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Entrevista
Mercedes Bustamante: "Comunicação clara é essencial para enfrentar estratégias de desinformação associadas à mudança do clima"
Ex-presidente da CAPES, Bustamante é uma das mais renomadas cientistas do país e pesquisadora da vegetação nativa da região central do Brasil. - Foto: Secom/UnB
A bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq, professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) e ex-presidente da Capes Mercedes Bustamante é a vencedora do Prêmio Fundação Conrado Wessel (FCW) na categoria Ciências – Mudanças Climáticas, edição 2025.
Nascida no Chile e naturalizada brasileira, Bustamante é uma das mais renomadas cientistas do país e pesquisadora da vegetação nativa da região central do Brasil. Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), fez mestrado em Ciências Agrárias – Fisiologia Vegetal na Universidade Federal de Viçosa (UFV) e doutorado em Geobotânica na Universitat Trier, na Alemanha. Seu trabalho de pesquisa tem como ênfase a Ecologia de Ecossistemas, com atuação em especial em temas envolvendo cerrado, biogeoquímica, mudanças no uso da terra e mudanças ambientais globais.
Segundo o diretor-presidente da FCW, Carlos Vogt, o trabalho da pesquisadora, que enfatiza ecologia de ecossistemas e mudanças ambientais globais, foi fundamental para sua escolha como premiada: “Foi uma decisão que se deve à importância da produção científica, à qualidade do trabalho e à relevância de sua atuação em uma área extremamente sensível e oportuna diante dos desafios que o mundo vem enfrentando e, em particular, que o Brasil atravessa neste momento, com a questão climática cada vez mais urgente e desafiadora para o futuro da nossa sociedade”. O Prêmio FCW agraciou também o escritor Marcelo Rubens Paiva, na categoria Cultura – Literatura.
Para Bustamante, ser contemplada por suas pesquisas acerca de mudanças climáticas é uma honra. “Recebo este reconhecimento como uma validação significativa da importância fundamental da pesquisa conduzida pela comunidade científica brasileira para enfrentar o desafio mais urgente da humanidade. Agradeço à Fundação Conrado Wessel pelo espaço para amplificar a mensagem de que as mudanças climáticas exigem nossa atenção urgente e ação coletiva. Sou grata ainda pelo apoio da minha instituição, a UnB, e a todos os colegas e alunos que me proporcionaram o privilégio de aprendizado contínuo e de um convívio enriquecedor”, afirma.
Bustamante foi co-coordenadora do capítulo "Agriculture, Forestry and Other Land Uses" do 5º Relatório do Grupo de Trabalho Mitigação (2011-2014) do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), braço da Organização das Nações Unidas (ONU) criado em 1988 para fornecer avaliações abrangentes do estado do conhecimento científico, técnico e socioeconômico sobre mudanças climáticas, suas causas, impactos potenciais e estratégias de resposta. Foi também autora de capítulo relativo a agricultura, florestas e outros usos da terra do 6º relatório do Grupo de Trabalho Mitigação do IPCC (2019 e 2022) e coordenou o capítulo "Ecosistemas terrestres y acuaticos continentales" de um relatório do projeto RIOCCADAPT, financiado pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID), voltado a identificar, revisar e avaliar as ações de adaptação às mudanças climáticas realizadas nos países da Rede Iberoamericana de Escritórios de Mudanças Climáticas (RIOCC).
Considerando as estratégias de desinformação associadas à mudança do clima, é importante fazer uma comunicação clara com a sociedade sobre o que hoje se conhece sobre esse desafio para que as decisões sobre as ações climáticas tenham evidências robustas como base.
Além de ser membro de várias entidades ligadas à ciência e ao meio ambiente, Bustamante já foi coordenadora da Rede de Cooperação em Ciência e Tecnologia para a Conservação e o Uso Sustentável do Cerrado (ComCerrado) e é uma das pesquisadoras do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Mudanças Climáticas, apoiado pelo CNPq. O INCT se encontra em sua Fase 2 e busca implementar e desenvolver uma abrangente rede de pesquisas interdisciplinares sobre mudanças ambientais globais e sustentabilidade.
Nesta entrevista ao CNPq, a pesquisadora reflete sobre a ameaça à estabilidade ambiental decorrente das mudanças climáticas, os riscos para as cidades brasileiras, defende o avanço da implementação de políticas públicas visando o uso sustentável do meio ambiente e a restauração de áreas degradadas e ainda alerta para a correlação existente entre o desmatamento e o aumento da frequência de queimadas.
CNPq - A senhora foi contemplada com o Prêmio na categoria Ciência – Mudanças Climáticas e já participou de vários grupos de trabalho relativos ao assunto, inclusive é integrante do INCT Mudanças Climáticas Fase 2. Qual é sua avaliação sobre as mudanças no clima que estão ocorrendo e quais são os aspectos mais preocupantes?
Bustamante - As mudanças climáticas representam uma das maiores ameaças à estabilidade ambiental, social e econômica do planeta. A crise climática que enfrentamos se acelera e é multifacetada, com impactos já visíveis e crescentes. Entre os aspectos mais preocupantes, observam-se a superação de limites críticos de temperatura (2024 foi o ano mais quente da história), eventos climáticos extremos mais frequentes e intensos, pressão sobre recursos naturais e biodiversidade, impactos socioeconômicos sobretudo para grupos mais vulneráveis, o que amplia as desigualdades sociais. Por exemplo, comunidades que, por falta de políticas habitacionais inclusivas, vivem em áreas mais expostas a riscos com deslizamentos provocados por chuvas intensas ou comunidades em áreas sem segurança hídrica que são mais expostas aos riscos de secas severas.
CNPq - O INCT Mudanças Climáticas Fase 2 representa uma continuidade do INCT Mudanças Climáticas anterior que, entre outros, mostrou que os extremos de chuva estão cada vez mais frequentes e intensos desde 1950. Isso pode gerar vulnerabilidade em áreas de alta densidade populacional na região Sudeste do Brasil, o que pode aumentar no futuro, caso não sejam tomadas medidas de redução de riscos aos desastres naturais. Esses riscos continuam ou nada foi feito?
Bustamante - As mudanças climáticas trazem grandes riscos para as cidades brasileiras. Em sua maioria, as cidades brasileiras se caracterizam pela ausência de planejamento urbano adequado e com uma ocupação que não é mais condizente com as condições associadas a um clima em mudança. É preciso repensar os modelos vigentes e trabalhar nas estratégias de adaptação enquanto investimos em ações para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. O Brasil criou, em 2011, o Centro de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), ligado ao MCTI, que faz o monitoramento e o alerta de eventos meteorológicos que podem afetar áreas vulneráveis e atua em conjunto com a Defesa Civil. O trabalho de Cemaden exige ciência robusta, pesquisadores especializados e uma rede monitoramento atualizada e operante.
CNPq - Como está a situação em outras partes do Brasil?
Bustamante - Os impactos das mudanças climáticas já são sentidos em todas as regiões brasileiras. As evidências apontam para alterações nas regiões Centro-Oeste (onde temos boa parte do Cerrado e o Pantanal com mudanças no ciclo hidrológico), Norte (a Amazônia tem passado por secas e inundações extremas) e Nordeste (partes da Caatinga já estão em processo de desertificação). Adicionalmente, há estudos importantes monitorando o impacto sobre nossos ecossistemas costeiros e marinhos.
CNPq - Quais são os avanços do atual INCT?
Bustamante - O INCT Mudanças Climáticas permitiu constituir uma rede multidisciplinar e distribuída por várias instituições e estados brasileiros que avaliou ações de mitigação e adaptação setoriais (Saúde, Agricultura, Energia, Ecossistemas, Cidades, entre outros). O INCT MC também atuou na inovação de sensores ambientais, modelagem e prevenção a desastres naturais. Há ainda um componente essencial para o tema que é a comunicação. Considerando as estratégias de desinformação associadas à mudança do clima, é importante fazer uma comunicação clara com a sociedade sobre o que hoje se conhece sobre esse desafio para que as decisões sobre as ações climáticas tenham evidências robustas como base.
CNPq - Um dos focos do seu trabalho é a pesquisa sobre a região do Cerrado. Qual é a importância do Cerrado? A senhora pode dar exemplos de interações que acontecem nesse ecossistema?
Bustamante - O Cerrado ocupa aproximadamente 23% do território nacional, com características únicas e contribuições essenciais para o bem-estar da população brasileira que é dependente da biodiversidade, integridade e saúde dos ecossistemas naturais para suprimento de água, regulação climática, polinização, controle de vetores de doenças e pragas. Adicionalmente, conta também com uma grande diversidade social que contribui e depende da conservação dos recursos naturais.
Ao mesmo tempo, o Cerrado é particularmente vulnerável, pois está menos protegido que a Amazônia no âmbito do Código Florestal, tem um percentual menor de áreas protegidas e sofre maior pressão de expansão do agronegócio.
O conhecimento sobre o Cerrado e suas contribuições, assim como as implicações das mudanças ambientais regionais e globais, avançou significativamente nas últimas décadas. No entanto, precisamos avançar na implementação de políticas públicas com base em evidências que garantem o uso sustentável das áreas já convertidas, a restauração de áreas degradadas e a conservação dos remanescentes de vegetação natural e corpos hídricos.
CNPq - Nesta época do ano, de seca - em Brasília, não chove há quase 100 dias - , aparecem muitos focos de incêndio, que destroem partes do Cerrado, provocando, entre outros, a morte ou fuga de animais que habitam a região. Quais as consequências desses focos de incêndio para o Cerrado? Dá para recuperar?
Bustamante - Muitas espécies de plantas de Cerrado têm características que facilitam a resistência ao fogo (por exemplo, casca corticosa, que é um isolante térmico) ou a regeneração após o fogo (por exemplo, capacidade de rebrotar de órgãos subterrâneos). No entanto, é importante destacar que as plantas são adaptadas a um regime de fogo e não ao fogo, ou seja, a capacidade de resposta dependerá do intervalo entre as queimadas, da época da queimada, das condições da queimada e em qual etapa de vida a planta se encontra.
Há uma correlação entre o desmatamento e o aumento da frequência de queimadas, indicando que a ação humana atua nessa interação que favorece a perda e degradação de habitats e, por consequência, gera impactos sobre a biodiversidade.
Lembrando que plantas e animais do Cerrado evoluíram com o fogo, mas as formações vegetais do bioma (campos, savanas e florestas) têm diferentes limiares de tolerância e que o ponto crítico é como estamos alterando o regime de queima.