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A Alca e o jogo dos sete erros (O Estado de São Paulo)
CELSO AMORIM
As negociações para a constituição de uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca) despertam justificada curiosidade e interesse não só de especialistas, mas também do público em geral. O governo do presidente Lula tem encorajado um debate amplo sobre o tema, de modo a poder refletir da maneira a mais democrática possível as ambições e as preocupações da sociedade brasileira. Por isso tornou públicas as ofertas brasileiras e tem esclarecido nossas posturas negociadoras. Em recente artigo, intitulado A Alca possível, fiz um resumo do estágio em que nos encontramos e apresentei as diretrizes aprovadas pelo presidente. Volto, hoje, ao tema com o fim de procurar esclarecer aspectos que são objeto de mal-entendidos. Identifico, em particular, sete questões ou "mitos" que merecem ser dissecados. Neste primeiro artigo, trato de três deles.
"Aderir ou não aderir à Alca." A Alca é um projeto in fieri, que não existe como realidade acabada. Quando um país deseja ingressar na Organização Mundial do Comércio (OMC) - como ocorreu com a China recentemente -, são negociados termos e condições para sua acessão. O país aceita regras em cuja elaboração não teve voz, em troca de vantagens - reais ou percebidas - de participar do sistema multilateral de comércio. É uma situação distinta da que ocorre na Alca, que ainda está, por assim dizer, na linha de montagem. Não se trata de aderir ou não à Alca, mas de definir seus contornos, conciliando interesses "ofensivos" - no caso do Brasil, acesso ao mercado dos EUA para produtos como aço, calçados, suco de laranja, açúcar - e preocupações "defensivas" - autonomia governamental para a adoção de políticas industriais, tecnológicas, etc.
"Alca (= Área de Livre Comércio das Américas) será o equivalente americano da União Européia." Não é à toa que boa parte do público tem da Alca uma percepção pouco clara: o próprio enunciado "livre comércio" se presta a equívocos. O projeto da Alca, conforme seu principal proponente - e outros que já subscreveram acordos bilaterais desse tipo -, envolve muito mais do que liberalização "comercial". De acordo com essa corrente, deveriam ser discutidas na Alca questões como investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual, para não falar de meio ambiente e cláusulas trabalhistas, que extrapolam a concepção do Gatt ou mesmo do acordo de serviços da OMC. Boa parte da motivação norte-americana para negociar a Alca é justamente a de obter regras para aquelas questões segundo padrões que estão acima do que podem conseguir no plano global.
O adjetivo "livre" também tem de ser visto como grão de sal. Pelo que foi demonstrado até hoje, não parece haver intenção, por parte de nossos parceiros, de eliminar todas as suas barreiras e práticas distorcivas. No caso das barreiras não-tarifárias, é notória a falta de disposição dos EUA para discutir temas como antidumping, por exemplo. Mesmo no que toca a tarifas, a oferta existente para produtos agrícolas de interesse brasileiro se limita a cotas tarifárias, "em dez anos ou mais". Da eliminação dessas tarifas não se fala, como não se fala de redução ou fim dos subsídios que nos prejudicam no mercado norte-americano e em terceiros mercados.
Até mesmo a palavra "Américas" é imprecisa, já que - por razões boas ou más - Cuba não figura no universo de participantes. Em suma, o termo "Alca" faz pensar no Sacro Império Romano Germânico, que, como disse um pensador do século 19, não era nem sacro, nem império, nem romano ou germânico. A idéia de que a Alca possa vir a ser o correspondente americano do projeto de integração europeu, ou mesmo do Mercosul, é ilusória. Basta pensar no livre trânsito de pessoas, que certamente não estará em cogitação em futuro previsível. Muito menos se pode falar de uma política de segurança comum ou de uma política externa única. Ao envolver países de graus de desenvolvimento muito diverso, a Alca é projeto sui generis, cuja identidade está sendo moldada em função de expectativas nem sempre convergentes, que precisam ser mais bem formuladas e discutidas pelos diferentes participantes.
"Conforme for, o Brasil fica de fora." Este raciocínio, muito presente na formulação de posições anteriores, é mais teórico do que real. A lógica das negociações internacionais - e sobretudo das que envolvem muitos países - faz com que a opção de não aderir a um acordo de cuja elaboração o País participou seja muito custosa. Não só é difícil de justificar moral e politicamente tal ausência, como se cristalizam interesses em torno de eventuais vantagens, por menores que sejam, que dificultam a opção de "ficar de fora" (basta recordar o caso da Rodada Uruguai). A partir do momento em que assumimos uma postura de negociação, o correto e natural é que procuremos usar nossa liderança no sentido de fazer valer nossos interesses "ofensivos" e "defensivos", juntamente com os dos nossos sócios, de modo a influir no seu desenlace. Evitamos, assim, opções radicais, de elevado custo político e econômico. Reconhecendo plenamente as atribuições do Legislativo de ratificar ou não qualquer acordo internacional negociado pelo Executivo (com ou sem confirmação por referendo popular), é preferível observar, desde logo, uma postura de firmeza negociadora, de modo a não termos de escolher entre a adesão a um tratado que não nos agrada e sua rejeição pura e simples, após haver participado de sua elaboração.
Na continuação deste artigo, tratarei dos quatro "mitos" restantes.
Celso Amorim é ministro das Relações Exteriores