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Discurso do Ministro Mauro Vieira na abertura do XIV Curso para Diplomatas Sul-Americanos – Brasília, 6 de abril de 2016
Foto: AIG/MRE
É para mim motivo de especial alegria participar desta cerimônia de abertura do XIV Curso para Diplomatas Sul-Americanos.
Gostaria de cumprimentar os integrantes da mesa e, em particular, a Fundação Alexandre de Gusmão, na pessoa de seu Presidente, Embaixador Sérgio Moreira Lima, pela inciativa e pelo empenho na organização deste evento.
Quero também saudar os colegas diplomatas dos diversos países sul-americanos que participarão do curso e reiterar-lhes que é com muita satisfação que os recebemos aqui em Brasília.
O Curso para Diplomatas Sul-Americanos é uma importante ação do Governo brasileiro voltada para a aproximação entre nossos países e para a promoção de maior conhecimento mútuo. Trata-se de uma iniciativa única em nossa região, que reflete o caráter estratégico conferido pelo Brasil à integração sul-americana.
Gostaria de apresentar aos senhores, de maneira panorâmica e sucinta, as linhas mestras da política externa brasileira em relação ao nosso continente, e em seguida indicar alguns dos principais desafios que enfrentamos no momento.
O Brasil é o terceiro país do mundo em número de vizinhos. Compartilhamos fronteiras com dez países. Temos a terceira maior linha de fronteira, com 16,9 mil quilômetros de extensão. Nosso território foi definido de maneira negociada, em tratados celebrados ainda no final do século XIX e no início do século XX.
Essa consolidação precoce do extenso território brasileiro moldou nossa vocação para a promoção da paz e do diálogo na América do Sul. Reforçou, também, nossas credenciais para defender, em outras regiões do mundo, a busca de soluções negociadas de controvérsias e a prevalência do direito internacional.
Foi em função desse espírito cooperativo que pudemos, desde o início do século XX, estruturar nossa política externa em torno de um conjunto de princípios que regem nossa atuação cotidiana: a igualdade jurídica entre os Estados, a não intervenção e a valorização da diplomacia em detrimento do uso da força.
Alguns desses princípios foram defendidos com veemência por Rui Barbosa, representante brasileiro à Conferência de Paz da Haia, em 1907, com o apoio decisivo dos demais países sul-americanos presentes àquela reunião. Isso levou o delegado russo a exclamar que a “América do Sul foi uma revelação para todos nós”, e o delegado norte-americano a afirmar que o evento marcou “o advento da América do Sul nos destinos do mundo”.
Já estava claro então que compartilhávamos visões comuns e podíamos agir em conjunto na defesa da paz e no desenvolvimento de vários institutos do direito internacional, como o direito de asilo e a solução de diferendos por meios pacíficos.
Não obstante essa sintonia no plano dos valores e das perspectivas sobre a ordem internacional, uma maior e efetiva integração entre os nossos povos ainda demoraria a acontecer.
Em primeiro lugar, porque a lógica preponderante durante a maior parte do século passado era a da geopolítica, do antagonismo entre Estados, de prevalência do poderio militar e do desenvolvimento econômico autárquico.
Em segundo lugar, porque ao longo dos séculos XIX e XX a América do Sul não ficou imune a um cenário mundial marcado por disputas políticas que envolveram, em diferentes etapas, o imperialismo, o colonialismo e a Guerra Fria. Esse quadro mais amplo explica a prioridade concedida aos laços com potências extracontinentais.
Foi nos últimos trinta anos que isso se modificou. Embora nossos projetos de associação remontem aos anos 60, havia então um enfoque fundamentalmente comercial, circunscrito à Associação Latino-americana de Livre Comércio (ALALC), antecessora da atual ALADI.
Somente a partir dos anos 80 ganha impulso a ideia de que teríamos muito a ganhar se nos uníssemos em torno de objetivos comuns também em outras áreas. Foi o momento em que nossos países deixaram para trás regimes autoritários e se depararam com uma conjuntura econômica internacional difícil, marcada pela crise da dívida e por obstáculos para sua inserção na economia internacional.
Quero mencionar aqui, em particular, o MERCOSUL, que há poucos dias completou 25 anos, e que constituiu uma iniciativa de integração profunda inédita entre países em desenvolvimento. Seus resultados são muitas vezes subestimados, embora ele tenha possibilitado, por exemplo, que o comércio entre seus membros crescesse mais de 10 vezes desde 1991, saltando de US$ 4,5 bilhões para mais de US$ 50 bilhões em todos os últimos cinco anos, com um pico histórico de US$ 63 bilhões em 2011.
Para além do volume, esse comércio é de qualidade, composto em sua maioria de produtos manufaturados. Em 2015, por exemplo, os produtos industrializados responderam por mais de 80% das importações brasileiras originárias dos membros do MERCOSUL.
Temos também acordos comerciais com todos os países sul-americanos, o que permitirá que nosso continente constitua, idealmente antes do fim da década, uma área de livre comércio. Graças a essa rede de acordos, o comércio entre os membros da ALADI saltou de US$ 37 bilhões em 2002 para US$ 160 bilhões em 2013, ano em que atingiu seu maior patamar na história.
Os resultados do MERCOSUL transcendem, no entanto, o campo estritamente econômico-comercial. A criação do grupo permitiu que se estabelecesse uma crescente coordenação entre nossos países em diversas áreas e setores. Por exemplo, o Fundo de Convergência Estrutural, o FOCEM, criado há menos de uma década, já aprovou mais de 40 projetos, com valor superior a US$ 1 bilhão, sempre em benefício das regiões de menor desenvolvimento relativo de nossos países.
O MERCOSUL também promoveu uma intensa aproximação entre nossas sociedades civis. Foi possível inaugurar uma etapa inédita do processo de integração por meio do chamado “MERCOSUL Cidadão”, com esteio em vários acordos de residência, trabalho, previdência social, educação e turismo.
O pilar econômico-comercial é fundamental para nossa integração, mas não é a única medida de nossos êxitos. Uma integração bem-sucedida passa também por um envolvimento pleno de nossas sociedades e pela compreensão de que os ganhos sociais e políticos serão fundamentais para fortalecer a cooperação entre os nossos países.
Como observou a Presidenta Dilma Rousseff, o Brasil e seus vizinhos compartilham não apenas o mesmo projeto, mas principalmente o mesmo destino, que é o de construirmos uma região marcada pela paz, pela democracia e pela cooperação. A visão deste destino comum explica nosso elevado nível de ambição e exige de nós um trabalho contínuo e permanente de aperfeiçoamento dos instrumentos de que dispomos para o processo de integração.
Caros colegas,
A América do Sul é hoje um caso muito particular num mundo marcado por conflitos armados, divisões sectárias e violência dos mais diversos tipos, do terrorismo à xenofobia.
Somos uma região de paz. Estamos livres, por decisão própria, de armas de destruição em massa. Eventuais disputas em nosso continente são superadas por meio do diálogo político ou no âmbito dos diferentes mecanismos de solução de controvérsias. Nossas autoridades se encontram com frequência e coordenamos nossas posições sobre vários temas relevantes da agenda internacional.
Essa postura de apego à convivência pacífica e à cooperação é antes a exceção do que a regra no cenário mundial. Acabo de retornar da Cúpula de Segurança Nuclear, ocorrida em Washington, na semana passada. Brasil, Argentina e Chile defenderam mais uma vez o desarmamento como o verdadeiro caminho para a paz e a segurança internacional.
Mesmo nos casos em que lidamos com diferenças, sabemos priorizar o diálogo e a negociação. A Colômbia atual é um grande exemplo de vontade política e perseverança na busca da paz. Saudamos o governo e o povo colombiano por sua determinação em alcançar o fim do conflito armado em seu território e estamos certos de que uma nova era de paz e desenvolvimento será inaugurada no país e na região.
Somos também um exemplo de boa convivência. Nossos países receberam, ao longo de sua história, imigrantes das mais diversas origens. Aqui eles se integraram e reconstruíram suas vidas. No caso do Brasil, cerca de metade de nossa população é de afrodescendentes e temos grande contingente de população de origem europeia, asiática e do Oriente Médio.
Essa postura aberta se estende, de maneira geral, à promoção e proteção dos direitos humanos. Os países sul-americanos são parte dos principais instrumentos internacionais e atuam de maneira ativa no sistema internacional de direito humanos, inclusive no próprio contexto interamericano. Reconhecemos que temos desafios internos na promoção dos direitos das populações mais vulneráveis, como os afrodescendentes, os portadores de deficiência e os grupos LGBTI, mas dispomos de vontade e de empenho para superá-los.
A América Latina tem sido também uma das regiões mais bem-sucedidas no combate à fome e na redução da pobreza ao longo dos últimos 25 anos. Segundo dados do Banco Mundial, a parcela da população em extrema pobreza na região caiu de 12% em 1990 para cerca de 4% em 2015. O Brasil foi recentemente excluído do “mapa da fome” elaborado pela FAO. Em seu relatório sobre insegurança alimentar no mundo publicado no ano passado, a FAO também indicou que, entre 2002 e 2014, o número de pessoas subalimentadas no Brasil caiu 82%, a maior cifra entre as seis nações mais populosas do mundo.
Por fim, temos o privilégio de sermos um continente em que prevalece a democracia. Foi ela que estabeleceu as bases para a integração entre nossos países. Não por acaso, a aliança estratégica entre o Brasil e a Argentina, que resultou posteriormente no MERCOSUL, decorreu da assinatura da Declaração de Iguaçu, justamente num contexto em que os dois países saíam de regimes autoritários e se redemocratizavam.
Democracia aqui significa não apenas o respeito à ordem constitucional e a aferição da vontade popular em eleições periódicas livres e plurais, mas também a dedicação contínua ao combate a pobreza e à redução das graves desigualdades sociais que infelizmente marcaram a história de nosso continente.
Senhoras e senhores,
A democracia possibilitou que deixássemos para trás rivalidades reais ou imaginárias, em prol da busca de objetivos comuns. Posso citar alguns exemplos que demonstram a mudança substantiva que ocorreu na relação entre os países sul-americanos nas últimas três décadas.
O primeiro exemplo refere-se ao aspecto comercial. Nas últimas décadas nos tornamos cada vez mais relevantes como parceiros no comércio exterior. Hoje a América do Sul é um mercado tão importante para o Brasil como a China, os Estados Unidos e a União Europeia. Esse mesmo fenômeno ocorre com os outros países sul-americanos.
O segundo exemplo diz respeito à nossa cooperação em defesa, a partir do reforço dos laços políticos construídos por governos democráticos em nossos países. Foram eles que permitiram, por exemplo, que o Brasil e a Argentina passassem a cooperar no campo nuclear e criassem a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares, a ABACC, exemplo único no mundo.
O terceiro exemplo é o da constituição de foros regionais próprios, que vieram complementar o tradicional sistema hemisférico baseado na OEA - Organização dos Estados Americanos. Hoje contamos, além dos organismos subregionais como o MERCOSUL, com a União de Nações Sul-Americanas - UNASUL e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos - CELAC.
Caros colegas,
Reconhecer avanços não significa desconhecer os diversos desafios que temos diante de nós.
Queremos fortalecer nossa presença comercial no mundo. Vivemos um momento difícil da economia mundial, que alguns economistas chegam a classificar como de “estagnação secular”, em que o crescimento econômico enfrenta obstáculos e em que os Estados parecem incapazes de encontrar os meios para uma plena recuperação da crise iniciada em 2008.
É nesse contexto de dificuldades que os países sul-americanos têm de desenvolver suas estratégias de inserção no mundo. No caso do Brasil, temos duas prioridades imediatas.
A primeira é ampliar os acordos que já temos na nossa região, com o propósito de tornar a América do Sul uma área de livre comércio antes do final desta década. Por isso, queremos acelerar cronogramas de desgravação tarifária e ampliar a cobertura dos acordos de complementação econômica que temos com países como a Colômbia, o Peru, o Equador e também o México. É esse interesse que motiva o importante diálogo em curso entre o MERCOSUL e a Aliança do Pacífico.
Essa vertente regional não é incompatível com o esforço de buscar novos mercados em regiões dinâmicas como a Ásia e aprofundar a relação com países desenvolvidos e em desenvolvimento. Muito pelo contrário: o MERCOSUL obedece à lógica de abertura ao mundo que esteve na base de sua constituição há 25 anos.
Isso nos leva à segunda prioridade: avançar na diversificação do relacionamento externo do MERCOSUL, por meio da celebração de novos acordos, como o que estamos negociando com a União Europeia. O MERCOSUL tem feito sua parte e já está pronto para realizar uma troca de ofertas de acesso a mercados com a União Europeia, o que deve ocorrer em breve, como esperamos.
Outro desafio é a promoção da integração física e energética. A despeito dos avanços obtidos nos últimos anos, ainda temos carências significativas nessas áreas, que exigem estudos e investimentos de monta. A criação de corredores bioceânicos integrando diversos modais de transporte é fundamental para a ampliação do trânsito de pessoas e mercadorias entre nossos países e com outras regiões do planeta. É o caminho para reduzir custos e gerar complementaridades. Temos também de valorizar mais as conexões aéreas diretas entre nossos países, inclusive por meio de companhias regionais.
Da mesma forma, a integração entre nossos sistemas de energia permitirá aumento da eficiência e contemplará, em nossos países, as regiões mais afetadas pela carência desse insumo fundamental para o crescimento econômico. A decisão dos países sul-americanos de priorizar sua integração energética deixa claro que os recursos energéticos são estratégicos e fundamentais para o desenvolvimento de nossos países.
Um terceiro desafio é assegurar à nossa região uma posição nos foros multilaterais condizente com sua tradição de paz e seu peso específico na comunidade internacional.
A América Latina e o Caribe e a África são as duas únicas regiões do planeta sem um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, embora congreguem, juntas, 86 países, o que equivale a quase 45% do total de membros da Organização.
Nossa região tem todas as credenciais para ter mais voz nos assuntos relativos à paz e à segurança internacional: somos grandes contribuintes de operações de manutenção da paz, somos uma região livre de armas de destruição em massa e atuamos consistentemente na defesa dos princípios fundamentais da Carta das Nações Unidas.
Ainda no plano multilateral, temos também uma preeminência natural em debates sobre temas relativos ao meio ambiente e à mudança do clima. Somos uma região rica em recursos naturais, com grande diversidade biológica e uma matriz energética diversificada.
Em 2012, o Brasil sediou a Conferência Rio+20 e, em 2014, o Peru sediou a COP-20, eventos que permitiram os avanços necessários para que chegássemos ao Acordo de Paris, em dezembro passado.
Temos muito a contribuir para a consecução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, no âmbito da Agenda 2030. Defender essa agenda faz parte de nossa responsabilidade de dar ao desenvolvimento a importância que lhe é devida. As grandes questões da paz e da segurança não encontrarão soluções sustentáveis se descoladas do combate à pobreza e da promoção do desenvolvimento sustentável.
Por fim, creio que temos pela frente o grande desafio de assegurar às novas gerações os instrumentos necessários para que possam fazer nossos países progredirem. Falo aqui da educação e dos avanços em ciência, tecnologia e inovação.
É inquestionável que ganhos de produtividade e competitividade só poderão resultar de mais qualificação e de maior capacidade inovadora de nossos jovens e de nossos trabalhadores em geral.
A educação constituirá também o mais importante vetor da inclusão social em nossos países. A despeito de nosso êxito na redução dos níveis de pobreza, temos diante de nós a obrigação de reduzir a vulnerabilidade das camadas de menor renda por meio do acesso à educação de qualidade, inclusive aquela voltada à formação técnica e profissionalizante.
Senhoras e senhores,
Nossos países estão unidos não apenas pela geografia, mas também por laços humanos, culturais e por objetivos comuns: a promoção da paz, dos direitos humanos, da inclusão social e de uma ordem internacional mais justa.
A América do Sul é para nós mais do que uma circunstância. É um espaço que estamos construindo juntos e em que a integração é um objetivo incontornável.
Concluo invocando as palavras de um diplomata brasileiro que foi pioneiro defensor do processo de integração em nosso continente, Manuel de Oliveira Lima. Ao ponderar, em 1907, que, por pertencermos ao mesmo continente, estamos unidos pelos “mais estreitos laços de sangue, de economia e de civilização”, ele concluiu que “o nosso rumo moral é idêntico, de trabalho e de paz”.
Oliveira Lima tinha como referência um mundo que já não existe, em que a América do Sul ainda era vista como frágil e suscetível a influências externas muitas vezes desagregadoras. Sua mensagem encerra, porém, um ideal que nos move ainda hoje: o de que unidos poderemos defender nossos interesses e projetar nossos valores no mundo de modo mais eficaz, contribuindo assim para o maior progresso e bem-estar de nossos povos.
Desejo a todos um excelente curso durante a estadia em Brasília e nas demais cidades, e agradecer também a presença dos Embaixadores sul-americanos.
Muito obrigado.