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Saberes tradicionais e consciência sobre mudanças climáticas: conheça os trabalhos vencedores do Prêmio Mercosul
Conheça os quatro trabalhos vencedores do prêmio em 2025. - Foto: Divulgação
Sob o tema “Segurança Alimentar no Contexto das Mudanças Climáticas”, o Prêmio Mercosul 2025 contemplou trabalhos que, em diferentes áreas do conhecimento, trouxeram contribuições para amenizar os efeitos das alterações climáticas para uma nutrição segura e sustentável, oferecendo recomendações práticas para dirimir este que, hoje, é um dos maiores desafios da humanidade.
Alguns dos estudos agraciados se originaram de culturas de comunidades tradicionais, como a proposta de um filtro que contribui para a preservação do solo em área rural e semiárida e o desenvolvimento de equipamento que garante processamento seguro de alimentos. Dos trabalhos premiados também fazem parte uma sugestão de estratégias de nutrição que permitem otimizar o uso de alimentos disponíveis, reduzindo desperdícios e direcionando intervenções mais eficazes para diferentes perfis populacionais; e uma pesquisa com evidências empíricas apontando que a modificação no clima poderá elevar o custo dos alimentos, fornecendo direções para políticas públicas na área.
Contemplada com o primeiro lugar na categoria Iniciação Científica, Beatriz Vitória da Silva este ano também conquistou o segundo lugar na categoria Ensino Médio do Prêmio Jovem Cientista, edição 2025. Ela, que é bolsista de Apoio à Difusão do Conhecimento do CNPq, diz que vencer os dois prêmios é uma conquista imensa, não só pessoal, mas coletiva, pois comprova que projetos acessíveis e sustentáveis têm força para transformar realidades e que as vozes de comunidades tradicionais também fazem parte da ciência em construção no Brasil.“Eles [os prêmios] trazem um significado especial, porque reforçam que a ciência também pode nascer das nossas raízes, da nossa cultura e da nossa vivência quilombola, mostrando que conhecimento não depende de onde você vem, mas de como você enxerga o mundo ao seu redor. Eu venho de uma comunidade quilombola do interior, e mostrar que uma estudante desse lugar pode desenvolver uma pesquisa relevante, reconhecida nacionalmente, é algo muito marcante. O Prêmio Jovem Cientista e o Prêmio Mercosul dão visibilidade ao meu trabalho e mostram que problemas que surgem dentro de comunidades tradicionais também merecem atenção científica”, afirma a estudante.
Para Silva, os prêmios dão credibilidade a seu projeto, ampliam oportunidades e fortalecem seu empenho por um futuro mais sustentável para a própria comunidade. Tanto no Prêmio Mercosul, quanto no Prêmio Jovem Cientista, Silva apresentou o estudo “FiltroPinha: dos Resíduos aos Recursos”, que surgiu da necessidade de buscar uma solução sustentável para um problema real e historicamente negligenciado na comunidade quilombola do Caroá, na Bahia, onde vive: a urgência em lidar com os impactos causados pela manipueira, resíduo líquido tóxico gerado nas casas de farinha e que é descartado de forma direta no solo. A manipueira pode ser até 25 vezes mais poluente que um esgoto comum.
“A segurança alimentar depende de solos preservados, água disponível e práticas sustentáveis de produção. As mudanças climáticas já afetam diretamente esses três fatores, principalmente nas regiões rurais quilombolas e semiáridas, como a minha. A manipueira contamina o solo e pode inviabilizar áreas de plantio. Além disso, o enorme gasto de água nas casas de farinha é insustentável em regiões com seca prolongada”, ressalta. Ela explica que as casas de farinha consomem de 15 mil a 20 mil litros de água durante a produção da farinha de mandioca, volume preocupante para uma região onde a água é escassa. O montante de litros empregados ajuda a gerar apenas de 250 a 350 quilos de farinha. O FiltroPinha usa cascas de pinha, resíduo orgânico em geral descartado, para produzir a farinha das cascas e o carvão ativado obtido a partir delas. Na pesquisa, esses materiais foram aplicados em um filtro físico impresso em 3D, desenvolvido para reduzir a carga tóxica da manipueira e possibilitar o reaproveitamento da água nas etapas iniciais do processo produtivo. Testes realizados confirmaram a eficácia do filtro.
O projeto beneficiou de forma direta a comunidade de que Silva faz parte. Ela afirma que, ao desenvolver o estudo, despertou para a responsabilidade que a ciência tem quando nasce dentro da própria comunidade. “Eu vi que pesquisar não é só produzir dados; é transformar percepções, gerar consciência e mostrar que problemas silenciosos também merecem atenção. E isso motivou minha equipe a buscar uma solução simples, acessível e que fizesse sentido para a nossa realidade”, lembra. “O FiltroPinha demonstra que soluções tecnológicas podem nascer da vivência local, unindo ciência, cultura quilombola e responsabilidade ambiental, e oferecendo uma alternativa viável, de baixo custo e de grande impacto social para comunidades que dependem da produção de farinha e enfrentam desafios relacionados ao uso da água e à preservação do meio ambiente”, completa Silva.
A estudante diz que o interesse pelo tema surgiu porque o assunto faz parte da sua vida e da realidade de sua comunidade. “Para mim — assim como para muitas pessoas da comunidade que trabalham todos os dias na casa de farinha — aquilo era apenas um resíduo normal do processo. Ninguém imaginava que a manipueira podia ser até 25 vezes mais poluente que um esgoto comum e causar tantos danos ao solo, à água e à saúde. O FiltroPinha não é só um projeto. Ele representou um momento de reflexão para todos nós: às vezes, aquilo que está destruindo o nosso território é justamente o que nunca nos ensinaram a observar”, reflete.
Para Mateus Gama Ribeiro, sua escolha para o primeiro lugar na categoria Estudante Universitário é um marco científico, social e pessoal. Ele foi contemplado com a pesquisa "Saberes Tradicionais e Inovação Sustentável: Secador Solar Infravermelho para Fortalecimento Cultural e Competitividade de Comunidades Tradicionais no Mercosul" e lembra que a premiação fortalece a credibilidade do projeto, ao reconhecer de forma internacional uma tecnologia que nasceu da escuta dos pescadores e ao demonstrar que a ciência produzida no Maranhão gera impactos concretos e valoriza saberes tradicionais. “Esse reconhecimento também abre portas para investimentos e parcerias, fundamentais para levar a tecnologia às comunidades que mais precisam. A pesquisa já deu origem à startup TABA, contemplada no edital FAPEMA/SECTI, comprovando o potencial de transformar um protótipo acadêmico em solução de mercado com impacto social”, observa.

- Mateus Gama Ribeiro, contemplado com o primeiro lugar na categoria Estudante Universitário. Foto: CNPq
Ribeiro trabalhou em projeto que tinha como objetivo desenvolver e automatizar um secador híbrido solar–infravermelho, destinado às comunidades pesqueiras do Maranhão. No local, o acesso à energia elétrica é restrito e a secagem de camarão ainda ocorre sobre lonas no chão, favorecendo a contaminação, perdas e ausência de padronização. A pesquisa integrou sensores IoT e inteligência artificial para monitorar e prever o ponto ideal de secagem, oferecendo maior controle operacional, qualidade sanitária e segurança alimentar. Os sensores IoT são peças-chave na internet das coisas, conectando objetos e fazendo a comunicação de dados fluir entre dispositivos.
“A tecnologia híbrida opera mesmo em condições climáticas adversas, garantindo continuidade do processo e padronização do produto. Por ser um sistema de baixo custo, replicável e adaptável à secagem de babaçu, cacau e frutas, o equipamento poderá fortalecer as cadeias produtivas sustentáveis, reduzir as perdas e ampliar a competitividade dos produtos tradicionais”, explica Ribeiro. Ele se interessou pelo tema ao conviver com a comunidade de pescadores, quando ficou evidente que havia necessidade de melhorar o processamento do camarão após a pesca. Diante das perdas frequentes, bem como da contaminação do material, os pescadores solicitaram a construção de um secador que garantisse maior segurança e eficiência ao processo.
“O projeto nasce diretamente das necessidades expressas pelos pescadores, unindo inovação acessível, valorização cultural e desenvolvimento sustentável, contribuindo para a qualidade de vida das famílias e para a eficiência da cadeia produtiva do camarão. Essa demanda concreta reforçou meu compromisso em fortalecer cadeias produtivas da bioeconomia e promover soluções que respondam às necessidades reais de quem depende do pescado para subsistência”, afirma.
Ribeiro acredita que sua pesquisa contribuiu para a segurança alimentar ao oferecer um equipamento capaz de garantir processamento seguro, higiênico e contínuo de alimentos, mesmo em condições climáticas adversas. “Além de reduzir perdas e melhorar a qualidade do alimento, a tecnologia poderá fortalecer a economia local e contribuir para a resiliência das comunidades diante das mudanças ambientais”, observa. Além da gratidão à equipe do Laboratório Baites e a sua orientadora, a professora Priscila Bernardes Silva, Ribeiro agradeceu também ao curso de Engenharia de Pesca do Campus Pinheiro, da UFMA, e à mesma universidade, que também o apoiaram em cada etapa do projeto. “Essa conquista mostra que todo o esforço valeu a pena e que unir ciência, tradição e inovação é o caminho para transformar realidades”, afirma.
Luccas Attílio, primeiro lugar na categoria jovem pesquisador, por sua vez, salienta que o Prêmio Mercosul mostra que os produtos gerados pelas universidades e pela pesquisa devem contribuir com a sociedade. “Essa premiação mostrou que eu estou na direção correta a respeito de meus esforços, estudo, disciplina, consistência e pesquisa. O prêmio mostra que minha pesquisa está antenada com os desafios atuais e com as necessidades da sociedade. A vida acadêmica é permeada por várias dificuldades e obstáculos (e rejeições!) – e vencer um prêmio dessa grandeza ajuda a continuar essa caminhada”, diz ele, para quem as mudanças climáticas podem exacerbar desafios atuais, em especial a falta de segurança alimentar em determinados estratos da sociedade.”Minha agenda de pesquisa é sobre os efeitos da mudança climática e da transição energética sobre a sociedade e como políticas públicas podem mitigar efeitos colaterais produzidos pela mudança climática”, explica Attílio. Ele diz que incorporou o tema da mudança climática no estudo de agregados macroeconômicos porque percebeu que a economia é um dos elementos que gera e promove a mudança climática. Attílio foi agraciado com o trabalho Impacto da Mudança Climática sobre a Segurança Alimentar do Mercosul, que aponta a vulnerabilidade dos países do Mercosul frente à mudança do clima.
“Os preços de alimentos podem subir com o progresso da mudança climática, colocando pressão sobre populações vulneráveis. Em particular, o objetivo de melhorar a segurança alimentar pode se tornar ainda mais desafiador no futuro”, afirma ele, que ressalta a importância de se fornecer evidência empírica dos custos que a mudança climática pode impor à população. As provas desse impacto são construídas com modelos avançados de matemática e estatística e, dados os resultados, as aplicações práticas se referem à construção de políticas públicas para minimizar o impacto negativo sobre a população.
“As políticas podem ser resumidas em três blocos. O primeiro é a transferência de renda, alimentos e recursos para indivíduos diretamente expostos ao aumento do custo de alimentos. A segunda é a criação do Fundo de Emergência Climática (FEC), que forneceria recursos para financiar as políticas do bloco um ao mesmo tempo mantendo a posição fiscal dos países. O terceiro bloco é aumentar a integração comercial entre os países do bloco, o que elevaria a produção de alimentos e reduziria os seus preços”, afirma Attílio. Para ele, esses três blocos ajudariam os países do Mercosul a buscar a melhora na segurança alimentar.
A pesquisa da primeira colocada na categoria Pesquisador Sênior, Maria Aderuza Horst, professora da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal de Goiás (UFG) e bolsista de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação no Exterior Sênior do CNPq, da mesma forma, também tem aplicação direta na formulação de políticas públicas, além de se refletir no desenho de programa de promoção da saúde e na construção de sistemas de aconselhamento nutricional e alimentar mais eficientes, equitativos e sustentáveis. O trabalho vencedor propõe integrar a nutrição às ciências ômicas, como a genômica, que é a análise de variações no DNA, e a metabolômica, estudo de pequenas moléculas produzidas pelo organismo, em associação à ciência de dados e ferramentas de inteligência artificial. O objetivo é desenvolver estratégias de intervenção alimentar mais precisas e eficazes para a redução do risco de doenças cardiovasculares, com potencial de aplicação no Sistema Único de Saúde (SUS) e com a promoção de acesso socialmente justo a análises avançadas.
“Minha linha de pesquisa atual integra genômica nutricional e ciência de dados para compreender por que indivíduos e subgrupos, em especial brasileiros, por terem constituição genética única, respondem de forma distinta aos mesmos padrões alimentares, em função de diferenças biológicas, metabólicas e ambientais”, explica Horst. A partir desse entendimento, o projeto propõe intervenções nutricionais direcionadas por dados únicos, com foco na promoção da saúde e na redução de doenças cardiometabólicas, em especial em grupos mais vulneráveis.
O interesse pelo assunto pontuou a trajetória acadêmica da pesquisadora, que tem mais de duas décadas dedicadas ao estudo da interação entre nutrição, genética e metabolismo. Horst se interessou pelo tema durante seu doutorado e, desde então, se dedica ao estudo da interação gene-dieta e à formação em biologia molecular aplicada à nutrição. Foi uma das organizadoras da obra Genômica Nutricional: dos fundamentos à nutrição molecular, de 2017, primeiro livro da área – até então não havia material didático disponível sobre o assunto – e é líder do grupo de pesquisa Genômica Nutricional e Alterações Metabólicas Relacionadas às Doenças Crônicas Não-Transmissíveis, da UFG.
“Partimos da observação científica e clínica de que não existe uma única estratégia alimentar eficaz para todos. Ao longo desse percurso, tornou-se evidente que abordagens nutricionais generalistas frequentemente falham em atender às necessidades reais dos indivíduos, contribuindo para o aumento das desigualdades em saúde. Essa constatação motivou a busca por estratégias nutricionais mais precisas, capazes de respeitar a diversidade biológica e social das populações”, explica a pesquisadora.
Para Horst, seu projeto representa a maturidade dessa trajetória, consolidando conhecimento acumulado ao longo de décadas em uma proposta com impacto científico e social, além de contribuir para a formação de recursos humanos qualificados por meio da orientação de estudantes de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. “A segurança alimentar, no contexto das mudanças climáticas, exige uma mudança de paradigma: é necessário produzir, distribuir e utilizar alimentos de forma mais inteligente e sustentável. As alterações climáticas impactam diretamente a disponibilidade, o custo e a qualidade nutricional dos alimentos, aprofundando desigualdades sociais e de saúde”, observa.
Horst acredita que vencer o Prêmio Mercosul na categoria Pesquisador Sênior é um reconhecimento de sua dedicação à pesquisa, à formação de pessoas e à produção de conhecimento científico realizado por mais de duas décadas. “Esse prêmio valida não apenas o meu trabalho, mas também a ciência desenvolvida no Brasil e a relevância das Universidades Federais na geração de conhecimento de impacto social. O reconhecimento fortalece meu compromisso com a produção de ciência de excelência em nutrição e promoção da saúde, além de inspirar novas gerações de pesquisadores a acreditarem na ciência como instrumento de transformação”, salienta. A pesquisadora conclui ao observar que a premiação também reforça a importância da cooperação científica entre os países do Mercosul e valoriza a produção científica brasileira no cenário internacional.
Ainda nesta edição do Prêmio Mercosul, foram agraciados com menção honrosa Juliane Dos Anjos Silva, na categoria Iniciação Científica; Marcos Vinicius Gomes da Cruz, na categoria Estudante Universitário; Anna Paula Azevedo de Carvalho, na categoria Jovem Pesquisador; e Patricia Elena Giraldo Calderón, na categoria Pesquisador Sênior.


