A guardiã silenciosa
Registro da Caatinga presente no estado da Paraíba.
Foto: Cacio Murilo (Depositphotos)
A força invisível da Caatinga na luta contra a crise climática
Ninguém avisa quando ela floresce. Não há manchete, não há sirene, talvez pouquíssima comoção. No entanto, é ali, no silêncio quebradiço do Semiárido, que a Caatinga faz seu espetáculo invisível.
Chove um pouco — só um pouco — e o chão racha, mas em vida. As folhas explodem verdes. As raízes se esticam num sobressalto. A mata parece acordar assustada de um sonho seco, como quem tem pressa de viver.
É nesse momento que ela começa a capturar carbono. Em ritmo frenético. Em um frenesi biológico que desafia até as florestas tropicais mais exuberantes. Ninguém vê, mas acontece. E está salvando o planeta. Na contramão do estigma de escassez, a Caatinga — único bioma 100% brasileiro — revela um superpoder ecológico que a ciência começa, enfim, a dimensionar. Seus ciclos-relâmpago de fotossíntese e sua notável eficiência em reter carbono atmosférico posicionam essa vegetação, rústica e resiliente, como protagonista silenciosa no combate à crise climática.
O Brasil, talvez sem perceber, tem no coração do Nordeste um trunfo invisível. Mas esse potencial ainda é pouco conhecido. Com muito esforço, este dom superlativo do bioma começa a permear o conhecimento geral. A mobilização conta com várias frentes: a atuação integradora da Sudene, além de uma rede em expansão de cientistas, ativistas, povos tradicionais e gestores públicos que tenta mudar esse cenário.
E neste especial, você será convidado a enxergar — com outros olhos — esse tesouro escondido em meio à seca. Leia, ouça e veja este conteúdo sensorial.
No Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido, na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), o pesquisador John Cunha observa as curvas de carbono da Caatinga como quem lê sinais vitais de um organismo vivo. Os gráficos sobem, descem, se curvam como pulsações. Os batimentos dessa floresta de aparência árida seguem o compasso da chuva, da luz, do vento. É uma máquina biológica de altíssima eficiência.
Longe de ser uma paisagem estática, a Caatinga revela uma inteligência ecológica moldada pelos extremos. Suas plantas, de raízes profundas e folhas temporárias, são verdadeiras especialistas na arte de sobreviver — e mais que isso, na arte de capturar carbono.
Quando chega a chuva, esse bioma acorda de imediato. Folhas brotam, galhos se estendem, e num curto espaço de tempo, a fotossíntese acontece com intensidade impressionante. A Caatinga sequestra carbono com uma pressa que beira o frenesi biológico.
Mas há mais. Dados recentes colocam a Caatinga em um patamar surpreendente quando o assunto é eficiência ecológica. Embora a Amazônia apresente uma produção primária bruta (GPP) muito mais elevada — cerca de 30 a 35 toneladas de carbono por hectare por ano —, uma parte significativa desse carbono é consumido pela própria floresta, no seu processo respiratório natural. Na Caatinga, apesar de a GPP ser menor, variando entre 10 e 15 toneladas de carbono por hectare, a eficiência no uso desse carbono é consideravelmente superior.
Em termos de troca líquida de carbono com a atmosfera (NEE), as torres de fluxo instaladas em áreas de Caatinga revelam dados que desconcertam quem ainda vê este bioma como pobre ou secundário. A Caatinga consegue sequestrar, de forma líquida, entre 1,5 e 3 toneladas de carbono por hectare, por ano. É uma performance que, em muitos casos, supera a do próprio Cerrado e se aproxima dos melhores índices da Amazônia conservada.
Mais impressionante ainda é sua capacidade de retenção. Estudos indicam que a Caatinga chega a manter até 45% do carbono que fixa no solo e na biomassa, um percentual que ultrapassa inclusive muitas florestas tropicais úmidas, cuja exuberância nem sempre reflete uma retenção proporcional de carbono.
O segredo da Caatinga está nos extremos. Neste laboratório a céu aberto, onde a vida desafiou a escassez, cada folha é um sensor, cada raiz é uma aposta no subsolo. Tudo funciona de forma precisa, econômica, rápida — uma engenharia biológica afinada ao limite da sobrevivência.
Ao comparar os biomas, percebe-se que a Caatinga não é apenas resiliente; ela é estrategicamente eficiente no combate às mudanças climáticas. Seu papel como sumidouro de carbono precisa ser urgentemente reconhecido, valorizado e, acima de tudo, protegido. É preciso quebrar esse estigma de que a Caatinga é um vazio biológico.
Prosa e técnica: a caatinga respira
Se você chegou até aqui, talvez já tenha lido — ou visto — que a Caatinga é muito mais do que parece. Que ela guarda carbono no chão, na matéria orgânica, nas raízes escondidas. E que, quando a vegetação desaparece, esse equilíbrio se quebra. Mas… o que exatamente acontece? Por que esse bioma, que só existe aqui, tem uma relação tão delicada — e tão essencial — com o clima do planeta?
No episódio de hoje, a gente mergulha fundo nessa história. Uma conversa que atravessa ciência, economia, desenvolvimento e território. Quem guia esse caminho são dois especialistas que dedicam suas carreiras a entender — e defender — os ciclos vivos do semiárido brasileiro.
De um lado, John Cunha, pesquisador que enxerga no carbono não só um indicador ambiental, mas uma chave para pensar o desenvolvimento sustentável. Do outro, Cláudia Lima, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e presidente do Instituto Tecnológico das Cadeias Biossustentáveis (ITCBIO) — alguém que conhece, como poucos, os desafios e as oportunidades de transformar ciência em política pública, e conhecimento em impacto real.
O que acontece quando um bioma deixa de ser visto apenas como cenário e passa a ser reconhecido como infraestrutura viva? A resposta tem ganhado forma dentro da Sudene. A autarquia, que há mais de seis décadas atua no desenvolvimento do Nordeste, vem incorporando uma nova camada à sua missão histórica: proteger os ativos ambientais da região como estratégia de desenvolvimento econômico, social e climático
Esse olhar integrado — que une conservação, inovação e desenvolvimento — não é retórico. Está embutido em projetos, parcerias e nas diretrizes que norteiam a atuação da Sudene. A autarquia vem incorporando, de forma crescente, a variável ambiental às políticas públicas de desenvolvimento regional, entendendo que não há futuro econômico viável sem o equilíbrio dos ecossistemas. Seja no apoio a pesquisas sobre a bioeconomia do semiárido, no fortalecimento de cadeias produtivas sustentáveis ou na promoção de tecnologias sociais de convivência com o clima, a lógica que se impõe é clara: desenvolvimento que não dialoga com o território está fadado a fracassar.
Nos últimos anos, esse compromisso se traduz em uma série de iniciativas que alinham sustentabilidade, inovação e inclusão produtiva. As estratégias vão desde incentivos a negócios verdes até a indução de modelos de desenvolvimento regenerativo, que enxergam na Caatinga não um obstáculo, mas uma potência econômica, social e ambiental. A Sudene entende que proteger esse bioma não é apenas uma obrigação ambiental — é uma estratégia inteligente para garantir segurança hídrica, geração de empregos, estabilidade climática e fortalecimento das economias locais.
Proteger a Caatinga, portanto, não é apenas conservar um bioma — é uma decisão de futuro. É transformar o Semiárido em laboratório vivo de soluções para a crise climática, conectando saberes tradicionais, ciência de ponta e políticas públicas. É isso que está em jogo. E é aqui que a história continua.
A Caatinga pulsa. Cada tronco retorcido, cada folha miúda, cada raiz subterrânea carrega mais do que vida. Carrega uma função vital, silenciosa e global: capturar e guardar carbono da atmosfera.
Quando a vegetação some — cortada, queimada, substituída —, o solo da Caatinga se rompe por dentro. O carbono que estava guardado, silencioso, volta para a atmosfera. Não é força de expressão — é número. Uma caatinga desmatada pode levar mais de 60 anos para voltar a armazenar o carbono que sabia guardar antes. Mesmo um corte aqui, outro ali, pode comprometer metade dessa capacidade.
A explicação está na dinâmica do próprio solo. Diferente das florestas tropicais úmidas, os solos do semiárido brasileiro possuem uma reação muito mais lenta à regeneração. Como aponta um estudo publicado na revista internacional Forest Ecology and Management, referência mundial na área e classificada como Qualis A1 pela Capes, “a recuperação dos estoques de carbono nos solos da Caatinga desmatada exige, no mínimo, 60 anos” — ou seja, a recuperação dos estoques de carbono no solo da Caatinga após o desmatamento exige, no mínimo, seis décadas.
Assinado pelos pesquisadores Renisson Neponuceno de Araújo Filho e Maria Betânia Galvão dos Santos Freire, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), Flávio Adriano Marques, da Embrapa, e os norte-americanos Bradford Paul Wilcox e Jason Brossard West, da Texas A&M University, o artigo traz um alerta robusto sobre as consequências do manejo predatório no semiárido brasileiro.
Os cientistas percorreram sete áreas da Caatinga, cada uma representando um estágio diferente desde o último corte: 0,5, 6, 9, 12, 25, 50 anos e uma área preservada há pelo menos 80 anos. De cada uma, foram coletadas amostras em três profundidades do solo (0–5 cm, 5–10 cm e 10–20 cm), analisando desde os estoques de carbono até a atividade da biomassa microbiana, além de substâncias húmicas e carbono lábil.
Os resultados não deixam margem para dúvidas. “A atividade microbiana e o armazenamento de carbono são modificados quando há corte raso na Caatinga”, descrevem os autores. Isso significa que o simples ato de derrubar a vegetação — mesmo que parcialmente, para lenha, roçados ou pastagem — quebra um ciclo vital. A microbiota do solo perde eficiência. A capacidade de sequestrar carbono desaba. O dano é silencioso, mas profundo.
Os números são quase uma sentença ecológica. Vinte anos após o corte, o solo recupera apenas 32% do carbono que possuía originalmente. Mesmo alcançar metade desse estoque demanda, no mínimo, 33 anos sem nenhuma intervenção. E para restabelecer totalmente os níveis de carbono, o prazo é de 65 anos. O próprio artigo adverte que “o sequestro de carbono nas florestas da Caatinga exige períodos muito mais longos do que nas florestas tropicais úmidas” — ou seja, o semiárido não responde ao desmatamento da mesma forma que as florestas úmidas. Seu tempo ecológico é outro. Mais lento. Mais frágil.
Essa informação não é só científica. É política, econômica e social. Determina o futuro da Caatinga, da agricultura que dela depende, da regulação climática e da segurança hídrica no Nordeste. E abre um convite urgente à sociedade: Como garantir que este bioma, que só existe aqui, não se torne uma conta de carbono negativa para o planeta?
E o impacto não é só climático. Quando desaparecem os xique-xiques, os mandacarus, os juazeiros e toda a arquitetura viva que compõe esse bioma, desaparecem também soluções que sustentam a economia local: da agricultura que depende da fertilidade dos solos até cadeias da bioeconomia que valorizam frutos nativos, madeiras, fibras e saberes ancestrais.
Mas a Caatinga respira, até na seca
Diferente das florestas tropicais úmidas, aqui a relação com o carbono tem outro ritmo. Durante a estação chuvosa, a vegetação se expande e o sequestro de carbono dispara. Na seca, o ciclo desacelera, mas não para. Mesmo quando as folhas caem e o verde dá espaço ao cinza, a Caatinga segue funcionando como sumidouro — uma espécie de respirador natural do semiárido.
Só que essa capacidade tem limites. E eles estão cada vez mais pressionados pelo avanço do desmatamento, pela expansão de pastagens, pela extração de lenha e pelas mudanças climáticas, que tornam o bioma ainda mais vulnerável. Os efeitos da devastação da Caatinga já são perceptíveis, como no compartivo abaixo.
A previsão é dura: se nada mudar, o estoque de carbono da Caatinga — tanto no solo quanto na vegetação — deverá diminuir ao longo deste século, acelerando a perda de biodiversidade, a desertificação e a insegurança hídrica em uma região que já vive no fio da resiliência.
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