Discurso durante a VII Reunião Ministerial - Palácio do Planalto, Brasília - 29 de outubro de 1990

Senhores Ministros, Senhores Secretários,

Antes de entrar nos temas específicos desta reunião, quero fazer um breve comentário sobre a visita que acabo de fazer a Portugal. Mantive intensas conversações com o Presidente Mário Soares e com o Primeiro-Ministro Cavaco Silva, verdadeiros líderes de uma Europa moderna. São personalidades, sem dúvida, de quem pode se afirmar que contribuíram, de forma decisiva, para criar um novo Portugal: o Portugal da consolidação democrática, da modernidade econômica, de uma presença forte na Comunidade Européia, de uma atuação internacional abrangente e criativa. Encontrei um país de forte dinamismo em todas as áreas e conduzido com grande sabedoria política. Encontrei um país próximo ao Brasil, de maneira que vai muito além dos bons e carinhosos laços de fraternal amizade que nos unem historicamente. Chamei atenção, em um dos meus pronunciamentos, para o fato de que, pela primeira vez desde 1922, presidentes dos dois países, eleitos ambos democraticamente, encontravam-se em uma visita de Estado. A democracia sedimentou uma linguagem política comum, ao mesmo tempo em que a atitude idêntica de defesa da economia de mercado e projetos convergentes de modernidade dão bases para que as relações luso-brasileiras ganhem sentido pragmático e efetivo.

Voltei com a certeza de que abrimos uma fase nova no relacionamento entre os dois países. A fraternidade exemplar será agora continuada com programas objetivos de trabalho comum e de cooperação. Estou muito satisfeito, portanto, com os resultados da visita e certo de que representou um passo expressivo na política externa brasileira.

Convoquei esta reunião de meu Gabinete para que façamos juntos uma reflexão sobre o momento brasileiro. Estas reuniões têm o sentido de reforçar, perante a sociedade e perante cada um de nós, a unidade de pensamento e de trabalho em nossa equipe. O encontro desta manhã coincide com a presença, nos meios de divulgação, de críticas que apontam supostos atritos entre setores e pessoas do Governo. A crítica é normal e necessária, mas deve ter fundamento, e não pode atender a interesses particulares que julgam ganhar com a criação de imagens afastadas da realidade. Na era das comunicações instantâneas, existe a tentação de emitir julgamentos definitivos a partir de avaliações apressadas e superficiais. Entre certos analistas da vida das sociedades, criou-se uma espécie de impressionismo que alega ser objetivo, mas, na realidade, é carregado de subjetividade. Os fatos são com freqüência objeto de leituras distorcidas e recebem um tratamento em que o episódico se sobrepõe ao permanente, em que o falso drama se sobrepõe às coisas do dia-adia, em que a parte se sobrepõe ao todo. Mas esse é um traço do mundo atual e não se pode ficar à espera de que a história venha finalmente corrigir a interpretação dos acontecimentos. Quando se pretende mudar a realidade, é preciso saber atuar com a objetividade, com os dados concretos e a atmosfera política do momento. Não há outra forma de praticar a democracia. Não há outro caminho para a conquista de um amanhã melhor. A era dos milagres já passou. Nos sistemas democráticos ninguém aceita viver de falsas noções. Estamos na era do trabalho. O Governo não tem receio dos fatos, pois os encara e está convencido de sua capacidade de liderar a Nação na luta para alterar os aspectos negativos de nossa realidade. O Governo acredita também em sua capacidade de tomar atitudes que consolidem e mantenham a confiança dos brasileiros em si próprios, nas instituições e no futuro desta Nação.

Formei uma equipe de governo jovem, ousada e corajosa. Nunca houve, em nossa história republicana, uma renovação de quadros tão profunda e abrangente; nunca houve transformações tão completas e coerentes com o que se propõe. Essa é a vontade do povo manifestada livremente nas urnas. Os brasileiros querem mudanças radicais e nós começamos a fazê-las desde o último dia 15 de março. Completamos este grupo com pessoas de ampla experiência, na área política, na vida parlamentar, no diálogo entre o Executivo e o Congresso Nacional, na arte de lidar com os atores e cenários que saem das urnas. Engajamos também personalidades mundialmente reconhecidas e respeitadas no campo científico, ambiental e acadêmico. Todos os integrantes de meu governo — dos mais jovens aos menos jovens — têm um traço em comum: aqui só se obedece ao interesse público. Aqui se trabalha por uma causa e por amor ao Brasil. Essa verdade incomoda aqueles poucos que muito se beneficiavam dos vícios do passado. O meu governo não deve favorés a quem quer que seja; deve apenas ao País o resgate dos compromissos assumidos, tanto no que diz respeito à execução de nosso programa como no que se refere ao exemplo de lisura, abnegação e patriotismo que temos a obrigação de dar ao Brasil e ao mundo.

São esses os valores pelos quais a sociedade deve avaliar o desempenho desta equipe. Os julgamentos baseados na hipocrisia jamais se prestaram a atitudes construtivas. O Governo é composto de homens e mulheres que vivem, que sentem e que sofrem como todos os seres humanos. Não se pode pretender que deixem de ser gente. O que se pode é exigir, como eu exijo, que no trato da coisa pública eles sejam eficientes, devotados, leais e incansáveis trabalhadores. Que se superem a cada dia. Para mim — e há de ser assim para a minha equipe — governar não é somente a realização de políticas bem concebidas que tenham efeitos sobre a realidade econômica ou social. Todos os atos do Governo, do mais simples ao mais complexo, deverão estar modelados pela mais estrita razão ética. Além de rigorosamente obediente ao que mandam as leis, cada ato deverá incorporar uma visão do interesse público que o converta na melhor e mais justa decisão para toda a nação brasileira. A ética da vida pública manda repudiar as ações que beneficiam os interesses particulares e exige decisões que defendam e promovam os interesses verdadeiramente coletivos.

Diante das dificuldades que temos, da insensibilidade de tantos em relação aos contrastes sociais, às ilhas de pobreza, ao abandono do menor, os agentes do Estado estão obrigados a um comportamento que os torne verdadeiros exemplos para a criação de um novo padrão de convivência entre os brasileiros.

É o rigor na postura ética que transformará, de forma definitiva, a imagem e a prática do Estado. Meu governo está identificado com a luta pela mudança social, está identificado com a absoluta probidade administrativa, está identificado com a liderança segura, com a fé no ideal democrático, com a criação de um futuro de justiça, bem-estar e dignidade para o cidadão. Desde 15 de março, a coisa pública vem sendo tratada com rigoroso sentido ético, de tal forma que o brasileiro começa, finalmente, a orgulhar-se do Estado que o representa. Estamos combatendo a corrupção e a sonegação como nunca se fez antes. É muito ilustrativo, dentre tantos outros, o esforço do Governo na apuração rápida das fraudes contra a Previdência. Os resultados já começam a aparecer, junto com as punições. Trabalhamos, assim, para a moralização da vida nacional e para o fortalecimento do sistema previdenciário, que constitui um instrumento indispensável à realização de nosso objetivo de avanço social equilibrado e harmônico. Desdobramento essencial da postura ética do Governo é a atenção prioritária às crianças do Brasil. Neste trabalho, temos de ir além da salvação de milhões de menores abandonados e vítimas de todo tipo de violência. Temos, também, a responsabilidade democrática de agir de acordo com a lei e com os sentimentos majoritários da Nação na promoção de um ambiente psicológica e culturalmente saudável para as crianças. Nossos filhos, nossas crianças, não podem ser expostos precocemente a imagens para as quais não estão ainda preparados, para as quais não desenvolveram ainda a necessária capacidade de julgamento crítico, porque, na vida, tudo tem seu tempo.

O meu estilo de chefia, acho que isso já ficou bem claro, é o da unidade de comando. Assumo integralmente a responsabilidade pelos atos do Governo. A extensão de minha responsabilidade pessoal como homem público não tem limites. Ao assumir este cargo, pus de lado os meus interesses individuais. Assim, não permitirei, em hipótese alguma, que se coloque em risco o grande projeto de reconstrução em que estamos empenhados, não admito que isso aconteça para favorecer ou proteger pessoas ou grupos em particular. Nenhum indivíduo tem a importância do ideal maior que perseguimos, o ideal de beneficiar todos e cada um dos brasileiros e construir uma sociedade que seja dignificada pela ação do seu governo. Unidade de comando significa também coesão da equipe. Não podemos perder o nosso norte. Em momento nenhum as diferenças de pontos de vista devem ser resolvidas entre nós, dentro de casa. É o que determina não só a ética de governo, mas o elementar bom-senso. A sociedade, nem tampouco eu próprio vemos com bons olhos os desentendimentos estampados nos meios de comunicação. Isso tem que parar. Os ministros e os secretários, e seus porta-vozes autorizados, devem falar profissionalmente, falar de suas áreas específicas de atuação. Sobre política, fala o Ministro da Justiça; sobre economia, fala a Ministra da Economia; sobre infra-estrutura, o Ministro da Infra-Estrutura; sobre relações exteriores, fala o Chanceler; e assim por diante. Essa norma é fundamental para a condução acertada do convívio entre o Governo e a Nação, entre as autoridades e a opinião pública. A Nação tem de saber que não há figuras intocáveis. Quem se colocar em desacordo com o nosso ideal terá de deixar o Governo; quem destoar do conjunto será substituído. Essas mudanças são parte normal da vida pública. São também instrumento essencial na manutenção da unidade da equipe e na ação ética do Governo.

Quem está em minha equipe de governo, está, em primeiro lugar, porque quer, e, sobretudo, porque eu quero. É preciso que a opinião pública saiba que não admito manobras para desgastar este ou aquele auxiliar. Quem está no Governo conta com a minha confiança e com o meu apoio. Esta é a contrapartida da lealdade e da dedicação com que todos os senhores aqui têm servido ao ideal que nos irmana e ao Brasil.

Este Governo não admite a existência de «eminências pardas», não admite a existência de influências ocultas, internas ou externas. Aqui a regra básica é a da transparência: os senhores, meus conselheiros, não devem admitir qualquer espécie de interferência no processo decisório dentro de suas áreas.

Escolhi alguns aspectos do trabalho que vem realizando o Governo para ilustrar o fato de que atuamos em harmonia com os sentimentos predominantes na sociedade. No relacionamento com os Poderes Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público, temos cumprido rigorosamente a letra e o espírito da Constituição. As discordâncias que surgiram são absolutamente normais e até desejáveis numa democracia. Perigoso seria se não ocorressem. É, no entanto, fundamental que todos os poderes constituídos se fortaleçam, para melhor poderem servir ao interesse nacional. Não deve haver ressentimentos e desconfianças entre nós. Afinal, o nosso objetivo é um só. Os resultados das eleições devem ser vistos com atenção. O número de votos brancos e nulos é indício que requer exame cuidadoso. Cabe ao Congresso recuperar o prestígio que teve no passado, perante a Nação como um todo. O meu governo deseja avançar lado a lado com um Parlamento vigoroso e responsável, com um Parlamento que, diligente e operoso, seja palco de debates e decisões sobre os temas fundamentais da vida do País. O Brasil prepara-se para a hora em que deverá optar entre o presidencialismo e o parlamentarismo. Para que o parlamentarismo seja de fato alternativa viável, será necessário contar com um Legislativo consolidado pela postura ética e pelo funcionamento eficaz. Mais do que ninguém, o Parlamento deve ajudar-se nessa tarefa. Queremos ao mesmo tempo colaborar para um Judiciário mais ágil, dotado dos meios mais modernos que lhe permitam vencer as dificuldades que lhe obstruem os passos. O engrandecimento do Congresso e do Judiciário é imprescindível à construção de um país verdadeiramente novo.

A proposta que apresentamos para a renegociação de nossa dívida externa guarda fiel sintonia com as posições que sempre defendemos. Agradeço ao conjunto da sociedade o apoio que nos tem dado: Agradeço também, de maneira muito especial, o respaldo recebido no Senado da República. Esse apoio é essencial no encaminhamento dos complexos entendimentos que se iniciam. Os negociadores brasileiros, nesta tarefa, contam com a delegação e com a inteira confiança do Presidente da República. Nossa proposta é inovadora e criativa; tem como base o princípio de que a dívida será paga em termos que não prejudiquem o crescimento de nossa economia, e de acordo com nossa capacidade de desembolso. Ao contrário do que ocorria antes, é o esquema de pagamento da dívida que deverá adequar-se aos imperativos do desenvolvimento do País. Nessa retificação — há muito esperada — da ordem de prioridades, não temos qualquer ânimo de confrontação com os credores ou de inviabilização de fórmulas consensuais. Ao contrário, estamos prontos para a negociação e para o diálogo. Soluções novas e construtivas, não tenho dúvida, serão encontradas para garantir desfecho positivo. Esperamos, no entanto, que os nossos credores tenham muito presente a necessidade de  garantir e melhorar a saúde de nossa economia. Com os investimentos que fizeram aqui, eles são parceiros naturais no esforço diário dos brasileiros pelo progresso e pela justiça social. Fazemos votos de que seja exatamente esse o espírito a presidir o nosso diálogo. A imagem internacional do Brasil deu um verdadeiro salto adiante nos últimos meses, e isso é da maior importância nas negociações sobre a dívida. Na questão do meio ambiente, por exemplo, passamos da condição de réu acuado a uma posição de vanguarda na luta mundial pela preservação ecológica. Em matéria de política comercial, fizemos muito, especialmente com as medidas de liberalização das importações. Estamos abrindo gradual mas decisivamente a economia nacional à concorrência externa. A extensão dessas mudanças é reconhecida por meus interlocutores em todo o mundo. O Brasil quer uma economia aberta porque sabe que é esse o caminho necessário para o crescimento econômico estável. Assim, é preocupante que, no âmbito das conversações ora em curso no GATT, na «Rodada Uruguai», sejam os países desenvolvidos, que teriam melhores condições de promover a abertura econômica, exatamente os que resistem a concessões em áreas fundamentais como a agricultura. Hoje, pelo muito que já empreendemos, o Brasil encontra-se nesse terreno na situação de credor de concessões alheias. Isto não significa, porém, qualquer sentido de intransigência. Queremos que as regras do mundo da economia sejam sólidas, espelhem a interdependência e facilitem o desenvolvimento. Para isto, com visão clara do que são os nossos interesses, os representantes do Governo brasileiro atuam, no GATT, no sentido do diálogo e do entendimento.

Como afirmei na semana passada perante o Parlamento português, não se pode aceitar que o colonialismo político e o neocolonialismo econômico sejam substituídos por um regime de cunho igualmente colonial na área do conhecimento, e da ciência e tecnologia. É preciso cada vez mais que o mundo se convença da necessidade de abrir as portas ao Brasil e a todos os países em desenvolvimento, para que possamos continuar a acreditar nos benefícios de nos abrirmos ao mundo.

Aliviada com o fim do bipolarismo ideológico-estratégico, a comunidade internacional não pode agora assistir ao surgimento de um novo bipolarismo entre países ricos e países pobres. O planeta é um só, a humanidade, só uma. Não se deve perder de vista o sentido da história. Não pode levar a bom termo a ampliação do abismo que separa os que pouco ou nada têm daqueles que tudo têm e tudo querem.

O combate à inflação continua a ser a prioridade número um do meu governo. Nossa determinação, não tenham dúvida, não esmorecerá. Vamos alcançar níveis civilizados de preços. Continuaremos a manter controle estrito das políticas fiscal e monetária, bem como a austeridade dos gastos do setor público. A reforma administrativa e patrimonial segue o seu curso inexorável. Os agentes econômicos devem acreditar de uma vez por todas que o meu governo não vai desistir desta batalha. Quanto mais depressa se derem conta disso, e quanto mais rapidamente abandonarem as práticas da cultura inflacionária, menores serão os custos, para si próprios, dos remédios que temos de ministrar. O processo de entendimento nacional deve ser reforçado e prosseguir exatamente nessa direção, para que sejam atenuados os efeitos do sacrifício que todos nós estamos fazendo. Renovo aqui meu apelo aos empresários no sentido de que evitem repassar para os preços todos os aumentos de custos. Lucros menores hoje são a única possibilidade de sobrevivência no dia de amanhã. Aos consumidores peço que continuem a lutar comigo contra os preços altos, que não aceitem e que denunciem os abusos, que imponham a moralização definitiva do nosso mercado. A sociedade e o Governo não podem contemporizar com os empresários que querem capitalismo sem risco e sem competição; não podemos contemporizar com certos setores privilegiados que reclamam aumentos de salário sem aumento de produtividade; não podemos contemporizar com os funcionários que desejam garantia de emprego sem um desempenho à altura do exigido.

Prezados Colaboradores,

O Governo tem credibilidade nacional e internacional. Já conseguimos devolver aos nossos compatriotas o otimismo em relação ao futuro e a convicção de que precisavam para entregar-se de corpo e alma à tarefa de erguer um Brasil novo. Estamos deixando a fase da esperança e já ingressamos na era da confiança. O apoio de todos ao programa do Governo deve basear-se apenas no reconhecimento de que ele é bom para o Brasil, porque escolhido pelo voto direto, pela sociedade brasileira. De forma alguma este apoio pode ser subjugado por interesses individuais ou por sentimentos corporativistas. Isto é inaceitável. Nós trabalhamos, isto sim, para todos os brasileiros, com absoluta prioridade para os mais fracos e desassistidos, para os pésdescalços, para os descamisados. A fé e a determinação de nossa gente nos dão forças para prosseguir no caminho que o País escolheu. É o caminho certo e haveremos de percorrê-lo até o fim, superando os obstáculos que se colocarem diante de nós e dificuldades, sejam elas quais forem, que iremos encontrar. Com o respaldo do povo e a bênção de Deus, o meu governo está preparado para enfrentar e vencer as batalhas que surgirem. Serão cinco anos de governo sério, honesto, atento, corajoso, arrojado e obstinado.

O Brasil sabe que jamais fugiremos à luta, jamais fugiremos à luta. Estamos prontos para ela. Prometemos mudar o País. É o que estamos fazendo e o que continuaremos a fazer. Que Deus nos ajude e ilumine nossa caminhada.