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Discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso por ocasião da II Reunião de Presidentes da América do Sul
Corresponde-me, em nome dos Chefes de Estado dos países sul-americanos, que esta manhã estamos aqui no Equador, manifestar nosso agradecimento pelo convite e o reconhecimento pela liderança do querido amigo, o Presidente Gustavo Noboa, pela convocação deste encontro.
Eu não vou ler o discurso que trouxe, porque, ao escutar o Presidente Noboa, me deu uma sensação de muito prazer. Há muito tempo alguns de nós seguimos as aventuras da construção de um espírito de solidariedade e de integração em nossa região. Nesta manhã, ao escutálo, Presidente Noboa, eu pensava o que eu posso acrescentar, salvo um pouco de sotaque brasileiro ao espanhol. A verdade é que há tal convergência entre nossos espíritos, a voz é uma só, não importa quem fale. Mas sim, quando alguém fala, como fez o Presidente Noboa, com essa capacidade abrangente de pôr sobre a mesa todos os problemas, com a inspiração e a energia com que o fez, a nós só cabe aplaudir o Presidente. Isso me alegra porque não foi sempre assim. Não foi sempre assim e agora é cada vez mais fácil nós nos darmos conta de que, efetivamente, quando Bolívar e San Martin aqui se encontraram, há 180 anos, tinham um sonho que não era somente um sonho; levavam em seus corações uma utopia que não era somente uma utopia, porque tinha uma base na geografia, tinha uma base na história ibérica, tinha base na mestiçagem dessa história ibérica nas serras da América, tinha base na vontade grandiosa de construir algo que fosse capaz de ir mais longe do que o instante presente. E chegamos a esse mais longe.
A verdade é que as mudanças ocorridas na mentalidade e na percepção dos problemas na nossa região foram notáveis. Foram notáveis e hoje em dia segue-se falando, mas se vai mais além do discurso. Estamos concretizando, efetivamente, uma integração regional que tem um alcance histórico e não são meras palavras; não é retórica dizê-lo, é a verdade. E nos demos conta de que, quando há dificuldades, quando há obstáculos - e há tantos -, não cabe a nós, Presidentes e Líderes da região, simplesmente chorar, senão que cabe a nós trabalhar e construir caminhos que possam servir de pontes entre o presente e o futuro. Foi o que fizemos Em verdade, quando fizemos a convocatória de Brasília, tínhamos claro já, e todos sabíamos, que haveria dificuldades imensas nas integrações comerciais. Buscamos então atalhos, que nos permitiram não perder de vista os objetivos, e concentramos nosso esforço na criação das bases de integração física, de integração energética, da busca de marcos legais comuns para as relações internacionais, no terreno da comunicação, por exemplo, e o fizemos. E nos demos conta de que necessitávamos de criar instrumentos novos para nossa ação. Temos, sempre tivemos e estou seguro de que teremos no futuro o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento, mas acrescentamos a isso a Corporação Andina de Fomento e criamos a possibilidade de uma junção da CAF com o Fonplata. E agora o Presidente Noboa disse com muita clareza que necessitamos de formas de financiamento que nos permitam ultrapassar as dificuldades que nos estão sufocando, e essas instituições, juntas e com o nosso apoio, poderão ajudar-nos a seguir financiando o processo de integração. Esses são fatos concretos, não somente palavras, são realidades pelas quais estamos avançando. E assim fizemos em muitos outros terrenos, alguns, talvez, menos palpáveis, mas quiçá mais importantes.
A democracia hoje é um valor vigente, é um valor nosso, não um valor transposto de outras culturas, é um valor nosso. E, por ser nosso, é no nosso âmbito que atuamos para garanti-la. Aqui existem Presidentes que são testemunhas do valor da ação coordenada da nossa região para dar manutenção à democracia. Nós o fizemos sem imposições, o fizemos sem ameaças, o fizemos com o puro espírito de solidariedade, e todos sentiram que era verdade quando falávamos que estaríamos juntos para defender a democracia de ingerências internas, golpistas ou externas de estímulo a golpismos.
Agora, como disse o Presidente Noboa, desdobramos nossas preocupações democráticas com muita força na defesa dos direitos da pessoa, dos direitos humanos. Não aceitamos violações e sabemos das dificuldades. E o mínimo sentimento que nos une, com clareza, é o sentimento que dedicamos ao povo irmão da Colômbia. O Presidente Andrés Pastrana partirá em breve. O Presidente Uribe o substituirá. Pois os dois sabem, e o povo da Colômbia sabe, que somos solidários com seu povo, com seu governo, no combate ao narcotráfico, no combate a uma guerrilha que se perdeu por causa do narcotráfico, em apoio aos valores verdadeiros da democracia. E assim faremos, mas sabendo que a força motora desse processo é colombiana, deve ser colombiana e seguirá sendo colombiana, e não nos peçam ingerências, que não é de nosso estilo nem é o desejo do povo colombiano. É com esse espírito, com o espírito verdadeiramente sul-americano, latino-americano, que nos juntamos, mas nos juntamos em um mundo que se integra pelos processos de globalização económica e financeira. Nós nos juntamos não para nos isolarmos desse mundo, mas para que possamos ter mais peso nas definições desse mundo. E, nesse ponto, acho que se deve reconhecer que os avanços não foram grandes.
Eu me lembro de que apenas começava o meu primeiro mandato como Presidente do Brasil, fui ao Chile e fiz uma visita à Cepal. E faz poucos dias, por razões acidentais, tive que ler outra vez o discurso que fiz naquela ocasião. Não mudaria nada do que disse, mas, infelizmente, não mudaria porque o mundo não mudou na má direção. Naquele momento, eu ressaltava o que todos já sabíamos, que era necessário criar forças para compensar, no plano mundial, a integração financeira, a volatilidade dos mercados, a revolução tecnológica dos meios de comunicação, que tem efeito imediato sobre a volatilidade dos capitais. Havia que criar instituições mais fortes, em nível mundial, que fossem cada vez mais democráticas e mais eficazes. Dizia o óbvio. Mas, infelizmente, nem sempre o que é óbvio é suficiente para mudar o rumo da história. Não houve avanços significativos no processo internacional da redefinição do que, em inglês, chamam de governance, international governance. Não foi mudado o modo como se governa o mundo. Assistimos à queda do Muro de Berlim, mas não assistimos à transformação das Nações Unidas em um instrumento de discussão dos grandes temas internacionais com eficácia. Discussão sim, mas à qual não se seguem uma resolução e uma vontade política efetiva para que as mudanças possam ocorrer.
Quantos de nós, ao observar o que ocorria na Europa, imaginávamos um mundo multipolar, um mundo no qual fosse possível que os interesses das regiões, principalmente as mais pobres, como a África e grandes partes da Ásia e da América do Sul, pudessem ser ouvidos. Ao contrário, o que vimos foi a formação de um diretório mundial, chamado G/, que recentemente se transformou no G8, diretório que não tem mais sequer condições de se reunir abertamente, porque há uma certa desconfiança, nem sempre justa, mas há, de que não estão aí para fazer algo que possa ser significativo para o bem-estar dos povos. Pior, frequentemente se tem a sensação de que esse grupo se junta para convalidar o que um só no poder decidiu. Esse não é um mundo democrático, esse não é um mundo para o qual nos preparamos durante tantas décadas, esse é um mundo de unilateralismo, e a linguagem do Presidente Noboa foi uma linguagem de multilateralismo, foi a línguagem da formação de blocos regionais abertos, como nós estamos fazendo. Não falamos apenas, fizemos.
Nós o fizemos no Mercosul, que se dispõe e insiste em associar-se à União Europeia. E a cada reunião que temos, como ainda tivemos nesta semana, no Rio, saímos com a sensação de que querem ir tão devagar que não será para nossas gerações a tão desejada associação de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. Posterga-se tanto, colocam-se tantas travas, há sempre, em algum país, alguma eleição e, nessa eleição, algum interesse particular que impede que o interesse geral possa avançar. Não obstante, estamos insistindo, somos nós que queremos a integração, vamos ver o que vai suceder agora com a Alça, a associação de livre-comércio do hemisfério.
Até o momento, os sinais que haviam sido emitidos pelos governos mais importantes do Norte não foram sinais de abertura, foram sinais de restrição. Tanto é assim que seguimos, em cada discurso, com a obrigação de protestar contra o protecionismo, como se este já não tivesse sido ultrapassado, porque não foi. Fala-se de integração e se pratica a exclusão; fala-se de integração, mas se põem à margem os produtos que interessam efetivarnente aos países em desenvolvimento; fala-se em integração, dando a sensação de que nós não a queremos, quando somos nós os que mais queremos uma integração democrática e uma integração que efetivarnente derrube as tarifas, mas todas e não somente aquelas que interessam aos poderosos. Em consequência, nessa matéria, os progressos foram muito tímidos.
Eu dizia também - repito o óbvio -, em Santiago do Chile, que algo deveria ser feito para impedir que os mercados financeiros fossem capazes de derrubar as economias, ainda quando sólidas. Haviam nos ensinado, e com razão, que os fundamentos económicos de nossos países devem ser sãos, que devemos ser capazes de operar as variáveis macroeconômicas com responsabilidade, que os ajustes fiscais são necessários, que devemos produzir superávits primários, honrar os contratos, pagar as dívidas.
Levo oito anos à frente do Brasil, além dos dois anos anteriores, quando fui Ministro de Finanças. Não fiz outra coisa, nesses dez anos senão reconstruir o Estado brasileiro, honrar as palavras contratuais e fazer o máximo esforço para, com ajustes, manter viva uma política social para que uma rede de proteção social existisse no meu país e, no entanto, parece que os mercados financeiros não entenderam o que parece ser fundamental, que a macroeconomia seja sã. Agora começam a desconfiar de que, apesar de tudo, possivelmente no futuro não será assim. E fazem com que sua profecia se autocumpra, porque começam a atuar por antecipação ao que ainda não sabem que acontecerá e com uma desconfiança básica de que certos setores da nossa sociedade pudessem de repente mudar tudo o que foi feito e imediatamente começar a atuar com irresponsabilidade. Mas por que aluaríamos com irresponsabilidade, se existe um sentimento na região que vai em outra direção?
No entanto, não existem mecanismos capazes de contrapor certas pressões que vêm dos mercados financeiros, que destroem em pouco tempo o que se levou anos para construir. Será essa a ordem internacional que desejamos? Será essa a ordem internacional que se quis em Bretton Woods? Estou certo de que não. Mas falta neste momento liderança no mundo, para que o mundo se dê conta de que não pode seguir com a incerteza. Já não se trata mais do risco que se pode calcular; trata-se de incerteza. Eu sei sim, como todos sabemos, que o 11 de Setembro introduziu um elemento muito grave, um elemento de incerteza, porque mesmo os mais poderosos não são capazes de limitar, de impedir ações criminais. Mas diante da incerteza não será melhor buscar consensos que levem à construção de uma ordem mais previsível, mecanismos que permitam enfrentar essas forças irracionais quer sejam do mercado, quer sejam da política, de forma democrática, por meio de uma convocatória, que seja uma convocatória real, como foi feito em São Francisco, há tanto tempo, para a reconstrução do mundo, com base na paz, na justiça, em um sentimento de igualdade entre as nações?
Falta, e falta muito, para que esse espírito de Guayaquil seja um espírito que possa estar plantado na Europa ou nos Estados Unidos ou na Ásia. Que seja um espírito verdadeiro, e por isso me alegrou escutar o Presidente Noboa, porque, de alguma maneira, Presidentes, nós estamos na vanguarda do que deve ser esse sentimento de solidariedade entre os povos, não só aqui, mas no mundo. E falta no mundo quem comande na direção de um bom caminho. Não podemos continuar vivendo a cada dia com surpresas, com incertezas, porque não se construíram as instituições. Ensinaram-nos que a democracia requer instituições; aprendemos. Nós as temos; talvez não sejam perfeitas, mas temos instituições que possuem legitimidade, porque os povos gostam da democracia. Não se pode dizer algo semelhante quando se observa o panorama internacional.
Há, portanto, muita responsabilidade nossa, mas não somente nossa. Para que nos próximos encontros internacionais não tenhamos que repetir o de sempre, podemos dizer: nós o fizemos. Termino dizendolhes que, se ao iniciar afirmei que estava feliz, é porque aqui se pode dizer: nós o fizemos. Construímos em pouco tempo algo com o espírito sul-americano. Temos já o desenho dos eixos de integração, temos já os valores fundamentais da democracia, do mercado, do respeito ao ser humano. Já temos as bases para que o sonho dos nossos maiores, de Bolívar e San Martin, seja realidade.
Muito me alegra acrescentar esse sotaque brasileiro. O Brasil caminhou um pouco de costas para toda a saga bolivariana ou de San Martin. O Brasil tem a particularidade, talvez um tanto irónica, de que a sua independência, o seu herói da independência, era o rei de Portugal, o Príncipe de Portugal que vivia no Brasil, que proclamou a nossa independência, que voltou a Portugal, que lutou contra seu irmão e voltou a ser rei em Portugal. Foi Imperador no Brasil e Rei em Portugal. O Brasil tem, por consequência, uma história um pouco diferente da história ibero-espanhola, tem uma história, eu diria, de conciliação, uma história que foi frequentemente repudiada por muitos de nós, por ser demasiadamente conciliadora. Mas, não obstante, com tudo isso foi possível conservar uma região imensa, irmanada no mesmo sentimento e controlada por um mesmo Estado.
Pois bem, esse ex- império tem muito prazer de dizer que há muito tempo não tem problema algum com nenhum de seus vizinhos, nem de fronteira nem de nada, e que, se hoje está aqui junto com a América do Sul, está com esse mesmo espírito — não de conciliação, porque não há em que nós nos conciliarmos —, mas de construção, de construção efetiva, de uma integração crescente, na qual o Mercosul, a Organização Andina podem realmente se juntar - e eu não vejo por que não. Desejamos que as instituições financeiras, renovadas, às quais fiz referência, possam financiar esse esforço comum e que nós, unidos, possamos talvez ter uma influência maior no nível internacional, para, aí sim, fazer o que não foi feito: caminhar na direção de um mundo no qual a globalização não seja tão excludente, onde a solidariedade não seja somente uma palavra, onde a democracia não seja apenas um credo para pregar aos demais e onde o respeito ao interesse dos mais pobres se torne realmente o fundamento ético de nossa ação comum.
Muitíssimo obrigado