Riqueza que brota do encontro com a terra
De longe, o chão quase abre no meio. O céu arde. A terra parece dormida, mas pulsa. É a Caatinga — o único bioma 100% brasileiro, ocupando 862.818 km² de extensão, mais da metade da Região Nordeste. Quem escuta a palavra “Caatinga” pela primeira vez pode pensar em algo árido, cinzento, minguado. Mas basta um dia no sertão para perceber que a Caatinga é tudo, menos ausência. Ela fala, vive, explode em biodiversidade rara. É como um idioma próprio que o Nordeste aprendeu a decifrar com o tempo — e que agora o mundo começa a traduzir como oportunidade.
Dentro desse cenário singular, o invisível começa a ganhar nome. Sob as folhas miúdas, entre espinhos e pedras, há uma potência antes silenciosa que agora se ergue como estratégia de futuro. A Caatinga já não é apenas paisagem de resistência — é protagonista de um novo modelo de desenvolvimento.
Uma transformação que se desenha no ritmo das chuvas raras, mas certas, e das mãos e mentes que aprendem a colher sem ferir e a planejar com responsabilidade.

- Soldadinho do Araripe, espécie endêmica da Caatinga e exclusiva do estado do Ceará. Foto: https://www.allaboutbirds.org/, acesso em 13/06/2025.
Uma ciência com raízes. Literalmente.
Entre os mandacarus, o licuri, a jurema e o umbuzeiro, a biodiversidade da Caatinga revela um saber ancestral em diálogo com a ciência contemporânea. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, o bioma abriga 4.963 espécies de plantas, com alto índice de exclusividade: entre 30% e 50% delas só existem nesse território. A Caatinga também é um dos maiores redutos de cactos do mundo, com mais de 80 espécies catalogadas. Ainda de acordo com o órgão federal, entre as espécies avaliadas, 30% enfrentam algum grau de ameaça de extinção.
A fauna também impressiona. São mais de 500 espécies de aves, cerca de 150 mamíferos, mais de 100 répteis, mais de 40 anfíbios e aproximadamente 240 espécies de peixes — sendo que 136 delas são endêmicas. A diversidade de invertebrados também é notável: há registros de 221 espécies de abelhas, 276 de formigas e 93 de aranhas.
Mesmo com essa riqueza, a Caatinga ainda é um dos biomas que precisa ganhar o espaço que merece nas agendas do Estado e da academia. E, talvez por isso, também seja um dos territórios menos protegidos: mais de 80% de sua vegetação original já foi alterada por desmatamento ou queimadas. Em termos de Unidades de Conservação, atualmente o bioma Caatinga dispõe de 258 Unidades de Conservação (UC), que perfazem menos de 10%, do seu território. Dessas, 125 UCs são federais, 117 estaduais e 16 municipais, segundo dados do próprio MMA.
De fato, na Caatinga, ciência é ferramenta de permanência. De pertencimento.
Do chão ao mercado: uma nova bioeconomia
É desse princípio que parte o programa Impacta Bioeconomia, iniciativa da Sudene que busca transformar a biodiversidade nativa em vetor de inovação, renda e desenvolvimento regional.
O projeto mapeia territórios e conecta universidades, cooperativas e agricultores familiares em um ambiente de troca de experiências e saberes. Estimula cadeias produtivas que respeitam a lógica do bioma — extração sem exaustão, produção com identidade. O mel de abelha sem ferrão, o óleo de licuri, os fitoterápicos variados — cada produto é também uma história de convivência.
Entre os que defendem um novo olhar sobre essa riqueza, está a Diretora do Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde do Ministério da Saúde (iCeis), Monica Felts.
Aqui, a Caatinga não é recurso a ser explorado, mas inteligência a ser interpretada.
Uma economia que floresce da convivência
Mais de 27 milhões de brasileiros vivem na Caatinga, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A maioria depende diretamente dos serviços ecossistêmicos que ela oferece: solos férteis, agentes polinizadores naturais, alimentos, água, sombra, regulação climática. E cada vez mais, depende também do reconhecimento de que a biodiversidade do bioma é um ativo econômico legítimo — uma fonte de riqueza que, manejada com justiça, pode reverter desigualdades históricas.
Essa economia não pede um novo modelo imposto de fora, mas o fortalecimento do que já existe — o saber local, o uso tradicional, a gestão coletiva. Trata-se de uma virada epistemológica: reconhecer valor onde antes se via escassez.
É também uma convocação. Porque proteger a Caatinga é enfrentar as crises do presente — a desertificação, a pobreza, o êxodo rural — com soluções que brotam do próprio território.
Não por acaso, a conservação do bioma está vinculada a duas das três convenções internacionais das Nações Unidas: Convenção de Diversidade Biológica - CDB e a Convenção de Combate à Desertificação – CCD.
Bioeconomia em movimento
Do coração da Caatinga, cooperativas de agricultura familiar, universidades públicas e instituições como a Sudene articulam um ciclo virtuoso que une sustentabilidade, inovação e impacto social.
Na cooperativa Cooates (Cooperativa de Trabalho Agrícola, Assistência Técnica e Serviços), no município de Barreiros, zona da mata sul de Pernambuco, a produção gira em torno de itens como o mel de mangue vermelho e o própolis extraído de espécies nativas. Para José Cláudio da Silva, presidente da cooperativa, a bioeconomia é mais que uma alternativa: é um horizonte sustentável.
Na outra ponta, pesquisadores como Carla Oliveira, da UFPE, assumem a missão do Impacta Bioeconomia de extrapolar os muros da academia. Ela explica que o trabalho com as cooperativas começa pelo reaproveitamento do que antes era descartado.
Essa lógica circular é bem compreendida por Jussara Dantas de Souza, diretora executiva da Coopercuc. Com quase 20 anos de atuação, a cooperativa trabalha com frutas da Caatinga e produtos lácteos da caprinovinocultura, com parcerias que já extrapolam o Brasil.
Essa transformação passa também pela ciência de ponta. Na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) – outra parceira da Sudene - o professor Jackson Guedes coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas de Plantas Medicinais (Neplame) há quase duas décadas. Agora, entra em nova fase: desenvolvimento de cosméticos, suplementos e medicamentos fitoterápicos. Entre os lançamentos previstos estão protetor solar natural, suplemento para diabetes e medicamento fitoterápico para insônia e ansiedade.
O Impacta Bioeconomia não apenas revela o potencial da Caatinga, como consolida um novo modelo de desenvolvimento regional, em que saber popular, ciência e inclusão produtiva caminham juntos.






