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Jardineiro da Amazônia: pesquisa confirma papel do peixe-boi como dispersor de sementes no ecossistema da região
Filhote de peixe-boi resgatado no berçário do LMA/Inpa - Foto: Valéria Nakashima/ Ascom Inpa
O peixe-boi amazônico é o “grande jardineiro” das planícies aluviais da Amazônia, atuando como agente dispersor de sementes endozoocóricas dentro do ecossistema da região. É o que aponta um artigo de pesquisadores brasileiros publicado na última edição do Journal for Nature Conservation. O termo endozoocórico se refere à dispersão de sementes por meio da digestão de frutos por animais, que as ingerem em um local e depois as excretam em outro. Para chegar à conclusão, os pesquisadores examinaram amostras de fezes do peixe-boi coletadas em outubro de 2023, no Lago Amaña, localizado na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amaña, região próxima da confluência do Rio Solimões com o Rio Japurá, na Amazônia Central. O lago é conhecido como “lar do peixe-boi”.
A pesquisa confirmou o papel do peixe-boi amazônico como dispersor de plantas aquáticas, uma suposição que já existia, mas não havia ainda sido comprovada. Ao longo de décadas, vários estudos buscaram sementes viáveis após a passagem pelo trato digestivo do animal. Contudo, as sementes encontradas estavam sempre vazias, restando apenas as cascas. “No estudo em discussão, foram encontradas sementes viáveis nas fezes depositadas nas praias, onde também havia sementes germinando e produzindo plântulas vigorosas. Assim, o papel do peixe-boi amazônico como dispersor de plantas aquáticas foi, finalmente, confirmado”, observa Maria Teresa Fernandez Piedade, bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, professora do Programa de Pós-Graduação de Ecologia e Botânica do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e uma das autoras do artigo.
Segundo Piedade, a comprovação da capacidade do peixe-boi amazônico de dispersar sementes de plantas aquáticas permite compreender melhor o papel de grande relevância ecológica desse mamífero. “Com as migrações de longa distância realizadas anualmente pelo animal, ele pode levar sementes de plantas aquáticas para sistemas de águas diferentes, enriquecendo a diversidade de plantas em áreas com maiores limitações de nutrientes, como por exemplo aos igapós de águas pretas e ácidos”, diz.
A professora revela que o peixe-boi amazônico pode percorrer mais de 200 quilômetros em suas migrações, e que suas fezes, além de conterem sementes, são ricas em nutrientes, que fertilizam os corpos d'água e favorecem o estabelecimento de plantas aquáticas, base da alimentação desse mamífero herbívoro. Contribui também para a dispersão de sementes o tempo digestivo do peixe-boi amazônico, que dura de cinco a nove dias.
Os pesquisadores coletaram o material para o estudo ao longo da extensão do lago, que tem aproximadamente 45 quilômetros de comprimento e 3 quilômetros de largura e é cercado por uma faixa larga de florestas de igapós (alagadas, típicas da Amazônia). Eles encontraram sementes em todas as 96 amostras coletadas. Havia sementes intactas em 86,5% desse material. E em 13,5% dele, os pesquisadores encontraram cascas de semente.
O período em que a pesquisa foi realizada coincidiu com um fenômeno atípico na Amazônia, caracterizado por seca extrema e escassez de chuva, uma particularidade que ajudou o trabalho de coleta de amostras.“O evento de seca extrema de 2023 permitiu o acesso às fezes de peixes-bois, que normalmente se dissolvem na água antes de alcançar as margens dos lagos”, explica a doutoranda em Botânica pelo INPA, Michelle Gil Guterres Pazin, primeira autora do artigo.
Segundo Pazin, a redução drástica do volume de água do Lago Amanã fez com que surgissem extensas praias arenosas, e a ação dos ventos, ao movimentar as águas, fez com que as fezes do peixe-boi se acumulassem nessas praias, possibilitando sua coleta e análise. “Além disso, esse evento permitiu a observação de plântulas crescendo nas fezes, indicando que as sementes encontraram ali umidade, nutrientes e um substrato adequado para o desenvolvimento”, completa.
Espécie protegida
O peixe-boi da Amazônia é nativo da bacia amazônica, sendo naquela área o único representante de água doce da família Trichechidae, composta por mamíferos aquáticos. Ele se alimenta de uma vasta quantidade de plantas aquáticas, em especial herbáceas, bem como de folhas e frutas de árvores ribeirinhas. Já foram registradas como parte de sua dieta mais de cinquenta espécies de planta. Devido ao papel desempenhado na fertilização da água e do solo, bem como no estímulo à produtividade das plantas, o peixe-boi da Amazônia é considerado relevante para a manutenção e diversidade genética das plantas aquáticas, apoiando os processos de colonização e sucessão da vegetação nos ecossistemas amazônicos. Sua importância ecológica tem sido destacada pelo papel exercido na manutenção de ecossistemas aquáticos como fertilizante natural, enriquecendo a reciclagem de nutrientes com suas fezes e urina ricas em compostos nitrogenados.
“Ao se alimentar ativamente da vegetação aquática, esse mamífero gigante cria lacunas na cobertura vegetal, facilitando o estabelecimento de novos habitats para outras espécies, como peixes e invertebrados, aumentando assim a biodiversidade geral do ecossistema aquático”, afirmam os autores do artigo, que salientam a importância de se proteger essa espécie ameaçada e seus habitats, em especial diante das mudanças climáticas. O aumento da temperatura e alterações no regime de pulso da inundação da região amazônica afetam a composição, a palatabilidade e a qualidade nutricional nas plantas aquáticas, trazendo implicações significativas para herbívoros como o peixe-boi.
De acordo com Michelle Pazin, a descoberta do peixe-boi amazônico como dispersor de sementes pode subsidiar decisões sobre a criação, gestão e delimitação de áreas protegidas, contribuindo para a conservação dos diferentes ecossistemas amazônicos, protegendo, assim, o animal. O peixe-boi é uma espécie classificada como vulnerável pela União Internacional para a Preservação da Natueza (IUCN), organização civil dedicada à conservação da natureza. Além disso, o animal é protegido por leis, acordos nacionais e internacionais. “No entanto, ameaças como desmatamento, poluição, queimadas e mudanças climáticas podem impactar diretamente as macrófitas aquáticas, sua principal fonte de alimento, o que terá implicações significativas para os peixes-boi”, observa Pazin.
Também assinam o artigo publicado a pesquisadora Aline Lopes, pesquisadora colaboradora do Grupo MAUA no INPA e coordenadora da Região Norte do Grupo de Especialistas em Plantas Aquáticas da Sociedade Botânica do Brasil; Victor Fernando Volpato Pazin, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca (ICMBIO/APABF); Denise Garcia de Santana, professora do Instituto de Ciências Agrárias, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU); e Miriam Marmontel, do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

