de Direito.
Essa dinâmica repercute diretamente na confiança pública, elemento indispensável ao funcionamento das instituições democráticas. Em contextos de maior disseminação da corrupção, cresce a percepção de injustiça, reduz-se a disposição para a cooperação entre cidadãos, políticas públicas enfrentam maior resistência e a legitimidade institucional se enfraquece. Sem confiança, a democracia perde sua capacidade de mobilizar a sociedade e de produzir resultados efetivos.
A corrupção, ao deteriorar serviços públicos e excluir parcelas da população do exercício pleno de seus direitos, converte-se em uma violação institucionalizada da dignidade humana. Não se trata apenas de prejuízo financeiro ou mau funcionamento administrativo, mas de um ataque estrutural à cidadania, que enfraquece a participação igualitária e perpetua desigualdades.
Assim, corrupção, direitos fundamentais e democracia são temas que estão intrinsecamente relacionados, de modo que o enfraquecimento de um implica o enfraquecimento dos outros. Reconhecer essa conexão é fundamental para compreender a complexidade do fenômeno e a necessidade de respostas de enfrentamento que sejam articuladas e abrangentes.
No campo das estratégias de combate à corrupção, a amplitude do problema frequentemente leva os sistemas jurídicos a adotarem políticas de “tolerância zero”, com expansão de tipos penais e endurecimento de penas. O penalista Nicolás Rodríguez-García, porém, adverte que esse movimento constitui muitas vezes apenas uma ampliação simbólica da resposta penal, de eficácia reduzida e aplicação limitada, como evidenciado por diversos relatórios internacionais[7].
O magistrado espanhol Antonio del Moral García reforça essa crítica ao salientar que somente com direito penal não se vence a corrupção. Para ele, o direito penal desempenha função necessariamente subsidiária, intervindo apenas quando os demais mecanismos de controle se mostram insuficientes e sempre em conformidade com princípios como a intervenção mínima e a lesividade[8].
Por isso, estratégias eficazes de enfrentamento da corrupção devem articular medidas de prevenção, por meio de políticas de integridade, gestão de riscos, transparência e educação cívica; fortalecer instituições de controle, garantindo autonomia e mecanismos robustos de accountability; promover reformas estruturais, como maior transparência no financiamento público, controle de conflitos de interesse e aprimoramento dos processos de contratação estatal; e ampliar a participação social, reforçando a capacidade da sociedade civil de fiscalizar e exigir resultados.
Nessa perspectiva, autores como Boehm e Graf Lambsdorff defendem, a partir de uma abordagem neoinstitucional, reformas capazes de dificultar, desde o início, a formação de acordos corruptos e, posteriormente, desestabilizar pactos ilícitos já existentes, além de estimular sua denúncia. Considerando os elementos sociopolíticos que permeiam a corrupção, os autores apresentam uma espécie de “manual do corrupto” e, a partir dele, propõem estratégias anticorrupção voltadas justamente a fragilizar as condições que permitem a consolidação de tais práticas e a fortalecer mecanismos que tornem sua revelação mais provável[9].
Eric Uslaner, por sua vez, enfatiza a relevância da confiança social e da redução das desigualdades para romper círculos viciosos de corrupção, destacando que transformações culturais, embora lentas, são possíveis e dependem do fortalecimento de vínculos entre grupos sociais diversos. Como assinala Uslaner:
“(...) como, no melhor dos casos, as mudanças culturais são muito lentas, muitos podem desistir e considerar que nada pode ser feito. Estão enganados. As mudanças culturais não ocorrem com facilidade, mas a cultura não é estática. Ao aumentar a confiança, é possível adotar medidas para melhorar o governo, abrir os mercados, promover o crescimento econômico, aprimorar a redistribuição do gasto, elevar a eficiência do Estado e reduzir a corrupção. Porém, o primeiro passo é desenvolver vínculos entre as classes sociais e entre os grupos raciais, o que significa reduzir as desigualdades econômicas” [10].
O que se observa, portanto, é que as medidas anticorrupção, para serem efetivas, não podem desconsiderar, em sua elaboração e implementação, os elementos sociopolíticos presentes no contexto em que se inserem. Uma reforma anticorrupção eficaz deve combinar os mecanismos tradicionais de controle, as sanções e as reformas estruturais com estratégias voltadas a promover uma cultura social de integridade. E para que exista um compromisso social suficientemente amplo, é indispensável que a população confie no sistema e no próprio Estado Democrático.
Assim, o Dia Internacional contra a Corrupção oferece uma oportunidade para refletir sobre a profundidade e a complexidade desse fenômeno, que é ao mesmo tempo pluriofensivo, estrutural e transnacional. Corrupção não é apenas um ilícito penal, mas um fator que reduz a capacidade do Estado, compromete direitos fundamentais e enfraquece a própria democracia.
Enfrentá-la exige mais que punição, requer prevenção, integridade, fortalecimento institucional, participação social e compromisso coletivo. Só assim será possível construir Estados mais íntegros, sociedades mais justas e democracias mais resistentes, objetivos que justificam, todos os anos, a celebração dessa data e a renovação desse compromisso.
[1] Convención de Naciones Unidas contra la Corrupción. Resolución 58/4 de la Asamblea General, de 31 de octubre de 2003. Disponible en: https://www.unodc.org.
[2] 7. Decide que, a fin de aumentar la sensibilización respecto de la corrupción, así como del papel que puede desempeñar la Convención para combatirla y prevenirla, se proclame el 9 de diciembre Día Internacional contra la Corrupción;
[3] JIMÉNEZ SÁNCHEZ, Fernando. La integridad de los gobernantes como problema de acción colectiva. Revista Internacional de Transparencia e Integridad, 2, 2016. Disponible en: https://revistainternacionaltransparencia.org/wpcontent/uploads/2016/12/Fernando-Jim%C3%A9nez.pdf.
[4] RODRÍGUEZ-GARCÍA, Nicolás. Hacia la maximización del principio de oportunidad en los procesos penales por hechos de corrupción. Este trabajo que se enmarca en el Proyecto de Investigación I+D+I de Excelencia, titulado “Postmodernidad y proceso europeo: La oportunidad como principio informador del proceso judicial”, del Ministerio de Economía y competitividad, con REF DER 2017-87114-P, 2020.
[5] BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE, Ignacio - FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo A. Corrupción y derecho penal: nuevos perfiles, nuevas respuestas., Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 81, 2009, p. 8.
[6] Ação Direta de Inconstitucionalidade 5874, Distrito Federal. Disponible en: https://www.stf.jus.br
[7] RODRÍGUEZ-GARCÍA, op. cit.
[8] DEL MORAL GARCÍA, Antonio. La Justicia Penal ante la Corrupción en la Administración Pública: Novedades, Posibilidades y Carencias. Revista Jueces para la Democracia (información y debate) nº 80, 2014.
[9] BOEHM, Frédéric - GRAF LAMBSDORFF, Johann. Corrupción y anticorrupción: una perspectiva neo-institucional. Revista de Economía Institucional, 11 (21): 45-72, 2009.
[10] USLANER, Eric M. Confianza y corrupción: sus repercusiones en la pobreza. En R. Atria et al. (comps.) Capital social y reducción de la pobreza en América Latina y el Caribe: en busca de un nuevo paradigma. CEPAL: Santiago de Chile, 2003, pp. 229-243. Original: (…) como en el mejor de los casos los cambios culturales son muy lentos, muchos pueden darse por vencidos y considerar que no se puede hacer nada. Se equivocan. Los cambios culturales no se producen con facilidad, pero la cultura no es estática. Aumentando la confianza se pueden adoptar medidas para mejorar el gobierno, abrir los mercados, promover el crecimiento económico, mejorar la redistribución del gasto, aumentar la eficiencia del Estado y reducir la corrupción. Pero el primer paso es desarrollar vínculos entre las clases sociales y las razas, lo que significa reducir las desigualdades económicas.