Notícias
Discurso em sessão do Conselho de Segurança da ONU sobre Aspectos Civis da Gestão de Conflitos e a Construção da Paz - Nova York, 22/11/2004
(Tradução para o português do original em espanhol)
Desejo felicitar meu amigo, o Ministro das Relações Exteriores da Espanha, Miguel Ángel Moratinos, por promover este oportuno debate sobre os aspectos civis da gestão de conflitos e da construção da paz. O Presidente Lula abriu o debate geral da 59ª Assembléia Geral com uma ampla apresentação da percepção que o Brasil tem dos desafios mais urgentes do mundo de hoje. O ponto central dessa visão é a noção de que o fundamento da paz é a justiça social. Como disse em suas palavras, “um mundo onde a fome e a pobreza prevalecem não pode ser um mundo pacífico”. Não posso deixar de expressar o apoio enfático do Brasil à intervenção do Secretario-Geral, ontem, na Assembléia-Geral, sobre a importância fundamental do Estado de Direito. O direito, e não o poder, deve ser o ordenador da convivência social, tanto no contexto doméstico quanto no internacional. A experiência recente nos oferece vários exemplos de conflitos em países marcados por níveis muito baixos de desenvolvimento, que ilustram os limites de uma perspectiva puramente ou preponderantemente militar da construção da paz. Sem um enfoque mais amplo, que incorpore variáveis econômicas e sociais - e que esteja centrado no bem estar dos civis –, fracassaremos na promoção de soluções duradouras. As Nações Unidas devem desenvolver instrumentos e mecanismos que traduzam essa consciência em estratégias concretas.
O artigo 65 da Carta nos abre una janela para aumentar a cooperação entre o Conselho de Segurança e o ECOSOC, ampliando o escopo da cooperação multilateral para a gestão de conflitos e a construção da paz. Não esqueçamos que o ECOSOC – e não o Conselho de Segurança – é o órgão da Carta com responsabilidade em assuntos relativos ao desenvolvimento social. E do que mais falamos quando nos referimos aos esforços de construção da paz duradoura – ou reconstrução – se não é do desenvolvimento social e econômico? No passado, tentamos utilizar a base que proporciona esse dispositivo da Carta em situações como as do Burundi e de Guiné-Bissau. No entanto, enquanto nossos esforços demonstraram ser experiências úteis, não representaram uma resposta suficientemente articulada frente às demandas enfrentadas em muitas partes da África, do Oriente Médio, em Timor Leste, na violência crônica no Haiti, entre outras. O Brasil aceitou a responsabilidade de comandar a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti – com uma forte participação de outros países latino-americanos, inclusive Chile – segundo o claro entendimento de que a paz dessa nação irmã requer um compromisso de longo prazo da comunidade internacional, não só para a paz e segurança, mas também para o progresso sócioeconômico. A ONU falhou junto ao povo do Haiti no passado ao interpretar seu papel de maneira demasiadamente estrita.
Desta vez, paralelamente aos esforços para assegurar um ambiente mais seguro, temos que colocar em marcha um programa sustentável para ajudar a sociedade do Haiti nas esferas política, social e econômica. São tarefas que extrapolam o âmbito do Conselho de Segurança. Requerem a participação de outras agências e órgãos. Temos que tirar proveito do atual ambiente favorável a reformas na ONU para começar a conceber novas maneiras para enfrentar tais situações. Devemos assegurar a continuidade entre ações de prevenção, esforços de manutenção da paz e a etapa pós-conflito de construção da paz. Temos também que enfrentar a questão de duração e intensidade desses esforços. Naturalmente, há que se deslocar rapidamente todas as tropas requeridas pelas resoluções do Conselho de Segurança. Vemo-nos confrontados com essa necessidade no Haiti nesse exato momento. No entanto, é particularmente importante proporcionar todos os recursos humanos, financeiros e materiais para a reconstrução física e institucional. Apreciamos a generosidade dos países doadores e instituições financeiras internacionais, porém estas devem se coordenar com os organismos multilaterais, cuja competência primária em definir o quadro geral deve ser reconhecida. Falar dos aspectos civis da manutenção da paz equivale a voltar a atenção para a importância fundamental de restabelecer a dignidade humana, muitas vezes a primeira vítima de situações de conflito. Posso bem imaginar que as discussões hoje vão estabelecer algumas especificidades técnicas dos esforços de manutenção da paz e sua interseção com a agenda humanitária, o papel das organizações regionais e outros. São todos aspectos relevantes e merecem nossa consideração.
De minha parte, desejo insistir sobre a necessidade de desenvolver novas e melhores ferramentas para enfrentar os problemas estruturais que estão na raiz das tensões que conduzem à violência e ao conflito. Pobreza, doença, ausência de oportunidades, desigualdade. Essas são algumas das causas de conflitos, particularmente aqueles no interior dos países, que cada vez mais, lamentavelmente, são parte de nossa agenda. De acordo com as práticas prevalecentes, uma vez que os membros do Conselho de Segurança considerem que um ponto da agenda não mais representa uma ameaça à paz, a situação é colocada em um limbo, sem um acompanhamento intergovernamental dos processos de reconciliação e reconstrução.
Esta lacuna em nossos métodos pode fazer com que recomece o conflito, como demonstra o trágico exemplo do Haiti. Senhor Presidente, Não importa quão sofisticadas sejam as nossas ações militares de manutenção da paz. Somente saberemos enfrentar eficazmente os desafios da segurança que se apresentam se integrarmos os elementos políticos, sociais e econômicos em nossas estratégias. Com esse fim, podemos extrair inspiração do disposto no Artigo 65, redigido em 1945, que evoca a absoluta necessidade de se enfrentar questões de segurança em seu contexto sócio-econômico e nos brinda, inclusive, com orientação sobre a maneira de fazê-lo do ponto de vista institucional.
Muito obrigado