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A Alca e o jogo dos sete erros (final) (O Estado de São Paulo)
CELSO AMORIM
Na primeira parte deste artigo, publicada no domingo (24/8), tratei de três questões ou "mitos" sobre as negociações da Alca. Hoje, complementando o artigo, trato dos quatro restantes.
"O formato 4+1 retira da Alca o foco em acesso a mercados." Essa opinião sobre as propostas brasileiras - repetida com alguma insistência - é o oposto do que temos procurado fazer. Conforme tenho declarado, o mercado norte-americano, por sua dimensão e dinamismo, constitui o foco central de interesse brasileiro numa Alca. Com a exceção do caso canadense, não precisamos de uma negociação hemisférica para nos aproximarmos de nossos vizinhos sul-americanos, nem sequer de México e Cuba - que são membros da Aladi. Por outro lado, não foi o Brasil que fragmentou sua oferta em acesso a mercados. Enquanto a oferta inicial do Mercosul foi feita, talvez com certa ingenuidade, sob a forma erga omnes, a delegação norte-americana decidiu diferenciar suas propostas por países e grupos de países - reservando ao Mercosul tratamento o menos favorável. Considerando esta realidade, o Mercosul se dispôs a negociar em bloco com os EUA, num formato 4+1. Achamos que, assim, preservaremos melhor nossos interesses, que, do contrário, ficariam diluídos numa negociação entre 34 países heterogêneos.
Não temos nenhum preconceito contra dizer-se que este acordo se dá no âmbito da Alca, de conformidade com regras gerais, que logremos negociar sobre solução de controvérsias, regras de origem, etc. (tampouco facilmente equacionáveis). Contrariamente a algumas interpretações, o formato 4+1 não exclui da Alca o capítulo de acesso a mercados. A desgravação a ser acordada se inserirá no contexto do arcabouço plurilateral, válido para todos.
Tampouco teremos dificuldade em "multilateralizar" na Alca o que viermos a negociar no 4+1 (é distinta a situação oposta - a de estender aos EUA acordos preferenciais com países da América do Sul). A estratégia dos três trilhos faz com que a Alca se concentre precisamente nas questões de acesso, e não naquelas que, como diz Bhagwati, pouco ou nada têm que ver com o comércio. Trata-se de enfoque pragmático e que leva em conta as posturas da principal economia da região.
"A ênfase em acesso a mercados pressiona a indústria." Há quem considere que a reconfiguração da Alca, segundo o modelo dos "três trilhos", retirará da nossa indústria elementos defensivos de barganha, forçando-a a uma maior e mais rápida liberalização. Recordo, resumidamente, que a concepção dos três trilhos visa a transformar a Alca num exercício concentrado na eliminação de entraves ao comércio de bens e serviços (trilho 1), dentro de um marco regulatório simplificado aplicável aos 34 países (trilho 2), escoimado de questões sensíveis para diferentes participantes (no caso do Mercosul, propriedade intelectual, investimentos, regras para serviços, compras governamentais), em resposta à exclusão de temas de nosso interesse pelos EUA. Esses temas seriam tratados na Organização Mundial do Comércio (OMC), segundo os mandatos da Rodada de Doha (trilho 3). Como se sabe, os processos de estabelecimento de áreas de livre comércio prevêem a redução a zero das tarifas de importação, seja qual for o seu escopo. Assim sendo, ao se aceitar a negociação de uma área de livre comércio, estabelece-se que a indústria nacional terá de se preparar para conviver, afora exceções pontuais, com a inexistência de restrições aduaneiras para os produtos importados - independentemente da aceitação da proposta dos "três trilhos". Se isso é bom ou não é algo que pode ser discutido. Mas nada tem que ver com a estratégia proposta pelo Brasil e seus sócios. Por outro lado, nossos industriais podem ficar certos de que o governo Lula zelará para que o ritmo e o alcance das desgravações na área industrial levem em conta seus interesses e sensibilidades. Aliás, a consciência desses interesses se reflete na defesa da liberdade para a política de compras governamentais e na inclusão de cláusulas sobre indústria nascente entre as condicionalidades de nossa oferta.
"O risco de isolamento." Enquanto se negocia a Alca, proliferam iniciativas bilateralizantes envolvendo diferentes participantes no processo. O Chile já concluiu um acordo com os EUA, fala-se na Colômbia e na República Dominicana como futuras candidatas a seguir os passos chilenos.
Existe uma percepção equivocada de que o Brasil poderá estar correndo riscos, caso persista em sua estratégia de redimensionar a Alca. A esse respeito caberia esclarecer inicialmente que o modelo do acordo EUA-Chile não convém a um país com as características do Brasil. Acresce que, ao mesmo tempo, estamos ativamente participando da Rodada de Doha na OMC, negociamos um acordo Mercosul-União Européia e desenvolvemos outras iniciativas com a África, o Oriente Médio, a Índia, a China, a Rússia e, sobretudo, com a América do Sul. Na realidade, o que se nota é que há mais "demanda" por Brasil do que "oferta". O risco é de não sermos capazes de corresponder à expectativa de aproximação com um número crescente de parceiros. Não o contrário.
"Devemos defender nossos interesse, sim, mas dentro de um enfoque realista." Desde que se verificou que a noção de "Alca abrangente" (comprehensive) era um mito, em função da recusa norte-americana de tratar questões de nosso interesse fundamental, como antidumping e subsídios agrícolas, os críticos da postura do governo passaram a defender uma posição "realista". Na visão desses críticos (explicitamente ou não), realismo consiste em abrir mão de algumas reivindicações essenciais e aceitar, integralmente, se não as demandas, ao menos o modelo negociador proposto por nossos parceiros. Esses "realistas" são, na realidade, mais realistas que o rei, pois os próprios norte-americanos admitem que, da forma como as coisas iam, a Alca estava à beira do colapso. Além de ignorarem nossos interesses de longo prazo em áreas vitais, esses "realistas" deixam de levar em conta que não podemos gastar toda a munição negociadora em uma etapa, se formos precisar dela em outra, e parecem acreditar que a virtude traz consigo sua própria recompensa (preceito irrealista se aplicado às relações entre as nações, sobretudo no campo comercial).
Celso Amorim é ministro das Relações Exteriores