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Palavras em audiência na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados - 12 de maio de 2004
Senhor Presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado; Senhora Vice-Presidente da Comissão da Câmara; Senhoras e Senhores Senadores; Senhores Deputados; senhoras e senhores, Obviamente estarei disposto a falar sobre qualquer assunto de política externa, inclusive, naturalmente, o das inspeções, se isso for considerado adequado, mas entendo que a curiosidade principal em relação a essa reunião, afora outros assuntos pertinentes, seja sobre a questão do Haiti. Inclusive pedi que preparassem uma informação escrita, e creio ser importante que Vossas Excelências leiam com atenção, mas vou fazer algumas observações de natureza geral, mais sobre o aspecto político, naturalmente, até porque o aspecto operacional cabe mais diretamente ao meu colega, Ministro José Viegas Filho. E, dentro dessa apresentação sobre os aspectos políticos, vou procurar também esclarecer algumas dúvidas e posições, muitas vezes bem-intencionadas, mas pelo menos equivocadas. É natural que, em primeiro lugar, talvez até de certa maneira respondendo a uma indagação implícita do Deputado Fernando Gabeira, tudo esteja sujeito à autorização do Congresso Nacional. Nenhum compromisso internacional é definitivo – e essa ressalva sempre foi feita em qualquer contrato que celebramos –, está sujeito à manifestação de intenção do Executivo e à aprovação do Congresso Nacional. Mas queria enfatizar alguns aspectos importantes. Primeiro, em toda situação devemos imaginar qual é a alternativa que existe, sempre olhando também para o futuro. No Haiti, obviamente, não existe a alternativa de um alto Governo local se formar e poder exercer a ordem e construir o país. No momento, não existe essa alternativa. A alternativa seria o caos absoluto. O número de facções existentes não respondem necessariamente a chefes específicos.
O risco de um estado de insurreição, misturado com criminalidade, é muito grande. Então, a presença internacional no Haiti, uma presença – e vou voltar a este ponto – aprovada pelas Nações Unidas, é a única esperança ao país. Se vamos conseguir resolver todos os problemas do Haiti – que são tão complexos e de longa data –, não posso ter certeza, mas é a única esperança que existe hoje em dia. A nossa preocupação, em toda a discussão do assunto – discussão internacional do assunto – foi sempre a de chamar a atenção para esse fato. O Haiti foi objeto de ações internacionais, por assim dizer – consideradas não intervenções, mas ações internacionais –, em momentos de emergência e para resolver problemas específicos, mas pouco tempo depois era abandonado pela comunidade internacional, e a situação voltava à mesma situação preexistente. Isso, aliás, foi o que ocorreu com o próprio Governo Aristides, instalado no poder por uma intervenção militar – não estou discutindo os motivos – de uma força multinacional autorizada pelas Nações Unidas. Não era uma força das Nações Unidas, mas uma intervenção comandada pelos Estados Unidos. O Aristides foi instalado com muitas promessas de ajuda da comunidade internacional, mas, com o passar do tempo – e é difícil afirmar isso, pois há uma dialética entre o próprio Governo, as omissões do Governo e as omissões da comunidade internacional –, o Haiti foi voltando não só a uma situação de ingovernabilidade, palavra muito fraca para definir o que ocorria naquele país, mas a uma situação quase caótica, a ponto de ser reconhecido – e os Senhores Senadores e Deputados que se interessarem poderão ter acesso a esse relatório –, pelo próprio Secretário-Geral, em seu relatório preparatório da última Resolução, que, se não tivesse havido nenhum tipo de ação internacional, teria havido no Haiti um banho de sangue, sem nenhuma perspectiva de uma solução pacífica. Portanto, a primeira questão que menciono é esta: o espírito com que o Brasil participa disso. É um espírito de responder a um chamado de uma emergência de segurança militar, não só para atender ao interesse desse ou daquele país, mas para atender, sobretudo, ao interesse de participar, efetivamente, do processo de reconstrução do Haiti, primeiro país independente na América Latina, com uma história de sofrimento, de grandes crises políticas, e pelo qual pouco se fez de maneira efetiva. Repito que essa foi a nossa atuação durante a discussão de todas as resoluções das Nações Unidas – sujeitos, naturalmente, como sempre tenho dito até nas minhas conversas pessoais com o Senhor Kofi Annan e com outras autoridades, à aprovação do Congresso Nacional.
A nossa disposição de participar foi sempre condicionada, do ponto de vista de política externa, pela convicção de que uma participação ativa do Brasil nos daria maior autoridade moral para influirmos nas resoluções da ONU e, portanto, para garantir que esse compromisso da autoridade internacional com a reconstrução do país seja por longo prazo, e não apenas uma ação de emergência para evitar que exista boat people ou algum problema migratório, que pode ser um problema específico para alguns, mas não é aquilo que nos move. Essa, então, é uma questão. O segundo ponto refere-se a um problema importante na nossa região. Como disse, o Haiti é o país há mais tempo independente na América Latina e o terceiro país de população negra nas Américas – o segundo nas Américas, e maior da América Latina, é o Brasil. O Brasil, freqüentemente, tem dito e reiterado no Governo do Presidente Lula, mas também em outros Governos, que deve estender as mãos para a África. Seria estranho, então, não estendermos as mãos para um país com a segunda maior população negra da América Latina e a terceira no Continente, o Haiti, que busca uma chance para se reconstruir. Essa ação do Brasil é em geral muito bem vista por todos aqueles com quem temos conversado. Não vou esconder de Vossas Excelências que há críticas ou que houve críticas à situação em si ou à circunstância em si em que o Presidente Aristides saiu, embora haja uma carta dele apresentada pelo seu Embaixador ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Há, digamos, talvez, uma área cinzenta. Mas, como disse antes, temos que olhar para a frente. Enviamos uma missão de altíssimo nível chefiada pela Embaixadora Vera Pedrosa a muitos países do Caribe que estão vivendo em situação crítica para ouvi-los e para demonstrar as intenções brasileiras. Recentemente ouvimos também, ainda que de maneira informal, interesse, por exemplo, do novo Governo espanhol em acompanhar a situação. Em todo o Caribe e na América Latina, e mesmo em outros países, temos sentido que a presença do Brasil no comando das tropas é algo extremamente bem recebido, bem-vindo, e uma garantia, digamos, talvez não absoluta – porque nada é absoluto –, de que essa ação das Nações Unidas é dirigida em prol do povo haitiano para criar as condições para que o próprio povo haitiano, efetivamente, por meio de processos eleitorais democráticos, reconstrua o seu tecido político e, digamos, o seu desenvolvimento nacional. Pode-se dizer que é um pouco ilusório querermos melhorar um país que está há duzentos anos nessa situação, mas trabalhamos sempre com base na esperança e não no ceticismo. É desse espírito que estamos imbuídos não só no envio da tropa, mas em toda a nossa participação diplomática em relação ao tema.
Queria também mencionar algumas questões que são objeto, às vezes, de críticas, muitas delas bemintencionadas, mas equivocadas. A primeira delas é a comparação da situação do Haiti de hoje com a da República Dominicana em 1965. Na República Dominicana, em 1965, houve uma intervenção militar não apoiada pelo Conselho de Segurança. Procurou-se uma maneira ilegítima de buscar um apoio externo, no caso e na época, na OEA, que não tem autoridade para autorizar o uso da força. No Haiti, desde o início, todas as operações foram autorizadas pelo Conselho de Segurança, foram objeto de decisões unânimes daquele Conselho, tanto a primeira Resolução, a de nº 1.529, que autorizou essa força que está lá no momento, como, e mais importante ainda, a de nº 1.542, que autoriza a criação da força de paz da qual o Brasil participará. O Brasil não está lá apenas numa ação multinacional autorizada pela ONU, o que já seria diferente do caso da República Dominicana, mas sim em uma força das Nações Unidas. Isso é muito importante, sem falar, obviamente, no contexto internacional daquela época, de Guerra Fria, e no Brasil, de Regime Militar. Estamos em contextos totalmente diferentes. Essa é uma ação democrática, uma projeção externa do Brasil do desejo de ajudar a manter a paz e a segurança no seu Continente e de contribuir para a reconstrução de um país irmão. Também não se pode comparar a situação atual com a de 1994, que, diferentemente da de 1965, contou com o aval das Nações Unidas. Foi um aval a uma força basicamente multinacional, ou seja, construiu-se uma força de intervenção multinacional com o aval das Nações Unidas e sob o comando norte-americano, que, posteriormente, instalou Aristides no poder. O Brasil se absteve da votação. Por acaso, eu era Chanceler na época e não queríamos que houvesse uma força de intervenção para derrubar o Governo, ainda que fosse este ilegítimo, até pelo princípio da não-intervenção.
É diferente da situação atual em que havia um vácuo e uma ameaça de caos. A Resolução de 1964 tinha inclusive uma expressão, que foi utilizada em outras resoluções, que era a possibilidade de a força militar usar de todos os meios necessários, o que é, digamos, uma espécie de eufemismo para o emprego da força militar em qualquer circunstância. A resolução, toda ela, foi aprovada sobre o Capítulo VII das Nações Unidas, que diz respeito exclusivamente à paz e à segurança internacional e ao uso da força, diferente dessa que, cujo conjunto e por insistência brasileira, acaba de ser aprovada sobre o Capítulo VI. É, portanto, uma resolução de operação de paz, embora tenha um componente no Capítulo VII, até para permitir que as forças militares possam se defender, caso atacadas. Repito sempre que não cabe, nem diante do público, muito menos diante do Congresso Nacional, criar ilusões. Não é um passeio, é uma operação de paz, na qual há riscos, como houve riscos em outras operações de paz em que o Brasil esteve envolvido. Por exemplo, em Angola, morreram três soldados brasileiros de malária. Contraíram a malária nas selvas de Angola, mas contribuíram para a paz mundial. Essa é sempre uma avaliação que temos que fazer. Estabelecidas as diferenças jurídicas e políticas dessa operação com aquelas das ações ou intervenções anteriores que existiram no Caribe, seja na República Dominicana, seja no próprio Haiti, quero fazer dois ou três comentários de natureza geral. Um é este: o Brasil é um país que tem, hoje, uma política externa muito atuante, uma política externa reconhecida por todos, o que muitas vezes incomoda. É uma política externa que reconhece a responsabilidade de um país como o Brasil. A paz não é um bem livre. Quando as pessoas dizem: por que temos que nos meter aqui ou ali? A paz não existe de graça. A paz tem um preço, e temos uma responsabilidade, sobretudo dentro da nossa região do mundo; se não exercermos essa responsabilidade, outros exercerão. Não é do interesse brasileiro que essa intervenção ocorra em momentos em que a paz possa ser atingida por outros meios, mesmo que a ação esteja embasada em plena legitimidade não só política, mas também jurídica, legal, e sempre defendemos esse ponto. Por que o Brasil criticou tanto a invasão do Iraque, a Guerra do Iraque? Porque procurava realizar, por meios militares, algo que, na nossa opinião, poderia ser obtido por meios pacíficos, que era a comprovação da existência ou não de armas de destruição de massa, e, sobretudo, porque se fez ao arrepio das Nações Unidas, sem autorização do Conselho de Segurança. Aqui temos uma situação totalmente distinta. É uma ação aprovada, apoiada pelo Conselho de Segurança.
Quero dizer também, como complemento, que essa missão terá um importante componente civil. Estamos estudando e discutindo como trabalhar esse componente. Por exemplo, o Haiti é um país combalido pelo analfabetismo e por doenças como a AIDS. Em sendo assim, o Brasil está estudando também como participar – é claro que isso também terá um custo – do componente humanitário, do componente civil e também, digamos, da parte mais estritamente diplomática. São conversas que ainda estão se desenvolvendo, mas quero deixar muito claro que a nossa participação, obviamente, o núcleo que nos dá autoridade para tratar desse assunto no Conselho de Segurança – não como quem dá um palpite, mas como quem está engajado – é o fato de estarmos envolvidos no aspecto também militar da força. Enfim, poderia me estender mais, mas creio que, talvez, o Ministro Viegas possa abordar alguns aspectos. Quero abordar, somente, dois outros pontos relativos ao assunto. Há também a indagação: por que o Brasil não participa com 100 ou 200 soldados? Se o Brasil enviasse esse contingente, o risco seria maior, porque o Brasil, tendo uma participação maior e o comando – é claro que não estou dizendo com isso que não haja riscos –, teria maior capacidade e faculdade de mobilizar os seus efetivos. A outra questão é a questão de custo. Creio que também sobre isso o Ministro Viegas é mais indicado do que eu para falar, mas há um reembolso pelas Nações Unidas. Normalmente, não é integral, mas é um reembolso razoável e que depende de quanto gastaremos.
O valor que as Nações Unidas pagam é fixo por soldado e pelo desgaste do material. Obviamente, quando não se tem o material, é preciso comprá-lo, e as Nações Unidas não pagam pelo que for comprado, mas apenas o valor correspondente ao desgaste do material. Não é necessariamente um percentual. O valor do reembolso é um gasto fixo por soldado empregado, que varia entre 1.040 a 1.200 por soldado/mês. Está incluído nesse valor o cálculo do material. Esses são os comentários que poderia fazer a esse respeito. Naturalmente, ficarei muito feliz de responder a qualquer pergunta que me seja feita.