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Discurso por ocasião da inauguração da Ponte Tancredo Neves - Fronteira Brasil-Argentina, 29 de novembro de 1985
A ponte que acabamos de inaugurar simboliza a união, o entendimento e a amizade entre o Brasil e a Argentina. Ela é a expressão visível de sentimentos e valores que nos aproximam permanentemente e tornam nossos laços sólidos e duradouros.
Encontramo-nos aqui para marcar um vínculo direto entre nós, com o mesmo propósito de quatro décadas atrás, quando quase no outro extremo da nossa fronteira, edificamos a ponte entre Uruguaiana e Paso de Los Libres.
O patrimônio de empreendimentos binacionais já realizados nesta região, a beleza das cataratas, a ampliação dos parques do Iguaçu e o convívio fraterno entre as populações fronteiriças, são traços de um cenário em que cresce dia e noite a cooperação entre os povos que dele compartilham.
Batizamos esta ponte com o nome de Presidente Tancredo Neves, sentida homenagem conjunta ao principal artífice da redemocratização brasileira e estadista comprometido durante toda sua vida pública com os ideais mais elevados que nos congregam com as nações vizinhas.
Como Presidente eleito, na companhia da Excelentíssima Senhora Risoleta Tolentino Neves, que nos honra com sua presença, Tancredo Neves foi acolhido calorosamente por Vossa Excelência em Buenos Aires no início deste ano. A profissão de fé democrática em que se transformou aquele encontro permanecerá indelével em nossas memórias.
Senhor Presidente,
Honra-me celebrar este encontro com Vossa Excelência, representando o povo brasileiro.
Nossos caminhos são convergentes. Exigem uma cooperação dinâmica, igualitária e mutuamente benéfica, traduzida em realizações concretas, como esta ponte.
Estamos dando, hoje, outro passo histórico, que irá aprimorar o relacionamento Brasil-Argentina. Refiro-me à criação da Comissão Mista de Alto Nível para a Cooperação e Integração Econômica. Formada de representantes governamentais e do setor empresarial de ambos os países, a ela caberá examinar e propor programas, projetos e medidas que intensifiquem a integração e a complementação econômica de nossos países.
Nesta oportunidade, expresso o compromisso do Governo brasileiro de trabalhar intensamente com as autoridades argentinas, para que esse processo de integração se expanda a um ritmo acelerado e ganhe ampla dimensão.
A integração entre o Brasil e a Argentina nasce da vontade política comum e já se traduz em iniciativas conjuntas concretas, como os projetos de represas no rio Uruguai, as interligações elétricas, os estudos sobre a viabilidade de fornecimento de gás e a associação em projetos industriais.
O potencial de expansão do comércio bilateral exige mecanismos novos, capazes de reforçar as duas economias, como defesa contra uma conjuntura internacional adversa.
Ao mesmo tempo que dinamizamos as áreas tradicionais, decidimos dar, em nossa cooperação, atenção prioritária à biotecnologia, à informática, às tecnologias de ponta essenciais para evitar sermos marginalizados da revolução científica da nossa época. Num desses setores, o da tecnologia do átomo, demonstramos nossa capacidade de, sem desconfianças, preconceitos ou rivalidades, colocar a energia nuclear a serviço exclusivamente pacífico do desenvolvimento dos nossos povos, através de projetos conjuntos.
A ponte Presidente Tancredo Neves testemunha essa disposição de cooperar de forma ativa e solidária. Foi construída numa época em que inúmeros projetos e obras, tanto no Brasil quanto na Argentina, tinham sua execução adiada ou interrompida. Mesmo assim fizemos todos os esforços para garantir seu término, conscientes do seu papel para a integração de nossos países.
A ponte nasceu de uma reivindicação espontânea das populações de ambos os lados da fronteira. Encerra, portanto, uma mensagem de sentido democrático, em que a ação conjunta dos dois países visa ao atendimento de legítimas aspirações populares.
Felicito os representantes brasileiros e argentinos da Comissão Mista que se encarregou, desde 1980, dos trabalhos relativos à construção. Com dedicação e eficiência, e dentro da atmosfera de congraçamento que sempre marcou suas deliberações, desincumbiram-se competentemente da sua tarefa. Aos operários, engenheiros e supervisores, às empresas construtoras da obra e a todos os que de alguma forma contribuíram para a sua execução estendo meu reconhecimento e o de todo o povo brasileiro.
Senhor Presidente,
Celebramos este encontro com o ânimo fortalecido pela consolidação da democracia em nossos países. Argentina e Brasil não faltaram ao mandato da História. Responderam com grandeza aos seus desafios e às aspirações de seus povos.
A democracia restituiu-nos a confiança e o otimismo. Percorremos um longo caminho de sacrifícios e privações, mas a determinação de nossos povos ajudou a encurtar distâncias.
O espírito de solidariedade na América Latina fortaleceu-se com o êxito dos recentes movimentos de redemocratização. Brasileiros e argentinos conduziram suas lutas pela restauração do estado de direito em condições e ritmos próprios. A diversidade de experiências nacionais, dentro de uma unidade básica de aspirações, enriquece a evolução política do continente.
Confiamos no caráter irreversível desse processo. Vamos construir, em alicerces firmes, a estabilidade de nossas instituições. Não haverá mais espaço entre nós para soluções arquitetadas sem o uso dos instrumentos da legitimidade.
Acabamos de assistir, tanto no Brasil quanto na Argentina, a demonstrações de responsabilidade cívica. As recentes eleições mostram o amadurecimento político de nossos povos e sua consciência democrática. Reafirmamos, uma vez mais, nossa completa adesão a um sistema de vida fundado na paz, na liberdade e na justiça. E disso jamais abdicaremos.
Todos os brasileiros acompanham os esforços com que Vossa Excelência tem procurado, com vigorosa liderança democrática, conduzir os destinos na nação argentina. Admiramos a coragem e determinação de seu governo na busca de superar os problemas de seu país. O povo argentino, chamado a participar ativamente do soerguimento da nação, volta a trilhar rumos firmes e a confiar no seu futuro.
No Brasil reencontramos também nosso caminho e nele vamos perseverar. O compromisso de transformações profundas ajudou a moldar uma nova convivência entre os brasileiros. A conciliação e o diálogo são os instrumentos principais do nosso esforço coletivo nesta hora de grandes esperanças e tantos desafios, no campo econômico-social como no campo institucional.
A consolidação da democracia na América Latina se vê ameaçada pelas distorções e desequilíbrios da economia internacional. Gerando desesperança e frustração, a crise econômica pode comprometer a estabilidade política e social. O regime democrático é desafiado a dar respostas imediatas a problemas de grande complexidade.
Na América Latina, essa situação levou-nos a adquirir consciência da necessidade de preservarmos, acima de tudo, a democracia, condição indispensável para nos unirmos em torno de soluções eficazes e solidárias para nossos problemas.
Senhor Presidente,
A dívida externa é um desses problemas cujo impacto sobre o continente despertou nossa capacidade de resposta coletiva. Por meio do consenso de Cartagena propusemos um diálogo entre governos a respeito dos aspectos que dependem basicamente da ação política governamental: taxa de juros, protecionismo, deterioração dos termos de intercâmbio. A partir de setembro e, mais acentuadamente, depois das reuniões do Banco Mundial e do FMI, em Seul, o panorama começou a mudar para melhor. Admitiu-se que a estratégia anterior era falha e incompleta. Reconheceu-se tacitamente que, para corrigi-la, não bastava o jogo espontâneo das forças do mercado, pois partiu justamente de um governo a decisão de agir sobre os bancos privados e os organismos internacionais. Trata-se de passos iniciais na direção certa que devem ser encorajados.
É preciso, porém, avançar mais e incorporar os países devedores a esse esforço, a fim de evitar que ele permaneça unilateral.
É necessário, em outras palavras, abrir uma janela à negociação para a conciliação, no interesse comum, das justas posições de devedores e credores. Não me move nesta exortação uma preocupação excessiva ou desproporcional com as implicações brasileiras desta crise. Sei que dependemos todos de fatores internacionais que, se hoje nos favorecem, amanhã podem voltar-se contra nós.
Sem jactância, pois, constato que, graças à sua envergadura, ao seu dinamismo, à sua baixa dependência de importações, é a economia brasileira uma das que apresentam, em termos relativos, maior grau de resistência ao desafio atual. A prova é que, tendo recusado as receitas recessivas, o Brasil é hoje um país onde se expandem a economia, os salários reais, a oferta de empregos, sem que isso tenha impedido a acumulação de reservas e de saldo comercial suficiente para cobrir os juros de nossos compromissos. E esses resultados foram obtidos sem o aporte de recursos financeiros adicionais nem aumento no montante da dívida.
Na consolidação da democracia, da mesma forma que no encaminhamento do problema da dívida, cada país latino-americano há de encontrar fórmulas próprias, adequadas à sua especificidade. Confiamos cada um em nossas próprias forças. Sabemos, contudo, que a solução definitiva só virá quando, em resposta a nosso apelo conjunto, a economia internacional deixar de desfazer, através dos juros ou da deterioração do comércio, o que conseguimos com nosso ajustamento interno.
Só assim garantiremos que o clarão que ilumina a América Latina, neste instante, seja o facho da liberdade e da democracia e não o da convulsão.
Senhor Presidente,
Com espírito de participação e responsabilidade, o Brasil, juntamente com a Argentina, tem procurado influir para a eliminação das tensões e conflitos internacionais. Registramos com esperança os sinais recentes de que os líderes das grandes potências procuram consolidar uma nova etapa de diálogo e de negociação, em favor dos objetivos da paz que nos são comuns a todos.
Com esse mesmo espírito aberto à negociação e às soluções pacíficas, o Brasil e a Argentina juntaram-se a outras nações irmãs da América do Sul para criar o Grupo de Apoio à Contadora e oferecer seus préstimos para secundar as iniciativas de paz na região centro-americana. Realizaremos essa tarefa sempre de acordo com os desejos das partes envolvidas nas negociações e dentro da mais estrita observância dos princípios cardeais da não-ingerência e do respeito à autodeterminação dos povos.
Dentro dessa mesma linha de irrestrito apego ao direito e à justiça, o Brasil apóia desde 1833 a reivindicação argentina de soberania sobre as Ilhas Malvinas e continua a exortar a Argentina e a Grã-Bretanha a encontrarem uma solução pacífica e duradoura para o diferendo que as separa. Ao lado de expressiva parcela da comunidade internacional, o Brasil encarece a pronta retomada das negociações entre os dois países e, como nação protetora da Argentina, permanece à disposição das partes para colaborar em sua reaproximação, a partir da discussão do litígio que as separa.
A paz, a justiça, a democracia e o desenvolvimento caminham juntos. São os objetivos maiores que nossos povos perseguem. Juntos, identificados por interesses e valores comuns nos planos interno e internacional, Argentina e Brasil muito podem fazer em beneficio dessas que são suas aspirações máximas.
Senhor Presidente,
A ponte Presidente Tancredo Neves é mais uma expressão da forma como nossos países transformaram em dinâmica realidade o vaticínio do então presidente eleito da Argentina, Roque Saens-Peña, que há setenta e cinco anos afirmou que “tudo nos une, nada nos separa”.
O diálogo e a confraternização que se desenvolvem neste encontro são uma prova dessa verdade. Empenharmos o melhor de nossos esforços para prosseguir nessa via, Senhor Presidente, é sem dúvida a maior contribuição que nossos governos poderão dar às relações entre o Brasil e a Argentina e à construção do seu futuro.
Façamos desta ponte, mais do que uma imagem da nossa união, um passo decisivo em nossa caminhada conjunta.
(Texto reproduzido em conformidade com o acordo ortográfico vigente à época de sua publicação original)