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Discurso na reunião do G-90 - Georgetown, Guiana, 3 de junho de 2004
Venho a Georgetown com uma grande expectativa quanto às possibilidades de diálogo entre o G-20 e o G-90. Considero o intercâmbio de pontos de vista entre o G-90 e o G-20 um elemento-chave para o sucesso da Rodada de Doha. Desde a sua criação, durante a Reunião Ministerial de Cancún, os dois grupos têm atuado de modo complementar. Juntos, o G-90 e o G-20 constituem a maioria dos membros da OMC. Também compartilhamos interesses comuns focalizados em traduzir em realidade a Agenda de Desenvolvimento de Doha. Acima de tudo, temos a nosso favor a força de milhões de produtores competitivos no mundo em desenvolvimento, cujo acesso aos benefícios de uma maior participação no comércio internacional ainda não foi assegurado. Estamos em uma importante encruzilhada para as negociações comerciais da OMC. Testemunhamos em Cancún uma mudança fundamental na dinâmica das negociações multilaterais de comércio, como resultado das nossas ações. Por vias separadas, mas com o sentido comum de que as aspirações legítimas da maioria da população do mundo não poderiam mais ser ignoradas, criamos uma aliança virtuosa, apesar de informal, em apoio a resultados justos e equilibrados. Agora, temos de dar um passo adiante. Precisamos unir forças, trabalhar os entendimentos comuns e construir pontes onde ainda possam existir percepções diferenciadas. Isto nos proporcionará a capacidade de barganha necessária para alcançarmos os nossos objetivos quanto a um sistema de comércio eqüitativo, capaz de promover o desenvolvimento econômico e o bemestar social por todo o planeta. Durante a Reunião Ministerial da OMC, o G-90 articulou uma visão madura e consistente no que tange ao chamados Temas de Cingapura. A resistência do Grupo em iniciar negociações sobre novas obrigações onerosas dentro do sistema da OMC ajudou a simplificar a agenda e concentrá-la no que é essencial.
A percepção de que deveríamos tratar e resolver questões-chave não solucionadas – como implementação, tratamento especial e diferenciado e agricultura – antes de adotar encargos adicionais foi recebida com simpatia, apoio e compreensão junto à maioria dos membros da Organização. De sua parte, o G-20 concentrou suas ações em agricultura. Ao abordar preocupações compartilhadas por todos os países em desenvolvimento, envolvemos os países desenvolvidos no tratamento de temas relativos a melhor acesso a mercados; à eliminação de práticas que distorcem o comércio por meio de subsídios à produção e à exportação; e à preservação da segurança alimentar e dos meios de subsistência para populações que dependem da agricultura para sua sobrevivência. É preciso assinalar que, apesar de contar com um número limitado de participantes, o G-20 inclui países em situações muito variadas, que vão de grandes e competitivos países exportadores agrícolas, como o Brasil e a Argentina, a países com enormes populações rurais, como a Índia, países pobres e mediterrâneos, como o Paraguai, e países com menor desenvolvimento relativo, como a Tanzânia. Gostaria de explicar um pouco mais as ações e o pensamento do G-20. Não me deterei nos detalhes da proposta do G-20, cujos principal elementos são bem conhecidos e cuja versão revista circulo nesta reunião.
A atual Rodada de negociações comerciais multilaterais foi batizada Agenda de Desenvolvimento de Doha porque havia uma percepção generalizada de que algo significativo tinha de ser feito para lidar com assuntos de desenvolvimento. O que eu chamo “déficit de desenvolvimento” é particularmente evidente no tocante à agricultura. E a agricultura é precisamente a área em que países pobres tem o potencial de mais facilmente desenvolver suas vantagens competitivas. A agricultura ainda está para ser realmente integrada ao sistema multilateral de comércio. Um grande número de mecanismos distorcivos, como altas tarifas e maciços subsídios domésticos e à exportação em vários países desenvolvidos, sufoca o desenvolvimento econômico e agrícola dos países em desenvolvimento. Dados os padrões existentes de distribuição de renda e riqueza no mundo, somente uma reforma agrícola real no Norte pode desbloquear o pleno potencial agrícola em países desenvolvidos. A agricultura é, atualmente, um dos poucos setores em que há efetivo tratamento especial e diferenciado. Mas é o tratamento especial e diferenciado ao contrário, que permite que países desenvolvidos aproveitem uma derrogação com prazo em aberto para distorcer mercados. É, portanto, natural que a agricultura se encontre no centro da Rodada. A agricultura detém também a chave para destravar as negociações. Esta é razão pela qual nós, no G-20, concentramos tanta energia política e intelectual em encontrar soluções para as principais questões envolvendo a agricultura. Mas, a menos que sejamos capazes de arregimentar uma ampla coalizão de países em desenvolvimento, a meta de atingir os objetivos de desenvolvimento da Rodada será prejudicada pelos grupos de interesse dos países desenvolvidos. Pequenos grupos de produtores em países ricos beneficiam-se de enormes apoios financeiros de seus Tesouros, deprimindo preços, aumentando injustamente sua fatia de mercado e comprometendo a segurança alimentar e a sobrevivência de agricultores em muitos países em desenvolvimento. Em nenhum outro tema as circunstâncias adversas predominantes na agricultura são tão evidentes quanto no tema do algodão. Estamos cientes dos fortes efeitos dos subsídios nos preços, os quais ameaçam a sobrevivência de agricultores que dependem de colheitas que, de outra forma, seriam lucrativas. Vemos grandes méritos na iniciativa setorial de quatros países africanos sobre o algodão. Esta é razão pela qual o G-20 incorporou vários parágrafos relativos ao algodão na sua proposta negociadora.
Preços internacionais em declínio afetam também outras commodities. Compartilhamos a preocupação causada pela deterioração dos preços das commodities e apoiamos propostas que objetivem lidar com esta situação. Nós também levamos em consideração os problemas de membros recém-ingressados. Também reconhecemos a necessidade de lidar com a questão da erosão de preferências. Apesar de não minimizar o impacto que essas erosões possam ter em economias mais vulneráveis – e por isso concordo que soluções eqüitativas devam ser encontradas –, tendo também a encontrar muita sabedoria nas palavras de eminente colega da África, no sentido de que todos nós, nos países em desenvolvimento, devemos encontrar maneiras para nos libertarmos do “vício das preferências”, uma condição que tende a perpetuar a dependência econômica e política. O G-20 está igualmente comprometido a apoiar os conceitos de produtos especiais e o mecanismo especial de salvaguardas. Esses conceitos foram reafirmados na proposta recentemente circulada pelo G-20 sobre acesso a mercados agrícolas. Estamos determinados a acomodar as diferentes preocupações expressas por vários agrupamentos de países em desenvolvimento e de países de menor desenvolvimento relativo. Estas não são palavras vazias, derivadas da demagogia. É uma convicção profunda e firme sobre a necessidade de se ter uma base negociadora abrangente. Nossa proposta abrange lista significativa de provisões em tratamento especial e diferenciado, embora estejamos convencidos de que, sem a eliminação das distorções criadas pelos subsídios domésticos e à exportação nos países desenvolvidos, esses instrumentos serão de eficácia limitada. Em síntese, o tratamento especial e diferenciado é importante, ou mesmo indispensável, mas não é uma panacéia. Certamente não em agricultura.
Os membros do G-90 têm a possibilidade de ganhar com a liberalização dos mercados agrícolas e a eliminação das distorções que os afligem. Mas, para chegar lá, precisamos da participação de todos os membros da OMC para apoiar nossa luta. Tenho certeza de contar com vocês! Mesmo se pudéssemos nos concentrar nas próximas etapas da negociação, seria imprudente esquecermos a força e a vitalidade de nossos próprios mercados. Estamos prontos a trabalhar no contexto do SGPC, que dispensa tratamento mais favorável aos países de menor desenvolvimento relativo, para conceder-lhes preferências. Convido os países de menor desenvolvimento relativo e outros países em desenvolvimento a se associarem ao SGPC, a fim de construirmos um sistema que realmente incremente o comércio Sul-Sul. Com este propósito, todos os membros do G-90 estão convidados a participar do encontro do Comitê de Participantes do SGPC que terá lugar em São Paulo, durante a XI Conferência da UNCTAD, ocasião em que esperamos lançar uma nova rodada de negociações. Além do SGPC, existem outros caminhos inovadores para destravar o potencial do comércio Sul-Sul, tais como os acordos preferenciais e de livrecomércio. Aqui na América do Sul, o MERCOSUL tem dado bom exemplo em suas negociações com os países andinos, ao desenvolver modalidades adicionais de tratamento especial e diferenciado nas suas relações com as economias mais frágeis e de menor escala. Estou confiante de que, nos nossos entendimentos com os países do G-90, encontraremos modos de reproduzir – ou mesmo fortalecer – as fórmulas às quais chegamos com nossos países vizinhos. Senhor Presidente, Neste momento crucial das negociações, um dos grandes riscos que enfrentamos é deixarmo-nos enveredar em digressões artificialmente introduzidas no debate, digressões que objetivam fazer-nos perder de vista nossos interesses comuns e dividir aliados naturais. A esse respeito, devemos ser guiados pelos objetivos correlatos de conferir maior importância à dimensão do desenvolvimento da OMC e de aumentar a participação de todos os seus membros na Organização. Devemos ter cautela em face de propostas que, embora tentadoras à primeira vista, possam criar discriminações permanentes entre participantes plenos e outros membros relegados a papéis secundários. Ninguém questiona que os países em desenvolvimento devam contribuir para as negociações na proporção de sua capacidade de assumir obrigações. Já mencionei a questão da erosão das preferências.
Também concordei, por exemplo, em que os países de menor desenvolvimento relativo devem ser eximidos de compromissos de redução. Outras vulnerabilidades específicas devem ser levadas em conta. Mas não ao preço da exclusão da plena participação no sistema e em seus mecanismos de decisão. Outro aspecto dessas propostas é que, enquanto seus autores propugnam pela exclusão de obrigações da OMC para alguns países em desenvolvimento, são exigidos níveis de concessão equivalentes ou superiores em acordos de livre-comércio e de parceria, sem oferecer grau de participação significativo no desenvolvimento de regras multilaterais. E não devemos ter dúvidas quanto à primazia dessas regras, as únicas que podem assegurar aos países em desenvolvimento limitada parcela de tratamento justo no comércio internacional. Caros colegas, Os países em desenvolvimento dispõem de rara janela de oportunidade. Há muito que nos une. Superemos nossas diferenças de percepção. Continuemos a construir uma frente comum, de forma que a Agenda de Desenvolvimento de Doha torne-se mais do que um título. O Brasil e o G-20 estão prontos a contribuir para tal objetivo e empenhamos nossa total cooperação para a sua consecução. É por essa razão que valorizo tanto o convite de Clement Rohee para pronunciar-me neste encontro. É por essa razão que não medi esforços para estar aqui com vocês hoje. Estou certo de ser este o prelúdio de um diálogo ampliado entre nossos dois grupos. A próxima reunião da UNCTAD em São Paulo oferecerá excelente oportunidade. Quero corresponder a seu gesto, convidando o coordenador do G-90 para o encontro do G-20 que se realizará naquela ocasião.
Muito obrigado.