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Audiência na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados - 29 de novembro de 2005
É sempre um grande prazer vir à Câmara, e especialmente a esta comissão, para tratar de temas da política externa. Recordo-me que, ainda nos primeiros meses do Governo do Presidente Lula, atendi a um requerimento para estar presente nesta comissão, em sessão que se realizou em Plenário e que coincidiu com o dia em que se iniciava a Guerra no Iraque e a intervenção norte- americana no país. Foi um momento importante e, de certa maneira, definidor da política externa brasileira. Desde aquele momento, ficou marcado como característica da política externa o fato de que tínhamos uma política independente, altiva, soberana e, ao mesmo tempo não conflitante, não confrontacionista.
Desde aquele momento, deixamos claras as nossas opiniões de defesa do sistema multilateral, da primazia do Conselho de Segurança, da primazia da busca de solução pacífica para os conflitos, sem que com isso tivéssemos de maneira alguma criado problemas no nosso relacionamento com os países – naquela época, principalmente, Estados Unidos e Reino Unido – que estavam envolvidos na ação militar. Mencionei o fato porque creio que ele, de certa maneira, é simbólico das atitudes que foram tomadas durante o Governo do Presidente Lula.
Na realidade, a política externa brasileira não é uma política que se preste a mudanças bruscas ou radicais. A política externa se baseia em princípios de Estado. No nosso caso, a autodeterminação dos povos, a solução pacífica de controvérsias, o respeito ao multilateralismo, a não-intervenção. São princípios que outros governos seguiram e o governo do Presidente Lula também segue. Mas, evidentemente, toda política externa também é política. Não é apenas uma ação administrativa do Estado ou uma ação quase jurídica, ela também é uma ação política. E, por isso, cada governo traduz, a seu modo, os princípios básicos em ações concretas.
No caso do Governo do Presidente Lula, é preciso levar em conta uma série de fatores importantes. A meu ver, a começar pelo próprio cenário internacional. O cenário internacional é hoje muito diferente daquele que encontramos há 10 ou 15 anos atrás. Quando fui Ministro, há cerca de 12 anos, era diferente. Por exemplo, o encanto com a globalização, que havia naquele momento e que de certa maneira existia nos outros governos. Não que as pessoas devam ser contra a globalização, mas há nuances, há matizes que hoje em dia se percebe, que todos percebem, independente do posicionamento no espectro ideológico. Houve essa mudança. Houve também o reforço de uma característica que já existia desde o fim da Guerra Fria, que é uma realidade mundial caracterizada por um forte desequilíbrio de poder, onde há uma superpotência, sobretudo do ponto de vista militar, muito mais equipada do que qualquer outro país, e uma certa fragmentação dos demais países. Por outro lado, além desse desequilíbrio de poder no plano político e militar, há um certo co-domínio no plano econômico comercial entre a União Européia e os Estados Unidos, discutindo entre si a maior capacidade de influência nos foros internacionais.
Em breve, estaremos inaugurando no Itamaraty as salas Afonso Arinos, San Tiago Dantas, e também Rui Barbosa. Pensando um pouco no conceito da política externa independente que criaram naquela época, faço uma reflexão sobre a que corresponde uma política externa autônoma e independente nos dias de hoje. A realidade sempre muda, a contextualização da política é sempre diferente. Hoje, independência, creio, diferentemente do que muita gente talvez imaginasse nos anos 50, ou até mesmo nos anos 60, não tem nada a ver com autarquia ou com isolamento. Em um mundo globalizado, a independência terá que ser necessariamente uma posição nas relações internacionais que permita trabalhar com vários atores simultaneamente; isso é, evitar a excessiva subordinação ou a excessiva dependência de um único mercado, de um único país e de uma única fonte de poder. Isso inspirou e tem inspirado a política externa do Presidente Lula. Isso tem várias dimensões.
Em primeiro lugar, significa um grande esforço de diversificação de parceiros, sem abandono dos parceiros tradicionais. Vejam bem, o Presidente Lula nunca disse que há uma substituição de alguns parceiros por outros. Trata-se apenas de uma diversificação de parceiros, além daqueles tradicionais, que são muito importantes e com os quais realizamos crescentes trocas de visitas de Chefes de Estado e de Governo. O que temos procurado é diversificar esses parceiros.
Isso encontrou expressão tanto no plano comercial quanto no plano político e das relações internacionais de um modo geral. No plano político, reforçamos as nossas relações com a América do Sul e com a América Latina. Essa vem sendo a nossa grande prioridade. Amanhã, o Presidente Lula encontrará o Presidente Kirchner em Porto Iguaçu, onde serão provavelmente assinados 20 atos bilaterais de grande importância, que vão desde a cooperação em energia nuclear ou espacial, até questões que dizem respeito ao livre trânsito de cidadãos em fronteiras, às regulamentações de previdência social para trabalhadores temporários. Enfim, uma série de atos de grande importância, que vão cimentar essa aliança verdadeiramente estratégica que há com a Argentina e que é a vértebra desse processo de integração da América do Sul.
O processo de integração da América do Sul tem várias vertentes. Uma delas é o esforço permanente de manter, de reavivar e de re-energizar o MERCOSUL. Não é uma tarefa óbvia nem fácil. Basta-se olhar para a União Européia para ver que não é fácil porque a cada momento surgem problemas e os problemas têm que ser tratados. É muito freqüente, tanto aqui como lá, que grande parte das reuniões seja consumida para tratar de problemas específicos, tratar de exceções. Mas, o MERCOSUL tem efetivamente progredido, e progredido muito, inclusive na área social. Demos alguns passos importantes no MERCOSUL nos últimos anos. Ressaltaria dois ou três.
Um deles, parece coisa mínima, mas na realidade é fundamental para que o MERCOSUL venha a se consolidar como união aduaneira, que é a questão da dupla cobrança da Tarifa Externa Comum (TEC). Apesar de sermos uma união aduaneira e teoricamente termos, em boa medida, uma tarifa externa comum, na realidade, os produtos importados para o MERCOSUL pagavam a tarifa externa de novo para conseguirem ser exportados para outro país. Assim, esse não é um processo fácil para países pequenos e inclusive tem uma implicação do ponto de vista de arrecadação. O Deputado Dornelles certamente saberá. Mas é um processo importantíssimo para provar que temos um caminho a seguir nesse campo.
Outro exemplo muito importante foi a criação do FOCEM – Fundo de Conversão Estrutural do MERCOSUL. O MERCOSUL, pela primeira vez, reconhece, de maneira clara e indiscutível, que há assimetrias e que tem que trabalhar estas assimetrias. Embora as diferenças entre nós talvez não sejam tão dramáticas quanto eram na Europa, por exemplo, entre a Grécia e a Alemanha, elas também não são pequenas. A renda per capta do Brasil é talvez quatro vezes maior que a do Paraguai. É preciso levar em conta esses fatores e a criação do Fundo de Conversão Estrutural é algo extremamente importante e apreciado por aqueles que observam o MERCOSUL de fora. Como, aliás, também é importante a questão da dupla cobrança da TEC, haja vista que durante as negociações entre MERCOSUL e União Européia era um dos pontos mais apontados pelos europeus que o usavam para assinalar que o MERCOSUL não é um processo completo. Esse são dois exemplos, poderia dar outros. No plano político, certamente a evolução do parlamento do MERCOSUL já está muito mais amadurecida, por contribuição intensa e sempre presente dos próprios parlamentares dentro da Comissão do MERCOSUL.
A preservação desse núcleo MERCOSUL parece pouco como história, mas na realidade não é pouco. Quando o Presidente Lula chegou ao governo e me tornei Ministro das Relações Exteriores, tínhamos herdado uma situação em que, tanto internamente quanto externamente, o MERCOSUL estava sendo muito desgastado. Externamente desgastado, a ponto de o Uruguai legitimamente – tanto que foi permitido naquela época – ter celebrado um acordo de livre comércio com o México, separadamente do resto do MERCOSUL. Faziam- se também constantes referências a divergências em relação à Alca, em que poderia haver países que tomassem um caminho diferente. Isso tudo foi absolutamente consolidado. O MERCOSUL hoje age unido de maneira muito clara nas grandes negociações internacionais. Essa consolidação da área externa do MERCOSUL foi importante. Do ponto de vista interno, além das medidas que mencionei, da extensão dos aspectos do MERCOSUL social, diria que uma consciência mais clara do problema das assimetrias, permitiu, se não sanar totalmente, pelo menos aliviar algumas das questões dos países menores, como o Paraguai e o Uruguai.
Ainda nesse contexto do MERCOSUL, valeria a pena comentar a alegação freqüente de que o MERCOSUL está em crise. Lembro-me de quando era criança diziam que o Brasil estava à beira do abismo e se dizia também que o abismo era pequeno ou que o Brasil era grande demais e que não cabia lá dentro. E o fato é que, no MERCOSUL, o Brasil está sempre crescendo e sempre se desenvolvendo. Hoje, vemos, por exemplo, que as nossas exportações para o MERCOSUL têm sido recordes. Talvez seja até saudável que haja questionamentos. O Presidente Lula quando esteve na última reunião do MERCOSUL em Assunção se referiu a um mal estar no MERCOSUL, sobretudo nos países menores, e reconhecemos isso.
O Brasil, como maior parceiro do MERCOSUL, tem uma responsabilidade muito grande. Cheguei de uma reunião na África onde se estava discutindo questões de países de menor desenvolvimento relativo, o tratamento da Índia na OMC, e se comentava que nós do MERCOSUL decidimos dar acesso livre a produtos de países de menor desenvolvimento relativo – mais pobres entre os pobres – da África e da América Latina. Na América Latina, o Haiti. Mas não se pode esquecer, dentro desse contexto, que a renda per capta do Paraguai é pouco maior do que a renda considerada limite para os países de menor desenvolvimento relativo, e isso, para nós, é um motivo, se não de vergonha, pelo menos de reflexão. Não temos feito, ou não temos sabido fazer o suficiente, para ajudar os países menores da região. Também temos os nossos problemas, não somos países ricos, mas creio que temos aqui uma responsabilidade .
Aproveito para falar um pouco da América do Sul, porque também é muito importante. Um mérito que a política do Presidente Lula tem é a coerência, quase que exatidão, com que a política anunciada foi levada a cabo. As pessoas podem não concordar com a política, o que é razoável, é algo que faz parte da democracia, pode não concordar com os meios, às vezes certas coisas foram feitas de maneira errada, mas esse aspecto deve ser creditado. Se alguém tomar o discurso de posse do Presidente Lula, e o meu que é mais detalhado, vai verificar uma enorme correspondência entre os fatos que ocorreram nesses três anos, as ações, as iniciativas que tomamos, e o que estava anunciado. Talvez até em alguns casos tenhamos ido um pouco além. Mas, voltando à América do Sul – então mencionada no discurso de posse do Presidente Lula juntamente com a América Latina como um todo –, podemos dizer que houve avanços extraordinários. Avanços digamos, não só do ponto de vista dos tratados, dos acordos, mas também do ponto de vista dos negócios.
Começando pelos acordos. Era um antigo sonho de muitos dentre nós ter na América do Sul uma área de livre comércio. Aliás, era um sonho até da antiga ALALC, ter uma área de livre comércio de toda a América Latina. Hoje em dia, ter uma área de livre comércio de toda a América Latina é algo mais complexo por que há filiações, há grupos diferentes, não é impossível, mas é mais complexo por motivos evidentes. Na América do Sul, certamente era um sonho que sempre foi acalentado. Digo que, com intensidades diversas, sempre foi perseguido, mas parecia ser muito difícil.
Recordo-me, ainda, que, quando fui Ministro do Presidente Itamar Franco, ele pela primeira vez falou de uma área de livre comércio sul-americana com essa expressão. Lembro-me de ter falado em uma reunião do grupo G-20. Na época, isso foi recebido com um misto de indiferença e de ceticismo. Pouco depois fui à sede da ALADI, em Montevidéu, falar do tema – era nosso saudoso Embaixador Paulo Nogueira Batista – e sentia que alguns concordavam um pouco por amizade ao Brasil, mas não havia um grande entusiasmo pelo tema.
Houve iniciativas do governo anterior, sem dúvida, muito importantes. A primeira reunião dos presidentes da América do Sul foi um impulso político para todo esse processo. Mas, o fato é que em dois anos de dedicação intensa a esse processo, conseguimos fazer acordos de livre comércio que cobrem a totalidade da América do Sul. Isso não é pouca coisa. O mais interessante foi ouvir de alguns chanceleres, inclusive dos de alguns países que tinham um certo ceticismo em relação a essa iniciativa, que, com aqueles atos que estávamos assinando – isso foi em uma reunião da ALADI, coincidentemente 10 anos depois daquela outra a que me referi – estávamos criando uma área de livre comércio da América do Sul. Esse foi um fato notável e, sinceramente, se me perguntassem, se achava que em dois anos conseguiríamos, teria minhas dúvidas. Havia resistência, havia dúvidas, tanto interna quanto externas, mas finalmente chegamos lá graças a uma grande determinação política e à demonstração também de que estávamos dispostos a negociar reconhecendo, como já reconhecemos dentro do MERCOSUL, a assimetria.
Para finalizar o tema da América do Sul, faço um pequeno registro, que é de grande importância numérica. Pela primeira vez, no período de janeiro a outubro deste ano de 2005, a América Latina - aí também se inclui o México, a América Central e o Caribe - é o nosso principal parceiro comercial. É a primeira vez que a América Latina está à frente da União Européia, como principal parceiro comercial do Brasil. A América do Sul exclusivamente está a apenas um ponto percentual abaixo dos Estados Unidos. AAmérica Latina, como um todo, é, hoje, o maior parceiro. Isso é muito importante quando se pensa que 98% das exportações para esses países são de produtos manufaturados, de alto valor agregado. São também de grande importância política porque estamos, na prática, realizando um mandato constitucional, que é a integração latino-americana. Estamos, na prática, fazendo com que isso ocorra, que deixe de ser algo retórico e passe a ser algo que exista na realidade. Poderia mencionar todas as iniciativas que têm sido tomadas em relação à integração de infra-estrutura, mas vou deixar esse aspecto de lado, embora ele não seja menos importante, apenas por uma questão de tempo.
Para abordar um pouco mais o lado político, gostaria de dizer que o Brasil tem atuado, na América Latina e na América do Sul, com um sentido de que o princípio da não intervenção continua a ser um princípio basilar da política externa. Pretendemos nunca intervir na maneira como agem os governos, ou como os povos escolhem seus governantes, muito menos sobre os resultados dessas escolhas. Mas, de certa maneira, acrescentamos a esse princípio da não-intervenção, a idéia da não indiferença. O Brasil não deve estar indiferente à sorte de seus vizinhos sul-americanos, ou latino americanos e caribenhos, e isso explica uma série de ações que o Brasil tomou nesse período.
Por exemplo, a criação do Grupo de Amigos da Venezuela foi uma ação de risco diplomático tomada ainda nos primeiros dias de governo. Vimo- nos confrontados com várias propostas, inclusive a proposta na época favorecida pela OEA, que era a de antecipação de eleições ou de realizar plebiscito, o que não estava previsto na Constituição venezuelana. Conseguimos, ou pelo menos contribuímos para a criação do Grupo de Amigos, para que houvesse uma solução que, aliás, era a que previa a própria resolução da OEA, que era constitucional, democrática e eleitoral. O Grupo de Amigos inicialmente não foi muito bem recebido, nem de um lado nem de outro. Tivemos que trabalhar com um grupo de países que era bastante plural e, com isso, assegurar diálogo com o governo e também com a oposição. Os resultados foram evidentes. Contribuímos para que se realizasse o referendo revocatório, que estava previsto na constituição, no prazo que estava previsto. Os observadores internacionais foram aceitos. O fato é que aquela questão foi superada.
A questão do Haiti é outra. É uma questão muito polêmica. Sempre que acontece um episódio este é freqüentemente ampliado pela opinião pública, o que aliás é natural. Na questão do Haiti, em primeiro lugar, houve a possibilidade de termos uma ação diferenciada. O Brasil liderando um grupo de países latino-americanos, mas sobretudo sul-americanos, que se quis fazer presente no Haiti com o objetivo de poder contribuir efetivamente para a democracia daquele país.
Quando entrei no Itamaraty no período de 64 – aliás, um pouquinho antes, entrei em 63 e me formei em 64 – foi um momento um pouco dramático na minha vida pessoal; eu comecei a trabalhar em 65 na intervenção na República Dominicana. Sobre o Haiti, tive, justamente, que falar muito, inclusive aqui no Congresso, sobre a diferença do que tinha sido a intervenção na República Dominicana – que era uma intervenção bilateral, não autorizada pelas Nações Unidas, da qual o Brasil resolveu participar pelos motivos da época, alianças estratégicas, ideológicas – da situação no Haiti em que houve, ao contrário, não só a autorização mas a criação de uma força de paz dentro do Conselho de Segurança das Nações Unidas e que é uma ação multilateral perfeitamente legal e legítima, que pretende ajudar o Haiti a livrar- se do ciclo que é um misto de violência, pobreza e miséria.
Só para que tenhamos uma idéia da desesperança pontuada por intervenções que entram apenas para restabelecer a ordem em determinado momento, talvez para resolver problema migratório de outros países e depois vão embora e deixam o Haiti como está. É a chance de termos uma ação mais determinada. Quando, de certa maneira, busca- se resolver certos conflitos, há sempre uma certa dose de idealismo que às vezes tem que ser temperado na prática. Mas o idealismo é fundamental. O idealismo entre outros aspectos é dizer que é preciso “latinoamericanizar” o Haiti.
O Haiti não podia ser um problema só dos Estados Unidos e da França ou, talvez, da República Dominicana porque é vizinha. O Haiti é um problema latino-americano que não podemos ignorar. Menos ainda o Brasil. O Haiti é, creio, o terceiro país das Américas em número de população de descendentes africanos. O Brasil, como o primeiro, não pode estar ausente. Tenho conversado com interlocutores de tendências políticas muito variadas e todos eles unanimemente disseram que a situação de segurança no Haiti melhorou muito.
Resolvi falar da Venezuela e do Haiti porque são naturalmente os dois casos em que a ação brasileira, digamos, se singularizou, se notabilizou mais, com mais atuação da imprensa, da mídia e etc. Mas, em várias outras situações de crise o Brasil tem procurado agir, e tem procurado agir sempre baseado no princípio da não-intervenção e no conceito da não- indiferença. E o que significa isso na prática? Significa que agimos quando as partes em uma disputa querem o nosso apoio e quando consideramos que o nosso apoio pode ser útil. Os dois elementos têm que estar presentes. Se não percebermos a utilidade, não faremos. Se as partes não estiverem interessadas, também não faremos.
Isso ocorreu em relação à Bolívia, ocorreu, em certa medida, em relação ao Equador, tem ocorrido em várias situações, mas somos sempre muito cuidadosos para não ferir o princípio da não- intervenção. Com todos os problemas que o Brasil vive, que sabemos que vive, temos conseguido, do ponto de vista institucional, manter o país na trilha democrática. E esses outros países têm tido essa mesma possibilidade. É muito importante esse tipo de contato com alguns dos países que têm uma situação institucional fragilizada. Há pouco tempo, por exemplo, recebemos o Ministro do Superior Tribunal do Equador para contribuirmos para a criação da Corte Suprema do Equador. Um dos problemas fundamentais da crise no Equador foi a dissolução da Corte Suprema pelo então presidente Gutierrez. Há toda uma questão de equilíbrio institucional, que é fundamental manter nesses países. No plano comercial demonstrei ou, pelo menos, tentei ter demostrado, que o crescimento é notável. O crescimento do nosso comércio com a América do Sul tem sido da ordem de 50, 40% a cada ano. Com certos países tem sido mais notável ainda. Com a Venezuela, cresceu 180% em relação ao ano passado e já havia crescido mais de 100% em relação ao ano anterior. Tanto do ponto de vista político quando do ponto de vista econômico tem havido uma intensa inter-relação na América do Sul. Apesar das fragilidades que existem em todos os países, em alguns mais que em outros, temos tido a possibilidade de reforçar a nossa integração. A criação da Comunidade Sul-americana de Nações há poucos meses aqui em Brasília certamente é um exemplo disso.
Antes de passar para a questão da OMC – que é certamente do interesse de alguns – gostaria de mencionar algumas outras iniciativas importantes. Falei, no início, da diversificação dos parceiros. Repito: não se trata de substituição, mas de diversificação de parceiros. Com isso, tomamos iniciativas especiais. Uma muito importante, a meu ver, que é objeto de comentário até de revistas internacionais, para minha surpresa até de revistas especializadas em política externa, foi a criação do que chamamos de IBAS (Índia, Brasil e África do Sul).
Qual a idéia do IBAS? A idéia do IBAS é a de que são três grandes democracias, cada uma em um continente do mundo em desenvolvimento. São também três grandes democracias que são multi- étnicas. Elas têm muita coisa em comum e podem fazer muito juntas para elas mesmas e para outros. Tanto assim que colaboramos no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas, para discussões às vezes de questões pontuais como, por exemplo, uma série de questões na segurança atômica. Tem sido discutido também um grande leque de projetos de cooperação trilateral que vai incluir vários aspectos de ciência e tecnologia, passando pela área comercial onde fizemos o primeiro acordo. Temos que continuar trabalhando nisso. Mas esse é outro exemplo de situação em que além da iniciativa política os reflexos sociais e econômicos são inegáveis. Nosso comércio com a África do Sul e com a Índia tem aumentado de maneira também espetacular. Com a Índia, aumentou 100% nos 10 primeiros meses desse ano comparado com os 10 primeiros meses do ano passado, e com a África do Sul tem aumentado na ordem de 35% a 40%, o que é mais do que a média do que temos para o mundo.
Também do ponto de vista mais amplo, o IBAS tem servido como exemplo de solidariedade de países em desenvolvimento para com países mais pobres. Tivemos uma iniciativa que começou com uma doação pessoal do próprio Presidente Lula, quando recebeu o prêmio Príncipe das Astúrias. Com esse prêmio, complementado com recursos do governo, fizemos um fundo administrado pelo PNUD, com o qual estamos desenvolvendo vários projetos. O primeiro projeto, que já está sendo desenvolvido, é na Guiné Bissau. Temos outro no Haiti, já em fase avançada. Creio que essa atitude contem um ensinamento que é, digamos, a capacidade de países pobres manifestarem a sua solidariedade com outros países. Pensei, claro, em mencionar o comércio porque é muito freqüente as pessoas gostarem de dizer que outros aspectos da política são irrelevantes. A meu ver, essa é uma visão totalmente equivocada da política externa.
Aproveito para falar da África, e vou ter que falar dos aspectos comerciais porque sei que ele sensibiliza. O Presidente Lula esteve na África, onde visitou cinco países. Em sua viagem seguinte, quando foi ao Japão, país desenvolvido, um jornal publicou: “Enfim uma viagem relevante”, dando a entender que todas as viagens à África tivessem sido irrelevantes, quando há motivos, todos que se possa imaginar, para fazer com que uma visita a países africanos seja relevante. Começa pela nossa dívida, pela nossa herança cultural, mas passa por interesses políticos, digamos estratégicos, que não podemos ignorar. Quem vive o dia-a-dia, quem está vendendo uma mercadoria específica pode não se interessar, mas temos que pensar a longo prazo. O Atlântico Sul é uma área que o Brasil tem que ter interesse. O Brasil não pode ignorar o Atlântico Sul.
Por isso, entre outras razões, o Presidente Lula abriu uma embaixada em São Tomé e Príncipe. Vocês podem perguntar: por que uma embaixada em São Tomé e Príncipe, de 200 mil habitantes? Hoje em dia, já há petróleo, mas independentemente de ter ou não petróleo, é um país lusófono, país que tem afinidades culturais conosco, pertence a alguns agrupamentos a que pertencemos.
É sempre bom lembrar também os números do comércio, porque mesmo desse ponto de vista a política na África seria muito importante e tem dado frutos enormes. Um jornal forneceu um dado de que hoje 10% do nosso saldo comercial vem da África. Parece uma surpresa para qualquer um, mas é um dado real que vi no jornal, conferi e era isso mesmo. Não me surpreendo. As nossas exportações para a Nigéria, por exemplo, devem chegar a 900 milhões de dólares, o que não é pouco. Praticamente encosta com o Peru, que é um país vizinho do Brasil. Então isso mostra como há um grande potencial. Existem várias curiosidades a que poderia me referir, não só em relação à África, mas aos países em desenvolvimento em geral.
Não quero deixar de mencionar algumas coisas que me parecem importantes. Se somarmos os 30 principais mercados brasileiros, os dez que mais cresceram nos últimos anos são de países emergentes como Índia e Rússia. Tem algumas coisas aqui que naturalmente desvirtuam a estatística, por exemplo Bahamas com um crescimento de 124%, o que naturalmente deve ser resultado de alguma triangulação. Não estou contando com isso. A Venezuela teve crescimento de 157% em um ano, no ano anterior tinha crescido 141%. Isso é para dar uma idéia de que essa busca por uma diversificação de parceiros tem resultado concreto, não é abstrata, não é ideológica, é pragmática. Esse aumento tem se dado ao mesmo tempo que aumentam as nossas exportações para os Estados Unidos e para a União Européia. Para os Estados Unidos, por exemplo, elas cresceram mais nos últimos três anos do que haviam crescido nos primeiros quatro anos do governo anterior.
Voltando à OMC, queria dizer, em primeiro lugar, que a negociação global é a mais importante para o Brasil, por várias razões. A principal é que o Brasil é um país que tem uma diversificação natural de parceiros muito grande. Hoje em dia o maior parceiro comercial do Brasil é a América Latina. A América Latina tem 23%, um pouco mais do que a União Européia. Os Estados Unidos respondem por cerca de 18%, 19%. A Ásia por 15,5%. O Brasil tem relações muito diversificadas, a África já responde por quase 10%. Temos aí uma clara diversificação de parceiros.
Portanto, a esfera de ação prioritária para a atuação do Brasil é a esfera multilateral, nunca a esfera regional substituirá a esfera multilateral, pode até complementar, mas não pode substituir. Até entendo que para países pequenos muitas vezes não seja assim. Para países pequenos ou que por uma situação geográfica específica tenham 80% do seu comércio já com determinado país, isso para ele é mais importante do que tentar negociar com o mundo, onde não tem muita chance de vender. Mas não é o caso do Brasil. O Brasil tem inserção verdadeiramente global na economia mundial, é pequena ainda pelo seu potencial, mas é global, e é bom que cresça dessa maneira. Assim, essa é a primeira razão pela qual a OMC é importante.
A segunda razão pela qual a OMC é importante é que ela dita as regras dentro das quais o comércio se realiza. E todos nós ouvimos. Pode não haver unanimidade na atribuição dos méritos, mas há unanimidade com relação ao resultado. O caso do algodão e o caso do açúcar jamais teriam ocorrido no contexto bilateral com os Estados Unidos ou no contexto da relação com a União Européia.
Em terceiro lugar, a grande distorção que existe hoje no comércio mundial – não é a única certamente, temos dumping e muitas outras coisas – é o comércio agrícola. E dentro dessa distorção, a principal distorção – não é também a única, mas a principal – é a existência dos milionários subsídios agrícolas que perpetuam os remanescentes de feudalismo em certos lugares do mundo. A não eliminação desses remanescentes da agricultura atrasada em várias partes do mundo rico faz com que se gere desemprego, fome e pobreza nos países em desenvolvimento.
Não há como considerar a questão dos subsídios agrícolas no âmbito regional, nem no âmbito de uma negociação com a União Européia. O máximo que podemos esperar é tentar, digamos, fazer com que não tenham subsídios os produtos exportados por nós. Não poderemos combater com o mundo. Os Estados Unidos, compreensivelmente, podem alegar: por que vou eliminar os meus subsídios se a Europa não elimina os dela. Entendemos isso e temos dado essa enorme prioridade à OMC. Para ilustrar, vou mencionar um caso concreto. Os países andinos estão passando por enormes dificuldades com relação ao livre comércio com os Estados Unidos. Uma das dificuldades que existe é que os Estados Unidos não abrem mão de vender produtos agrícolas subsidiados para esses países. Esse caso demonstra claramente que se uma negociação no plano regional não for contrabalançada com boas regras multilaterais provavelmente comprometeria vários setores, inclusive alguns que acho que poderiam se beneficiar dela no curto prazo. Não quer dizer que não possamos voltar a isso, mas desde que tenhamos um bom encaminhamento a longo prazo.
Bem, algumas palavras sobre o estado da negociação, que imagino que seja de grande interesse. Encontramo-nos em uma situação delicada na Rodada. Existe hoje uma consciência muito forte de que as negociações comerciais multilaterais são importantes demais para que possamos deixar que fracassem. Portanto, acredito que isso é algo que vai prevalecer, mas o momento é delicado porque no engrenar das negociações faltou um elemento. Digo em relação às negociações agrícolas, porque como sempre tenho dito, embora a Rodada abranja outros temas, como serviços, a locomotiva é a agricultura. Esse foi o conceito que o Brasil imprimiu e que foi repetido depois pelos Estados Unidos, por muitos outros países: o motor é a agricultura. Quando você tem uma locomotiva, mesmo que tenha vários vagões, quem se move primeiro é a locomotiva; não é empurrando o vagão que você vai fazer com que a locomotiva avance. Fazendo com que a locomotiva comece a funcionar é que os vagões podem também funcionar.
O nosso principal objetivo é a eliminação de subsídios, até a eliminação total de subsídios. Queremos a eliminação dos subsídios agrícolas, dos subsídios à exportação. Estou bem seguro de que obteremos, vai levar algum tempo, mas vamos obter. A redução substancial dos subsídios internos.Esse é o objetivo principal. Mas também temos interesse em acesso a mercados, o que é natural, queremos exportar mais para a Europa, para os Estados Unidos e para outros lugares. Vale lembrar que 50% das nossas exportações para a Europa são de produtos primários.
O que tinha ocorrido até aqui? A União Européia tinha começado um processo de reforma da sua agricultura, porque tinha que começar, independentemente de ter Rodada ou não ter Rodada. Porque ficava muito caro, porque tinha que incorporar dez novos membros, o consumidor europeu já não suporta ficar pagando certos preços eternamente. Por vários motivos, havia começado o processo de reformas. E esse processo de reformas implicava em algum corte nos subsídios. A União Européia reclamava, com uma certa razão, que os Estados Unidos não tinham feito nenhum gesto nessa área, não tinham feito nenhuma reforma. Pelo contrário, a última lei americana era muito desfavorável para o comércio internacional, muito protecionista.
Na reunião de outubro último, os Estados Unidos fizeram um movimento em relação aos subsídios internos. É um movimento que todos que estamos interessados nisso consideramos ao mesmo tempo relevante, mas insuficiente, certamente insuficiente. E depois, se for necessário, posso explicar tecnicamente o porquê. Há várias categorias, categorias consideradas mais expressivas e as categorias menos expressivas. Cortam 60% nas categorias mais expressivas, o que é algo importante, mas estariam transferindo alguns pagamentos de categorias mais expressivas para menos expressivas. Mas é um passo e é um passo que, de alguma maneira, pode ser complementado.
Mas o que vem a ser a complementação deste passo? Estamos dispostos a diminuir o valor do cheque que damos aos nossos agricultores. Mas o que é preciso em compensação? Acesso a mercados. E o que se tira do cofre do tesouro americano passará a vir do comércio internacional. Esse é o argumento principal. Para que isso ocorra é fundamental que a União Européia, que é o outro grande parceiro no comércio internacional, faça um movimento de acesso de mercados. E esse é um movimento que não houve. Dentro dessa situação, a oferta da União Européia foi considerada insuficiente por um grande número de países. A oferta seria inferior a da Rodada do Uruguai. A Rodada do Uruguai, por exemplo, não tinha produtos sensíveis, e agora tem até 8 %. Só isso já é uma proposta da União Européia. Os produtos considerados sensíveis são normalmente aqueles com tarifa mais alta que interessam muito ao Brasil. Mas vamos para outro exemplo, que considero muito ilustrativo. Há 2200 linhas tarifárias na agricultura. De acordo com a técnica que foi utilizada, uma variação em torno de um coeficiente, que chamam de pivô, a União Européia, na realidade, excluiria mais ou menos 70% dos produtos do corte linear. A base para a negociação do acesso ao mercado da agricultura seria uma forma baseada em um corte linear, e das 2200 linhas tarifárias apenas 330, 340 – não me lembro agora o número exato – é que teriam corte linear.
Essa é a situação que vamos enfrentar nos próximos dias. Temos procurado cooperar com os Estados Unidos, o que não significa nenhum alinhamento automático com os Estados Unidos, como também nunca houve nenhum alinhamento automático com a Europa. No momento, precisamos que esse elemento da engrenagem, que essa peça da engrenagem comece a girar. Se ela girar, podemos fazer com que as outras girem. E se essas outras não girarem, aí sim, em vez de falarmos sobre acesso a mercados na União Européia, vamos passar a falar de subsídios internos. Nunca deixei de falar sobre subsídios internos nos Estados Unidos.
Mas temos que reconhecer – é uma questão de lógica, de princípios – e isso inclui o Brasil, inclui a Austrália, que tem enorme experiência em negociações agrícolas e inclui um número grande de países que têm a visão de como se processam essas negociações, que, se não houver esse avanço, não haverá conclusão. O Brasil está preparado para avançar em outras áreas mas sempre condicionado a que haja uma oferta em agricultura e a perspectiva de um resultado em agricultura que justifique a Rodada. Se não houver agricultura, não há razão para continuar.