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Discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso por ocasião do jantar oferecido pelo Presidente da Federação Russa, Senhor Vladimir Putin
Agradeço muito a Vossa Excelência o gesto de nos receber, a Ruth e a mim, bem como a comitiva brasileira, neste Palácio que tanto evoca os feitos do povo russo. Pude sentir o pulso desta nação quando aqui estive com outras personalidades, entre as quais meus colegas e amigos Alain Touraine e Manuel Castells, para ver de perto as transformações dramáticas por que passava a União Soviética. Se posso ressaltar algo daquela experiência foi a percepção clara de que o povo russo se sentia senhor de sua história e dela faria o melhor, como de fato tem feito. Vejo a amizade que hoje prospera entre a Rússia e o Brasil como uma profecia auto-realizável. São muitas as afinidades a concorrer para que sejamos próximos um do outro, a começar por nossa formação multiétnica. Dispomos de espaços continentais e, por isso mesmo, estamos comprometidos com o desenvolvimento sustentável. Nossos países passaram por intenso processo de modernização e se vêem agora ingressando em novo ciclo de crescimento.
A democracia é um valor maior para russos e brasileiros, assim como o é a determinação de lutar por um sistema internacional multipolar. Aqui reside o eixo das posições coincidentes da Rússia e do Brasil. Valorizamos as tendências que depõem a favor de uma ordem mais fraterna, equânime e democrática. Repudiamos o terrorismo por ferir os mais basilares princípios da humanidade e estamos empenhados no combate à rede de sustentação do terror e a males conexos, como o crime organizado, o consumo e tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro. Mas nos vemos igualmente preocupados com as causas do dogmatismo e da intolerância. Nada, absolutamente nada justifica que israelenses e palestinos continuem reféns do ódio e da violência. Em 1948, o Brasil foi protagônico na defesa de um Estado soberano e seguro para o povo judeu. Agora o Brasil reclama que o povo palestino possa prosperar sob o abrigo de um Estado democrático, coeso e economicamente viável. O Presidente Putin sabe da disposição de meu Governo em atuar ao lado da Rússia e de outros países interessados na identificação de fórmula que ajude a restaurar a paz no Oriente Médio. Sei que também encontro receptividade no Governo russo para o entendimento de que a agenda internacional não deve ficar restrita aos temas de paz e segurança, por importantes que estes sejam. Outras questões merecem nossa atenção, até por sua importância para a ordem mais simétrica que idealizamos. O Brasil e a Rússia foram vítimas da volatilidade do capital financeiro. Na verdade, fomos vítimas de um tempo em que a economia foi globalizada, mas a política não. Inexiste um mecanismo efetivo de monitoramento político dos movimentos de capital. Urge criá-lo. Como também é essencial que se amplie o escopo das deliberações sobre os grandes temas econômico-financeiros. O Brasil vê o Grupo dos Vinte como espaço para um diálogo profícuo entre o mundo desenvolvido e os países emergentes
Acompanhamos com muito interesse as negociações para a entrada da Rússia na Organização Mundial do Comércio, que esperamos logo se concretize. O Brasil conta com a Rússia para que os avanços alcançados em Doha possam ser traduzidos em conquistas concretas, particularmente na garantia de maior acesso a mercados para o mundo em desenvolvimento. Se existe um obstáculo real no caminho da liberalização das trocas internacionais, esse obstáculo é o protecionismo dos mais ricos. Mas somente do Brasil e da Rússia depende o redimensionamento das relações económicas bilaterais. E para tanto não falta vontade política. Já se observa um notável incremento do intercâmbio, muito por conta do trabalho da Comissão de Alto Nível, presidida pelo Primeiro-Ministro Mikhail Kassianov e pelo Vice-Presidente Marco Maciel. É amplo o potencial a ser ainda explorado, sobretudo em áreas de elevado valor agregado, como energia, telecomunicações e indústria aeronáutica. Também nos animam as perspectivas de cooperação na utilização do espaço exterior, ambiente que deve ser reservado, assim pensam a Rússia e o Brasil, para fins exclusivamente pacíficos. Não posso concluir sem saudar o fato de que também no mundo da cultura o diálogo se intensifica. O encanto mútuo jamais deixou de existir. Há quase dois séculos, Alexandre I ajudou o Barão de Langsdorff, Cônsul-Geral da Rússia no Rio de Janeiro, a realizar uma extraordinária expedição naturalista pelo interior do Brasil. Os brasileiros passaram a conhecer melhor sua exuberante natureza graças ao desassombro de Gregori Ivanovitch, como era aqui conhecido Langsdorff. Agora, o agente da aproximação é o Teatro Bolshoi, com a abertura da escola em Joinville, que já se tornou uma referência em dança clássica na América do Sul. Sei que outras iniciativas prosperaram no meio-tempo, mas o fundamental é que o Brasil sempre se beneficiou do espírito franco e generoso do povo russo, um espírito que tem despertado a mais viva admiração e estima do povo brasileiro.