POVOS INDÍGENAS E O ENSINO DE GEOGRAFIA
A LEI 11.645 COMO CAMINHO PARA OUTRAS NARRATIVAS.
Evelin Tupinambá
Este texto é uma adaptação do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), nasce da minha vivência como mulher indígena e professora de Geografia.
Escrevo a partir de uma trajetória marcada pela resistência dos povos indígenas no Brasil, que enfrentam, há mais de cinco séculos, violências, genocídios e ataques contínuos aos seus direitos, culturas e territorialidades.
Urgência
Ao olhar para essa história, reconheço que chegar ao século XXI ainda carregando tantas formas de violência, reforça a urgência de um ensino crítico, capaz de romper estereótipos e ampliar a compreensão sobre quem somos.
Ensino crítico
A relevância de evidenciar a presença indígena no Brasil — hoje mais de 1,6 milhão de pessoas, distribuídas em centenas de etnias — não é apenas demográfica, mas política.
O movimento indígena tem usado esses dados como estratégia para reivindicar direitos e políticas públicas, como a Lei 11.645/2008, que determina o ensino da história e das culturas indígenas e afro-brasileira em toda a educação básica.
Direitos e Racismo
Essa lei, conquistada por lutas indígenas e negras, exige que a escola enfrente o racismo estrutural presente nos currículos, nas práticas docentes e nos materiais didáticos.
Ao iniciar minha prática docente, vivi tensões profundas: minhas primeiras aulas foram atravessadas por perguntas dos estudantes sobre minha identidade, muitas carregadas de estereótipos e preconceitos.
Foi essa experiência que me motivou a refletir profundamente sobre como ensinar a temática indígena na geografia, para além do dia 19 de abril e distante de abordagens folclorizadas ou eurocentradas.
Minha pesquisa-ação, desenvolvida com uma turma do 3º ano do ensino médio em uma escola pública de Goiânia, buscou construir práticas pedagógicas que envolvessem os estudantes, estimulassem a criticidade e valorizassem a diversidade.
A geografia escolar tem papel central na construção de uma pedagogia antirracista.
Isso implica repensar o currículo, compreender a insuficiência dos documentos oficiais — como a BNCC — e assumir que o ensino de geografia deve formar sujeitos capazes de se posicionar no mundo, como propõe Santos (2010).
Currículo
A Geografia pode superar imaginários distorcidos sobre os povos indígenas, ajudando a desfazer preconceitos historicamente construídos, como afirma Luciano Baniwa.
Para isso, o professor precisa articular conhecimento científico e sensibilidade pedagógica, reconhecendo o repertório cultural e social dos estudantes, como nos ensina Paulo Freire.
Legenda: Principais Órgãos da ONU.
Fonte: Registrado pela autora.
Legenda: Qual a relação da ONU com os povos Indígenas?
Fonte: Registrado pela autora.
Figura 3: Etapa de Sistematização.
Legenda: Mudanças Climáticas e os Povos Indígenas: Rio Madeira.
Fonte: Registrado pela autora.
Figura 4: Etapa de Síntese.
Fonte: Registrado pela autora.
Reflexões
A partir dessa pesquisa-ação, tornou-se evidente que, ao longo do processo da aula e da proposta metodológica, foi possível observar a autonomia e o protagonismo assumidos pelos estudantes nas aulas de geografia.
Autonomia
O conteúdo trabalhado proporcionou aos alunos um espaço efetivo de reflexão e debate sobre a temática dos povos indígenas.
A abordagem foi estruturada de maneira a estimular o protagonismo discente, incentivando-os a se apropriarem do conteúdo, elaborarem argumentos fundamentados e participarem ativamente das discussões.
Houve troca de opiniões, construção coletiva de raciocínios e busca conjunta por soluções para os problemas apresentados em aula.
A dinâmica em grupo contribuiu para potencializar as aprendizagens, especialmente por romper com o formato tradicional de aula e introduzir metodologias que favorecem a organização dos alunos em equipes.
Coletivo
A partir dessa divisão, os estudantes puderam exercitar o debate, a discussão e a reflexão crítica sobre os conteúdos propostos.
Consequentemente, ao longo do processo, os estudantes desenvolveram maior autonomia intelectual.
Mesmo aqueles mais tímidos, assim como os já mais desenvoltos, conseguiram formular pensamentos críticos e ativos sobre questões sociais relacionadas ao conteúdo estudado.
A dinâmica proporcionou um momento de organização, diálogo e troca de ideias, permitindo que os grupos elaborassem propostas de ação que, apesar de construídas em sala de aula, possam futuramente ser aplicadas fora da escola, contribuindo, ainda que minimamente, para transformações sociais.
Conclusão
A pesquisa evidenciou que a temática indígena pode — e deve — ser trabalhada na escola para além do Dia dos Povos Indígenas (19 de abril), especialmente nas aulas de geografia, onde conceitos e categorias geográficas podem ser articulados às realidades territoriais, culturais e políticas dos povos indígenas no Brasil.
Povos originários
Essa abordagem contribui para superar visões baseadas no senso comum.
Compreender o espaço requer analisar quem o compõe e quem o estuda.
Por isso, o planejamento das aulas deve considerar que crianças e adolescentes estão em processo de formação, construindo as bases de sua leitura de mundo.
A escola, porém, muitas vezes não reconhece esses sujeitos como agentes sociais capazes de produzir cultura e participar da construção da sociedade.
Quando essa capacidade é valorizada, a interpretação das relações raciais torna-se mais profunda e transformadora (SOUZA; MACHADO, 2022).
Trabalhar problemas do cotidiano dos estudantes, especialmente no ensino médio, amplia o sentido da aprendizagem, pois permite identificação e reconhecimento.
Território
Tal perspectiva se conecta à formação territorial brasileira e às desigualdades que atravessam povos indígenas, negros, quilombolas, ciganos, entre outros, em áreas como moradia, saúde, trabalho, educação, violência e classe social.
A experiência realizada demonstra que metodologias ativas e dinâmicas em grupo podem ser aplicadas em diversas séries e conteúdos da geografia, tornando o ensino mais significativo.
Essas práticas contribuem para que os alunos se apropriem do pensamento geográfico e o apliquem em sua vida cotidiana, dentro e fora da escola.
As aulas podem, ainda, constituir um espaço de conscientização sobre preconceito, racismo e questões socioambientais, formando jovens críticos e atuantes em suas comunidades.
Nesse processo, o papel do professor é central: cabe-lhe buscar materiais didáticos e referenciais teóricos que ampliem a abordagem para além do conteúdo tradicional, promovendo práticas antirracistas.
Antirracista
Assim, a Geografia Escolar cumpre um papel fundamental ao relacionar a temática indígena ao ensino-aprendizagem, rompendo estereótipos e desconstruindo visões racistas historicamente reproduzidas.
Isso envolve superar abordagens pontuais ligadas à antiga noção de “Dia do Índio”, substituída pela Lei 14.402/2022, que institui o Dia dos Povos Indígenas, reconhecendo a pluralidade de povos no país.
Por fim, a Lei 11.645/2008 reforça a necessidade de repensar a formação de estudantes e professores no que diz respeito às relações étnico-raciais, valorizando a contribuição dos povos indígenas na formação da sociedade brasileira.
Nesse sentido, o ensino de Geografia se mostra um campo potente para trabalhar essa temática de forma crítica, continuada e socialmente transformadora.
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