Notícias
Discurso na cerimônia de formatura de diplomatas do Instituto Rio Branco - Brasília, 25 de maio de 1990
Compareço à cerimônia de formatura do curso de preparação à Carreira de Diplomata, do Instituto Rio Branco, seguro de que não se trata de mero evento protocolar, mas, antes, de estimulante reunião de trabalho, com um único tema na agenda, a diplomacia brasileira e a correta inserção do País no concerto das nações. Com seus colegas bolsistas da África e América Latina, aqui estão os futuros agentes avançados do interesse nacional no exterior, jovens que se distinguiram em sua geração quando ingressaram, pelo mérito, nesta casa, aceitando, agora, o compromisso maior de servir ao Brasil, numa carreira que dignifica o funcionalismo público. Registro, ainda, com particular contentamento, a concorrência de convidados ilustres, brasileiros e estrangeiros de njúltiplas origens, compenetrados todos na comemoração do Dia do Diplomata, momento próprio para examinarmos, juntos, nossa agenda de trabalho. Nossa inserção correta e definitiva no concerto das nações é compromisso inarredável de meu Governo. Isto guarda perfeitá sintonia com o Brasil que estamos empenhados em reconstruir, e corresponde ao desafio da universalização das relações internacionais, a cuja dinâmica quem não souber se adaptar corre o risco de ser punido com o isolamento e a marginalidade.
Uma política externa lúcida deve ancorar-se na realidade e nas aspirações do povo brasileiro, buscando, no plano externo, espaço próprio para projetar e guardar os interesses nacionais, a partir de uma tradição diplomática — em nosso caso felizmente rica e modelar — de respeito aos princípios básicos da melhor convivência internacional. A tônica primeira da política externa do Brasil há de refletir a convicção generalizada de que este País quer mudar, e mudar depressa. Estamos cansados da promessa do país do futuro. Os problemas nacionais exigem solução urgente. A campanha das Diretas-já, a ampla discussão nacional que enriqueceu os preceitos consagrados na nova Carta da República e, sobretudo, a mobilização cívica que, em inesquecível lição democrática, culminou nas eleições presidenciais de 1989, constituíram hipotecas de esperança, cujo resgate já não se pode adiar, sob pena de se frustrarem, de novo, as aspirações maiores da cidadania. Por isso, não hesitei em determinar, logo nas primeiras horas de meu Governo, um elenco de medidas que reorientassem o País na direção do progresso econômico e do bem-estar social, em clima de austeridade econômico-financeira, arejamento ético e eficiência administrativa. Quis dar, do Executivo, o exemplo do que toda a nação há décadas vinha sonhando testemunhar — a mudança do Brasil, sua transformação em Pátria coletivamente brasileira, derrubados os privilégios cartoriais, dinamizada a máquina estatal, fortalecida a sociedade civil, cobrada de quem pode pagar a conta de quem tem a receber.
A resposta firmemente favorável àquele programa de ação reforçou nossa fé no acerto dos rumos propostos à sociedade brasileira. Com essa autoridade, sentimo-nos agora confiantes para reclamar participação mais ativa do Brasil nas grandes decisões internacionais. Aprendemos com a História que o estatuto de Nação periférica tem preço muito alto para os interesses nacionais. Da empresa colonial, imperial e industrial, por exemplo, só pudemos participar do lado errado do ciclo econômico. Fornecemos matérias-primas, expusemos nossas matas, nossa natureza, nossos recursos naturais à prioridade mercantil nem sempre nacional, assistimos ao esforço desenvolvimentista do Hemisfério Norte e aceitamos uma divisão internacional do trabalho e das riquezas que até hoje atrofia nossas relações econômicas, financeiras e comerciais com o mundo. Participamos, orgulhosos do sentido histórico de missão, do esforço de guerra contra a ameaça nazi-facista, mas presenciamos, impotentes, a divisão da Alemanha, da Europa e do mundo, em nome de concepções estratégicas de sombrio alcance para todos, ao abrigo das quais alguns altares de devoção ideológica cindiram o cenário internacional em classes de países e transferiram para as relações exteriores uma dialética de luta de classes vocacionalmente destrutiva. Participamos, ainda, do aplauso a sucessivos ensaios de distenção e desarmamento, convictos de que, em clima de paz, a comunidade de nações poderia melhor concentrar-se na promoção do avanço tecnológico. Foi quando ouvimos que o nosso acesso àqueles extraordinários instrumentos de alta tecnologia para o combate a nossas mazelas estruturais, assim como possibilidades fecundas de cooperação entre governos, dependiam de um atestado de boa conduta, passado por um pequeno clube de países, auto-investidos no papel de juizes supremos da consciência ética internacional. Nosso projeto de fuga da periferia das grandes decisões internacionais não reflete uma ambição de poder alimentada pelo desígnio do protagonismo. Isso não faz parte do perfil clássico do brasileiro, nem consta de nossa tradição diplomática. Nosso projeto inspira-se, antes, na idéia de que, em meio às várias e profundas mudanças que no mundo de hoje universalizam as relações internacionais, temos de buscar e proteger soluções nacionais.
A distensão entre os blocos bipolares de poder, a derrubada do muro de Berlim, a recuperação da vontade popular no Leste Europeu, o recuo das crises regionais, o início do desmantelamento do apartheid na África do Sul, sem dúvida, constituem indicadores seguros do limiar de uma nova era, plena de perspectivas promissoras de entendimento e paz. Uma nova era que também prenuncia contribuições inestimáveis à modernidade, como a valorização do cidadão sobre o Estado, das idéias sobre as ideologias, da liberdade sobre o autoritarismo, do diálogo sobre o enfrentamento, do progresso, do bem-estar, da democracia, da paz, da vida. Mas é importante reconhecer, por igual, que essa nova era encerra — ao menos para países, como o Brasil, decididos a não mais ficar a reboque de decisões alheias no plano internacional — desafios que não se podem subestimar. Cito como exemplo a tendência em favor da criação de megablocos econômicos no Hemisfério Norte, que, ameaça acentuar a marginalização da América Latina e da África, mercê de sua estrutural fragilidade econômica. Cito, ainda, a ampliação da agenda de um novo multilateralismo que, no trato de questões de inequívoco interesse para a humanidade, parece querer desconsiderar princípios básicos do Direito Internacional, como o da igualdade soberana entre os Estados. Nesse particular, o rigor da diplomacia brasileira, admirado outrora, ganha relevo inestimável no presente. Convido, assim, os formandos do Instituto Rio Branco a que se juntem a seus colegas mais experientes desta casa e reafirmem à comunidade das nações nossa vocação de defesa da paz e do entendimento entre os povos, em clima de igualdade, respeito mútuo e cooperação; nosso compromisso com os princípios de soberania nacional, autodeterminação e não-intervenção; Nosso mais veemente repúdio ao terrorismo, a toda forma de preconceito e discriminação; nossa fé na democracia; nosso empenho na construção de sociedades mais livres, justas e solidárias.
Peço-lhes, também, que privilegiem na América Latina o nosso firme propósito integrativo, mas acentuem a dimensão universalista de nossa política externa, que não estabelece prioridades excludentes. Rogo-lhes que transmitam a nossos credores nossa intenção de reequacionar o problema da dívida externa, mas recordem que nossa dívida maior é com o desenvolvimento nacional e a redenção econômica dos trabalhadores brasileiros. Convoco-os a se associarem às preocupações coletivas de defesa e preservação de nosso espaço ecológico. Insistam, no desempenho de sua atividade, em que o Brasil esteja presente a toda mesa de trabalho, onde nosso esforço possa contribuir para eliminar os abismos ainda existentes entre desenvolvidos e subdesenvolvidos, assegurando a um número cada vez maior de países o acesso aos benefícios da civilização moderna. Reiterem, ainda, nosso empenho em apoiar a crescente integração da economia e do comércio mundiais. Frisem nosso gosto por atitudes soberanas no cenário internacional, que não impliquem confronto, ou revelem um projeto decidido de abrir caminho a investimentos que capacitem nosso parque industrial e rejuvenesçam nossa competitividade.
Em seu primeiro dia como funcionários do serviço exterior brasileiro, convoco-os, por igual, a trabalhar pela recuperação da imagem de nosso País, injustiçado ante a opinião pública internacional pela frivolidade, quando não pela má-fé de vozes irresponsáveis. Autorizo-os, agora e sempre, refutar a leviana aleivosia de que aqui se toleram atentados à dignidade étnica de nossas populações indígenas ou à preservação de nosso ecossistema.
A juventude do nosso tempo coincide com uma juventude de idéias, no rastro do amadurecimento de um século marcado pela intolerância e violência. No Brasil e no mundo, não nos podemos permitir novos erros que, decerto, devolveriam a obscuras cavernas os sonhos mais iluminados de recuperação da dignidade humana, cívica e ética de tantas gerações. A responsabilidade que, hoje, se lhes abre em sua vida profissional é exatamente da altura do patrono e do paraninfo escolhidos. A política externa independente de San Thiago Dantas foi o primeiro — mas não o último — grito de uma nação angustiada em seu processo de crescimento. A presença do Embaixador Antônio Houaiss, onde o Ministro das Relações Exteriores entreviu um discurso de dignidade, ilustra a perfeita estatura dos funcionários desta casa, que tampouco pára de crescer. A escolha que os formandos fizeram dos ilustres brasileiros que, para sempre, hão de marcar a turma de 1989 deve exortar ao patriotismo e ao profissionalismo com que, nesta casa, todos servirão ao Brasil. De minha parte, como Presidente da República e como cidadão brasileiro, irrecuperavelmente confiante nesse novo Brasil que vejo à minha frente, saúdo e cumprimento a todos e a cada um dos formandos, pedindo-lhes que aceitem, junto com seus familiares e colegas de outros países queridos e amigos, um voto de pleno êxito na carreira em que ora ingressam.
Declaro encerrada a cerimônia.