A Ética da Terra

Refazenda
Gilberto Gil ‧ 1975
Abacateiro
Acataremos teu ato
Nós também somos do mato
Como o pato e o leão
Aguardaremos
Brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos
Teu amor, teu coração
Abacateiro
Teu recolhimento é justamente
O significado
Da palavra temporão
Enquanto o tempo
Não trouxer teu
abacate
Amanhecerá tomate
E anoitecerá mamão
Abacateiro
Sabes ao que estou me referindo
Porque todo
tamarindo tem
O seu agosto azedo
Cedo, antes que o
janeiro
Doce manga venha ser também
Abacateiro
Serás meu parceiro
solitário
Nesse itinerário
Da leveza pelo ar
Abacateiro
Saiba que na refazenda
Tu me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a namorar
Refazendo tudo
Refazenda
Refazenda toda
Guariroba
Em junho, quando se celebra o Dia Mundial do Meio Ambiente e se renovam as esperanças na Conferência dos Oceanos da ONU, surge uma oportunidade de refletir sobre o lugar que ocupamos no mundo. As queimadas nas florestas, o gelo que se vai calado, o mar que muda de cor e de humor, tudo isso não é apenas um aviso da ciência ou um sinal de previsão: é o mundo dizendo que desaprendemos a escutá-lo. São também retratos de uma perda de valores que antes pareciam guardados com mais zelo, como o cuidado com o que vem depois de nós.
A agonia da Terra, nas marés desreguladas ou nas estações que já não cumprem o combinado, revela, com certa melancolia, o quanto nos afastamos de nós mesmos. Há tempos não escutamos os sinais do tempo. Na pressa de desejos imediatos, pouco a pouco naturalizamos a lógica do excesso: extrair além do necessário, consumir sem critério, descartar com indiferença, como se os recursos fossem infinitos.
No serviço público, ética também é saber usar com parcimônia o que se tem. Pepe Mujica dizia que a liberdade começa quando nos despedimos do excesso: viver “com o suficiente para que as coisas não me roubem a liberdade”. E tinha razão. Gastar menos não é sovinice, é gentileza com quem vem depois. Cada recurso que se guarda é um gesto de cuidado, não com a conta, mas com os que dividem este mundo conosco. E, quando ele lembrava que pagamos as coisas com o tempo da nossa vida, dizia aquilo que sabemos, mas raramente nos permitimos sentir: tempo não se acumula e não aceita troco.
O Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal (Decreto nº 1.171/94) nos lembra que: “causar dano a qualquer bem pertencente ao patrimônio público, deteriorando-o, por descuido ou má vontade, não constitui apenas uma ofensa ao equipamento e às instalações ou ao Estado, mas a todos os homens [e as mulheres] de boa vontade que dedicaram sua inteligência, seu tempo, suas esperanças e seus esforços para construí-los”. Assim, cuidar do que é do coletivo é um jeito de devolver à vida um pouco da dignidade que ela nos empresta. Escolher o que é sustentável e estender a mão ao próximo é como dizer: “estou aqui cuidando do que é seu também”. Preservar o que é público é guardar memória e compromisso num mesmo gesto. Esses valores, que às vezes parecem grandes demais para o nosso cotidiano, começam nos gestos miúdos. No mesmo sentido, a ética não se mede pelo tamanho dos atos, mas pela coerência com que cuidamos do que é da sociedade. E cuidar, como se sabe, é uma das formas mais simples, e mais sérias, de civilização.
É também essa delicadeza silenciosa, feita de atenção e respeito, que se vê nas imagens de Sebastião Salgado, no Projeto Gênesis, em que fotografou o mundo que ainda não desaprendeu a ser mundo. Suas lentes revelaram ambientes onde a pressa ainda não passou, onde o barulho da máquina ainda não venceu o som do vento. Viu geleiras como páginas em branco, desertos com ar de eternidade, matas que cochicham e povos que vivem em voz baixa, como se desconfiassem do futuro. Cada fotografia é um lembrete: não estamos acima da natureza, estamos dentro. As imagens de Salgado são sinais de um tempo em que o mundo ainda falava por si, sem tradução. E há nisso tudo uma esperança antiga: a de que ainda é possível habitar o mundo com comedimento. Essa esperança nos pede uma humildade que talvez só se aprenda ao escutar o som da Terra, aquele som fundo, feito barulho de mar dentro de uma concha.
Essa escuta também pode se dar no cotidiano mais modesto do serviço público: na pausa sem pressa para o café, numa breve caminhada depois do almoço, num pedaço de pão caseiro repartido entre colegas, no hábito de frequentar feiras orgânicas de produtores locais ou num diálogo sem pauta, desses que valem mais pela presença do que pelas palavras. Esses pequenos gestos ajustam o tom com que pisamos no mundo. E é nesse compasso, mais contido e mais gentil, que mora a parte mais decente da civilização.
Caso tenha dúvidas ou queira compartilhar boas práticas para um serviço público mais zeloso, nossa a Comissão de Ética do Ministério da Justiça e Segurança Pública está à disposição.