Notícias
Discurso na cerimônia de formatura da Turma “Celso Furtado” (2002) do Instituto Rio Branco - Palácio Itamaraty, em 1º de setembro de 2005
Senhor Presidente, Não vou fazer uma dissertação sobre política internacional porque creio que na sua presença, que é nosso guia e mentor nestes temas, seria pouco apropriado de minha parte. Mas não posso deixar de comparar, como primeiro Chanceler formado pelo Instituto Rio Branco – não dessa vez, mas ainda quando o Presidente Itamar Franco me confiou o cargo e não o primeiro da carreira, porque outros foram da carreira, mas antecederam o Instituto Rio Branco –, o momento de hoje com o momento que vivíamos a cerca de 40 anos atrás, 41 anos atrás para ser mais preciso. Hoje, o Brasil vive um clima de plena democracia, o Brasil vive um clima em que as instituições funcionam plenamente, o Brasil vive um clima em que se procura afirmar na realidade internacional sem subordinações e sem dogmas ideológicos, de uma natureza ou de outra. Senhor Presidente, O desafio que hoje existe para os diplomatas brasileiros é muito diferente daquele que os da minha geração - o Embaixador Samuel entre eles, e o Embaixador Fernando Reis também - tiveram que enfrentar. Nós, naquela época, tivemos que nos adaptar a um momento sombrio da história brasileira, um momento em que as liberdades eram cerceadas, em que a própria política externa sofria de maneira bastante evidente o impacto do obscurantismo. E tivemos que procurar, digamos assim, nos interstícios da ditadura, formas de poder expressar de maneira patriótica aquilo que nós achávamos que era o interesse nacional. Hoje os formandos encontram uma situação totalmente diversa. Encontram um país democratizado, que luta por afirmar-se no cenário internacional, um país que busca transformações sociais de maneira acelerada, e os desafios são, portanto, muito diferentes. Naquela época, 80% das exportações do Brasil eram compostas por café. Hoje o Brasil vende aviões, ônibus, serviços sofisticados, continua vendendo café, felizmente, e vendendo outros produtos agrícolas também, mas diversificou totalmente a sua pauta. Naquela época, nosso comércio era quase exclusivamente com os países desenvolvidos, com a Europa e com os Estados Unidos e um pouco com o Japão. Hoje, se nós tomarmos os sete primeiros meses do ano de 2005, 52% das nossas exportações se dirigem a países em desenvolvimento. Isso não é pouca coisa, é uma mudança muito grande.
Durante anos e anos o Brasil teve uma postura um pouco amesquinhada nas relações internacionais, apesar dos esforços de grandes Embaixadores e de grandes Ministros que teve também, mesmo naqueles momentos. Devido à situação interna, nós tínhamos hipotecas muito graves, o nosso telhado era um telhado de vidro no social - como continua a ser apesar dos esforços que têm sido feitos, sobretudo neste Governo - e também no político, nos direitos humanos e isso tudo diminuía nossa capacidade de ação internacional. Felizmente, com a democracia, com os avanços que fizemos em vários campos - na área industrial, na área econômica, e com os esforços que temos feitos na área social para corrigir essa mazela enorme que é a má distribuição de renda de que o Brasil padece - um dos piores índices do mundo –, nós podemos falar hoje de igual para igual Já disse que não ia entrar nos temas específicos da política externa porque, creio, que isso é algo a que o Presidente vá se referir de maneira muito mais apropriada do que eu. Mas há algo, sim, que quero dizer, porque isso diz respeito, de certa maneira, à nossa auto-estima. Peço desculpas aos membros da mídia que já me ouviram ontem, não vou repetir tudo o que disse, mas vou repetir uma coisa que disse ontem no Senado Federal a propósito de uma pergunta feita por um outro representante da mídia, um correspondente estrangeiro no Brasil que me fez a seguinte pergunta: “Ministro, porque será que a política externa brasileira que é tão elogiada, em alguns momentos até objeto de inveja, de comentários positivos no mundo inteiro é, às vezes, criticadas com tanta ferocidade no Brasil?” Eu não me atrevi a responder porque eu não tenho os dotes sociológicos, psicológicos ou antropológicos que me permitissem dar essa resposta.
Mas a própria pergunta, de certa maneira, já foi um elemento de grande estímulo para mostrar que nós, sim, estamos caminhando da maneira correta, que a percepção que existe sobre o Brasil hoje é a percepção de um interlocutor válido, de um interlocutor importante, em todos os temas, temas que vão do desarmamento ao comércio, da reforma da ONU à integração continental. Em todas essas ações é difícil imaginar alguma atividade, seja no plano nacional, seja no plano internacional, em que a palavra do Brasil não seja buscada. Talvez, mais do que em qualquer outro tema, no combate à fome e à pobreza, que Vossa Excelência iniciou de maneira clara. Queria dizer uma outra coisa: freqüentemente, procura-se imputar motivações de natureza ideológica à política externa; procura-se dizer que a política externa foi, digamos, tomada de assalto por certos partidos políticos. Quero dizer, Presidente, como alguém que está a 40 anos na carreira diplomática, como alguém que passou por aqueles momentos de obscurantismo - eles sim, ideológicos, porque eram ideológicos e repressores - que a política externa que Vossa Excelência persegue é uma política externa que está de acordo com objetivos permanentes do Brasil. Vossa Excelência apenas os tem perseguido com mais ênfase, com mais determinação, e aduzindo um elemento novo de reforma, que a sua trajetória de vida, que a sua trajetória política nos trouxe e que vem como uma grande contribuição. Digo-lhe isso não como seu Ministro apenas, porque não teria grande mérito em dizê-lo, mas como um diplomata que completa, aproximadamente, 40 anos de carreira, e que viu durante esses 40 anos muitas coisas ocorrerem, mas que raramente viu - não digo que nunca - a política externa brasileira tão ativa, tão presente, tão respeitada por esse mundo afora.
Nós todos conhecemos os dados de comércio, sabemos que isso não é retórica, e que essas questões são realidade. Portanto, meus jovens e queridos colegas que entram para o Itamaraty, agora de maneira plena, o desafio é contribuir para essa política externa. Desenvolvê-la, criticá-la inclusive, porque sempre temos dito, ao contrário do que ocorreu no passado, que a crítica é bem-vinda. Achamos que na política externa, na diplomacia, não há liderança por imposição; a liderança vem da inspiração. É isso que recebo do Presidente Lula, e é isso que procuro transmitir, com o apoio do Secretário-Geral e dos outros chefes da casa, para meus colegas. É pela inspiração que podemos exercitar alguma liderança, se é que cabe falar de liderança. Presidente, enfrentamos ainda grandes desafios. Muitos deles vêm, naturalmente - Vossa Excelência sabe -, da dificuldade de recursos. Sabemos do apoio que Vossa Excelência tem procurado dar ao Itamaraty em momentos difíceis. Também sabemos da contribuição que devemos dar a metas que dizem respeito ao país como um todo, que possibilitem, inclusive, um esforço adicional em relação à área social. Mas contamos e seguiremos contando com a sua compreensão, para que possamos fazer aquilo que é indispensável. Não vou cansá-lo, Presidente, nem cansar os meus colegas com estatísticas, mas fizemos uma pequena comparação, e se os números não tiverem exatos eles poderão ser corrigidos, mas é mais ou menos o que vou dizer: na sua gestão, em dois anos e meio, o senhor recebeu mais ou menos o dobro do número de Presidentes estrangeiros que foram recebidos no mesmo período pelo seu antecessor. O número de viagens de Ministros ao exterior – de outras pastas, Ministro da saúde, Ministro do comércio – é infinitamente superior ao número anterior. Tudo isso exige apoio, dedicação de nossos colegas, exige trabalho e exige também recursos materiais. As pessoas costumam criticar as viagens do Presidente, ou as visitas estrangeiras, mas elas trazem resultados concretos, não são questões abstratas.
Há uma estatística, Presidente, que elaborei, olhando até casualmente os números, que não mencionei antes, e, creio que Vossa Excelência também não mencionará. Entre os trinta maiores mercados brasileiros – e, portanto, não se pode dizer que a base inicial é baixa –, os dez que mais cresceram, se compararmos o primeiro semestre desse ano com o primeiro semestre do ano passado, são com países em desenvolvimento. E todos eles, Presidente, ou o senhor visitou, ou recebeu visita do Chefe de Estado ou do Chefe de Governo correspondente. Portanto, quando se fala em aumento do saldo comercial ou em diminuição da vulnerabilidade externa, a política externa não é estranha a esses temas. Ela não é o único fator, certamente. Os nossos empresários têm aprendido a vender, outros ministérios têm trabalhado ativamente, mas o contexto que Vossa Excelência tem criado para o relacionamento internacional do Brasil é fundamental para isso. Obviamente, política externa não se faz só com números, ela se faz também com ações de paz, com ações de solidariedade e creio que o Brasil tem muito do que se orgulhar nessas áreas. Recordo-me, logo no início do seu Governo, da postura firme, clara e sem confrontações que Vossa Excelência tomou, que nós tomamos seguindo orientação de Vossa Excelência, em relação à Guerra do Iraque. Hoje estamos vendo o que está ocorrendo no Iraque. Estamos vendo o que está sofrendo o povo iraquiano e o que estão sofrendo, inclusive, as tropas que lá estão presentes. Se nós tivéssemos buscado – refirome à humanidade – ou persistido um pouco mais em uma solução pacífica teríamos, talvez, algo mais a comemorar. Senhor Presidente, há, portanto, este aspecto que é preciso ter presente: política externa se faz, principalmente, com o cérebro das pessoas, com a dedicação das pessoas. Não fazemos escolas, salvo uma ou outra, talvez, em algum país da África, não fazemos estradas, não produzimos navios, não produzimos aviões.
Mas a política externa tem algo a ver com toda essa dimensão que o Brasil tem ganhado internacionalmente, e tudo isso resulta também em postos de trabalho, em melhores condições para o povo brasileiro, em mais respeito pelas nossas posições, em qualquer assunto – quando temos que defender a família de um brasileiro morto, brutalmente, em Londres, quando temos que tratar de brasileiros que, às vezes, são humilhados em outros países. Tudo isso, Presidente, exige, portanto, recursos materiais e também recursos humanos. Queria mencionar por que isso é uma verdade que tem que ser apreciada e sei que contarei com o seu apoio para isso. Não poderemos aparelhar essa carreira para enfrentar os desafios - e eu não digo nem os da sua política externa, que introduziu um grande dinamismo, mas até os desafios de ontem - com os recursos que nós temos hoje. Temos mais ou menos o mesmo número de diplomatas que tínhamos há 20 anos. Há vinte anos, havia talvez 300, 400 mil brasileiros no exterior; hoje são 4 milhões. O Brasil não se relacionava como se relaciona hoje com países da África, com países árabes, com tantos outros países que Vossa Excelência visitou ou cujos governantes Vossa Excelência recebeu aqui. Por isso, necessitamos de seu apoio. Em breve, Vossa Excelência estará recebendo um projeto de medida provisória e espero contar com o apoio rápido do Ministério do Planejamento para termos um projeto de medida provisória sobre este tema. Sabemos das dificuldades da medida provisória, mas se trata de algo que diz respeito à estrutura do Executivo apenas, e, portanto, mereceria esse tratamento. Essa medida provisória, Presidente - apenas para que saibam nossos colegas também -, tem dois ou três aspectos: um é o aumento dos quadros. Não podemos viver mais com os mil diplomatas que tínhamos, até porque muitos estão em outros ministérios – ontem, na Comissão Mista com Moçambique, olhei para a primeira fila do lado brasileiro, teoricamente, eram representantes de outros ministérios, e todos eram do Itamaraty, todos, sem exceção. Damos esta contribuição com muita alegria, e acho que é motivo de orgulho, porque, na realidade, o Itamaraty é a única escola de Governo no Brasil. Mas isso tem um custo para nós e precisamos aumentar os quadros. Precisamos também, Presidente - e eu me permito falar diretamente aos meus colegas -, melhorar as oportunidades, a perspectiva de ascensão funcional para os colegas que entram na carreira. Presidente, não fui dos mais jovens Embaixadores.
Tive percalços políticos na minha carreira, mas, ainda assim, cheguei a Embaixador com 47 anos. Hoje, um Embaixador com 50, 51 anos, é considerado muito moço, porque a média é de 56, 57 anos. Isso tem que mudar. Temos que dar perspectivas de acesso aos jovens, e uma das coisas que nós fizemos na nossa reforma, que será submetida a Vossa Excelência, é facilitar a aceleração do fluxo de diplomatas na carreira. Isso é algo muito importante. Faremos também outra coisa importante, Presidente: os Ministro viajam e verificam que há dificuldades até de apoio a eles. Outro dia, ouvia o Ministro Furlan falando, de forma bem intencionada como não poderia deixar de ser, sobre o apoio reduzido que teve em uma Embaixada africana. Sei disso, e ninguém pode ignorar isso. Já passei por isso muitas vezes, e Vossa Excelência mesmo passou. Mas é porque não há estímulos suficientes. Temos que criar estímulos suficientes, de carreira, pecuniários, ajuda à educação. O brasileiro tem, teoricamente pela Constituição, direito e acesso à educação. O brasileiro diplomata não tem por que ele vive no exterior. Alguns podem compensar isso se eles estão em um país onde a vida é mais fácil, mas há países onde isso não é possível. É, certamente, o caso de grande parte dos países africanos. Os diplomatas não podem ter os filhos em escolas públicas; eles têm que mantê-los em escolas privadas. Precisamos, portanto, encontrar solução para estas questões e sei que contaremos com Vossa Excelência. Presidente, também tenho que mencionar que, além desses estímulos - e isso é um desafio para mim mesmo e para o Secretário Geral (não conseguimos encontrar uma solução para isso) –, temos que assegurar a renovação. Os quadros da minha geração e das outras têm que compreender quando chegou o momento de ceder o passo aos mais jovens.
Digo isso como um diplomata, não tanto como Ministro. Há um momento em que nós temos que entender que nossa experiência terá que ser usada de outra forma, seja dirigindo o Instituto Rio Branco, como está hoje fazendo o brilhante Embaixador Fernando Reis, seja como um Assessor Especial para assuntos delicados e difíceis, como o Embaixador Ouro Preto, seja em áreas onde a sabedoria é importante mas a energia da juventude já não seja tão importante. Temos que apreender, como em todas as carreiras, que há um momento de ceder o passo. E esse é um dos grandes desafios que temos, pois a legislação e os mandatos de segurança não nos favorecem, mas temos que encontrar um caminho para isso. Presidente, desculpe-me, alonguei-me mais do que queria. Queria falar, de coração, da minha alegria, da minha gratidão. Nunca esquecerei o momento, que talvez tenha sido – já havia sido Ministro antes como o senhor sabe, tenho muita honra de ter servido sob a orientação do Presidente Itamar Franco, um homem de grande integridade que contribuiu muito para a transição democrática do Brasil – o de maior alegria profissional que tive: quandoVossa Excelência me convidou para ser Ministro de um Governo com a promessa de renovação do Brasil, com a promessa de que o Brasil será um país não só democrático, o que nós queremos que ele continue a ser, com instituições fortes, mas um país socialmente mais justo, um país que sabe se respeitar e porque sabe se respeitar é também respeitado no resto do mundo.
Obrigado meus colegas e bem-vindos ao Itamaraty