Notícias
Discurso no Congresso da União - Palácio Legislativo - Cidade do México, 18 de agosto de 1987
É com emoção que falo neste histórico parlamento da nação mexicana. Passei grande parte de minha vida na Câmara dos Deputados e no Senado. Tendo dedicado 27 anos de minha vida ao Congresso de meu País, o Parlamento foi a escola política onde amadurei a reflexão e o entendimento da complexidade do Brasil contemporâneo. Onde debati, meditei, ouvi e opinei sobre os problemas do homem, de nossa América, de nosso mundo. Estar no Congresso, para mim é estar em casa, lugar que muitas vezes me falta na inevitável solidão do poder. Por isso mesmo, não me sinto estranho no Congresso do povo irmão do México. Sem Congresso não há democracia, não há liberdade, não há a busca constante do homem para melhorar instituições políticas. Nas ditaduras, a voz que se ouve é o silêncio aterrador das vontades do povo, contrastado pelo grito das masmorras, onde se perdem os lamentos dos torturados. A glória do parlamentar, se bem sei, é efêmera, vive da autoria de uma lei, de um discurso, de um parecer, de um aparte que, com o tempo, ficam na tumba dos anais, onde são apenas ressuscitados pela longínqua e inesperada visita dos pesquisadores da história.
Mas não há tarefa mais nobre, mais doadora de si mesma, de sua própria vida, do que a vida do político. O grande mártir da independência do Brasil, Tiradentes, a definiu como a daquele que em vez de trabalhar para si, «trabalha para todos». O Parlamento mexicano tem longa tradição. De sintonia com a causa do povo, de devoção à identidade mexicana, de centro permanente de debate sobre os destinos do país. Hoje é comum ouvir-se que os parlamentares sofrem grave crise de desgaste; que há uma tendência mundial para executivos fortes. Minha opinião se contrapõe sempre na afirmativa de que nenhum executivo é forte se não tem a seu lado um parlamento forte. A surpresa do destino me ordenou presidir à transição institucional brasileira, na qual a revalorização do papel do Congresso constitui elemento fundamental. Sem autêntica representação parlamentar não há cidadania soberana. O Congresso é também a sede natural da relação entre a região e a nação. Este é um ponto que me é particularmente sensível, talvez porque venho de uma região pobre do Brasil, onde tudo nos torna dolorosamente conscientes dos desequilíbrios regionais e da crucial importância da representação parlamentar nas áreas menos desenvolvidas. No Parlamento é possível lutar em pé de igualdade contra as desigualdades que existem em todo o País. Desigualdades especiais, de renda, de grupos.
Minha longa permanência no Senado Federal deixou em minha personalidade política uma profunda marca, relacionada com a luta pela superação da penúria, o esforço por preservar valores culturais, que se confundem com as próprias raízes da nacionalidade. A representação igualitária dos estados é sempre o esteio da unidade nacional, que se forma sempre na junção de ser o regional o mais universal. O Congresso é hoje, no Brasil, mais que um poder legislativo normal: foi eleito para redigir a nova Carta Magna brasileira. Este é um momento marcante, carregado de histórias na vida de uma nação. O México também conheceu momentos como esse. Na realidade, podemos dizer que este país nos fornece um dos melhores exemplos do aprofundamento da experiência angustiante e ao mesmo tempo grandiosa da reconstrução do Estado. O sentido agônico e tantas vezes trágico da história mexicana, a experiência da revolução, sedimentou e valorizou neste país a percepção do Estado como ordem jurídica duradoura. Mostrou a importância de definir claramente as linhas gerais do poder e da soberania. A verdade é que o México, exceção em nosso atribulado subcontinente, conquistou seis decênios de estabilidade, perseguindo uma política de preocupação social, sem jamais abdicar dos valores da liberdade. Nem as piores crises, provocadas pelos cataclismos naturais ou pela economia, têm abalado a estabilidade das instituições mexicanas, expressão de maturidade política do povo deste país. Nós também, no Brasil, vivemos o desafio de construir instituições originais e estáveis. A convocação da Assembléia Nacional Constituinte é um compromisso que meu Governo assumiu com o povo brasileiro. É marco de uma aspiração nacional por ordenar um estado de direito fundado num debate amplo, livre e aberto com todas as classes sociais e em todos os pontos do Brasil. Pois uma Constituição só pode ser duradoura e respeitada quando emerge do consenso da própria sociedade.
Os ideais cívicos da democracia e da justiça social já possuem âncoras seguras na consciência brasileira. Por isso nenhum projeto autoritário terá vigência na complexa, vigorosa e dinâmica sociedade industrial em que o Brasil se converteu. Caminhamos, de maneira segura e inarredável, para a consolidação de nossas instituições democráticas. Em seus lúcidos Estudos de Direito Constitucional, o Presidente Miguel de La Madrid mostrou que o México optou por um presidencialismo em que a divisão dos poderes não significa separação rígida, mas, ao contrário, colaboração dentro da autonomia. Este presidencialismo constitucional foi também o caminho preferido pela tradição republicana no Brasil. Neste ponto, como em tantos outros, o legado de Juarez e Madero coincide com a lição de nosso grande jurista Rui Barbosa. É dentro deste marco institucional que o Congresso brasileiro, como este Congresso, enfrenta hoje os desafios do desenvolvimento. Com esta minha visita estamos facilitando o encontro de duas grandes nações. O México e o Brasil aportam traços fortes e complementares a uma mesma entidade cultural latino-americana. Buscando soluções para problemas análogos e para uma crise que os afeta igualmente, estão confrontados com a necessidade de acentuar-se sua identidade comum. Os Congressos de nossos dois países são partícipes plenos de um esforço de aproximação política cada vez maior entre nossos países. Não é por acaso, aliás, que parlamentares de ambos os países consideram atualmente a conveniência de formar um grupo mexicano-brasileiro, dando, assim, uma nova dimensão às relações fraternas entre nossos congressos.
O México e o Brasil são países com uma visão semelhante do mundo, refratários à política de blocos e partidários da distensão das relações Leste-Oeste. São países que hoje já contam com economias que estão entre as doze maiores do mundo. São países que chegam ao século XXI como duas grandes e respeitadas democracias racionais; que logram dar o saldo decisivo da modernização e estão voltadas para o aperfeiçoamento institucional. Nosso diálogo político conquista hoje novos e mais altos níveis, no contexto de uma aproximação política latino-americana necessária e urgente. O histórico ideal de integração latino-americana, que pretendemos realizar, transcende a esfera do econômico. Chegou a hora de afirmar a identidade latino-americana e de resgatar a voz política própria de nossa região. A reunião de cúpula dos oito presidentes dos países integrantes do Grupo de Contadora e de Apoio, convocada para novembro, poderá ser um importante passo nesse sentido. Trata-se de um encontro que pretendemos aberto; um encontro de homens de Estado, onde serão explicitadas nossas coincidências, que são muitas, pois pensamos de maneira semelhante nossos desafios políticos e nossas dificuldades econômicas. Ele deve corresponder a um esforço exclusivamente latino-americano, que não busca reproduzir modelos estranhos à região. Será uma reflexão consciente de que a América Latina é um conjunto de perspectivas políticas e uma pluralidade cultural, que enriquece sua mais profunda e autêntica unidade. O Brasil acredita que a América Latina tem a capacidade de resolver seus problemas por seus próprios caminhos. A experiência de Contadora é um exemplo dessa capacidade regional. Contadora é um foro político exclusivamente latino-americano para a solução de problemas latino-americanos. No caso da América Central, estamos persuadidos de que uma solução duradoura para os conflitos só pode vir dos próprios centro-americanos. Por isso creio que surge uma luz de esperança após a reunião da Guatemala, na qual os países diretamente envolvidos conseguiram esboçar as linhas gerais de um acordo, com base em critérios próprios.
A crescente integração política, econômica e cultural entre os países latino-americanos é o melhor caminho para buscar soluções para nossas crises. Temos as mesmas aspirações de vencer o subdesenvolvimento e a miséria. E enfrentamos as mesmas dificuldades. Ao contrário de outras regiões do Terceiro Mundo, a América Latina já esteve melhor, em termos relativos, do que está hoje. Quase todos os países latino-americanos de maior expressão tinham, em 1950, rendas per capita muito mais altas do que os novos países industrializados da Ásia: alguns dos países latino-americanos apresentavam, então, rendas per capita muito próximas das dos países europeus e do Japão. No espaço de uma geração, tais posições mudaram radicalmente. A renda média nos países latino-americanos passou a representar apenas uma parcela declinante dos padrões dos países industrializados. A década presente tem representado, assim, um retrocesso relativo para as economias da maioria dos países latino-americanos, em contraste com outros continentes. A renda per capita desceu a níveis mais baixos do que em 1980, em quase todas as nações latino-americanas. Esta realidade nos choca. Sem desconhecer nossos erros e insuficências, estamos convencidos de que esse retrocesso é, em grande parte, produto de uma inserção distorcida da América Latina na economia internacional, em suas dimensões comercial, financeira e tecnológica. Nesse quadro, a dívida externa é como que um nó a unir vários laços. Cabe desatá-lo, para que as economias latino-americans voltem novamente seus esforços para as metas fundamentais do crescimento econômico e do desenvolvimento social. Por isso temos insistido em um tratamento político da questão da dívida externa e no reconhecimento da coresponsabilidade de credores e devedores.
Já não é possível esperar-se que dívidas de tão grande magnitude, influenciadas por decisões de política econômica dos países credores, sejam tratadas num patamar exclusivamente bancário e financeiro. A demora em responder-se positivamente às propostas dos países endividados tem trazido como conseqüência que a dívida externa continue pesando sobre nossos países e sobre a economia e as correntes comerciais e dificultando ou entorpecendo o crescimento da economia mundial, inclusive dos países credores. Cabe aos líderes políticos latino-americanos cuidar para que se interrompa o retrocesso da nossa região e se reverta esta espiral que nos empobrece a cada dia. A resposta latino-americana à longa e penosa crise econômica internacional terá de ser sempre soberana, democrática e pacífica. Soberana, porque decide e executa, sem interferências, suas próprias políticas econômicas. Democrática, porque insiste em participar de decisões que afetam a economia mundial como um todo. Pacífica, porque rejeita a violência e a arbitrariedade das soluções impostas. Ao mesmo tempo, não consideramos sequer a hipótese de alheamento do sistema econômico internacional, em prol de uma utopia autárquica qualquer. O que desejamos é um aprimoramento do sistema para que possa ele servir a todos os países sem posições privilegiadas. A integração política, econômica e cultural latinoamericana é parte desta resposta, soberana, democrática e pacífica. O êxito do Brasil e de cada um de nossos países está intimamente ligado ao sucesso de uma América Latina próspera e justa, de um continente unido numa comunidade que preserve a riqueza de nossas identidades, sem jamais perder de vista a meta inspiradora da integração definitiva. A América Latina não pode, estou convencido, continuar à margem da grande tendência contemporânea para as economias de conjunto.
Dentro de nossa comunidade latino-americana, Brasil e México em particular compartem valores, ideais e preferências. Em matéria de cultura, como de comércio e de política, nossos países podem dar-se fraternalmente as mãos. Mantenhamo-nos, pois, de maneira firme e serena, na fé democrática, fiéis ao sentido pleno e criador da liberdade. Assim, na companhia de nossos irmãos latinoamericanos, construiremos no futuro as sociedades dignas dos ideais humanísticos que caracterizam a identidade de nossa região. Os Congressos cias duas nações são uma instituição essencial e central neste processo. Eles são a expressão do povo. A soberania da vontade nacional. Pátria e liberdade não são conceitos envelhecidos. Nossa grande pátria é a América Latina. E o México é um santuário onde estão guardadas a cultura, a tradição, a saga do sofrimento e da glória de todos aqueles que vivem, como nossos povos, a esperança da liberdade. Vamos juntos, amigos e irmãos, Brasil e México.
(Texto reproduzido em conformidade com o acordo ortográfico vigente à época de sua publicação original)