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Conflitos envolvendo comunidades tradicionais e áreas protegidas aumentaram nas últimas décadas, aponta estudo
Vista de uma floresta desmatada - Foto: Freepik
Uma pesquisa com participação de quatro bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) revela que os conflitos envolvendo comunidades tradicionais e áreas protegidas vêm aumentando tanto em volume, quanto em diversidade, nas últimas décadas.
Realizada com o propósito de evidenciar o modo como os conflitos socioambientais foram tratados pela ciência ao longo do tempo, a pesquisa baseou-se em uma análise de 263 artigos científicos publicados a nível global nas bases de dados Scopus e Web of Science, entre a década de 1990 e agosto de 2024, e demonstrou também que existem lacunas importantes na produção científica sobre o tema. O estudo completo será publicado na próxima edição do periódico Journal for Nature Conservation, a ser divulgada em agosto deste ano.
As tensões concentram-se em especial em reservas naturais e parques nacionais, espaços onde as regras de conservação com frequência desconsideram os modos de vida e as visões das populações locais. Os pesquisadores afirmam que mecanismos legais de consulta e participação – como o direito ao consentimento livre, prévio e informado – são muitas vezes ignorados ou aplicados de forma ineficaz.
Além disso, os autores fazem recomendações para se alcançar uma gestão mais justa, inclusiva e eficaz das áreas protegidas. “A sustentabilidade das áreas protegidas depende da valorização do conhecimento tradicional e da construção de políticas que respeitem os direitos territoriais e culturais dessas populações”, ressalta professor do Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Natureza e Desenvolvimento da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq José Max Barbosa Oliveira-Junior.
O que a ciência mostra sobre os conflitos
De acordo com os dados levantados, 66,54% dos estudos analisados têm como foco populações não indígenas, ao passo que somente 16,73% tratam exclusivamente de povos indígenas. Esses dados indicam que há sub-representação de pesquisas com uma abordagem mais abrangente sobre as comunidades tradicionais como um todo - desequilíbrio que limita a compreensão das diversas realidades socioculturais e ecológicas vivenciadas por esses povos. A sub-representação também enfraquece o reconhecimento e a valorização dos saberes desses povos no contexto da conservação da biodiversidade.
Ainda segundo o estudo, apesar de desempenharem papel fundamental na conservação da biodiversidade, as comunidades tradicionais continuam sendo sistematicamente excluídas dos processos de criação e gestão das áreas protegidas. Segundo os autores, essa segregação muitas vezes é sutil e silenciosa, mas capaz de gerar conflitos socioambientais persistentes e complexos, com impactos negativos tanto para a conservação da natureza quanto para o bem-estar de povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e, ainda, de agricultores familiares.
Para Mayerly Alexandra Guerrero-Moreno, o contexto atual evidencia a necessidade de romper com modelos de conservação excludentes. “Incluir as comunidades tradicionais no planejamento e na gestão das áreas protegidas é uma questão de justiça — mas também de eficácia. Sem elas, a conservação não se sustenta”, explica.
Pontos de tensão
Os pesquisadores identificaram seis questões que se encontram na origem das tensões que levam a conflitos. A primeira delas diz respeito à obtenção de recursos para subsistência e envolve a limitação ao acesso à caça, à pesca, à coleta de frutos e à agricultura familiar. Segundo a pesquisa, a imposição de regras ou mesmo o impedimento a essas práticas rompem ciclos ancestrais de uso sustentável da natureza e geram insegurança alimentar, além de marginalização social.
A segunda questão envolve a gestão excludente de áreas protegidas. De acordo com o documento, a falta de consulta prévia e o desrespeito ao conhecimento tradicional resultam em políticas que, em muitos casos, não atendem as realidades locais, gerando ressentimentos e fragilizando a eficácia da conservação.
A terceira questão, por sua vez, trata de conflitos com a fauna silvestre. As comunidades têm prejuízos com a destruição de plantações, ataques a animais domésticos e até riscos à vida humana, devido a enfrentamentos com grandes mamíferos, como onças, que perderam o habitat natural e se encontram em ambiente escasso de recursos naturais.
A quarta questão apontada pelos pesquisadores se refere a conflitos territoriais e direitos à terra, visto que muitas áreas protegidas foram criadas sobre territórios ocupados por comunidades tradicionais. A negação de direitos fundiários leva a disputas legais, remoções forçadas, gerando insegurança ou aumento de problemas sociais, diz o estudo.
Os impactos culturais e socioeconômicos são a quinta questão, visto que a criação de áreas protegidas pode desestruturar modos de vida baseados na relação simbólica com a natureza. Os pesquisadores apontam que a cultura local sofre um apagamento silencioso, com proibições de atividades tradicionais, que afetam rituais, crenças e conhecimentos passados entre gerações.
A sexta questão, por fim, envolve a falta de reconhecimento e a participação comunitária. A ausência de representação nos processos decisórios reforça desigualdades históricas e aprofunda os conflitos. Muitas comunidades continuam excluídas da governança das áreas protegidas.
Embora a maioria dos estudos analisados tenha envolvido países do Sul Global, como Brasil e Índia, os pesquisadores alertam que a liderança na produção científica ainda se concentra em instituições do hemisfério norte. Segundo os autores, esse desequilíbrio mostra uma prática conhecida como “ciência de paraquedas”, em que pesquisadores estrangeiros conduzem estudos em territórios biodiversos sem muitas vezes possibilitar o envolvimento efetivo de cientistas e das comunidades locais, deixando pouca contribuição duradoura para a região e tratando muitas vezes seus habitantes como meros coletores de dados ou objeto de estudo.
A pesquisa é parte das ações do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Sínteses da Biodiversidade Amazônica (INCT SynBiAm) e do Programa de Pesquisa em Biodiversidade da Amazônia Oriental (PPBio-AmOr), que reúne cientistas de diversas áreas do conhecimento da UFPA. Além de estudiosos da UFPA e UFOPA, participaram do estudo pesquisadores da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e do Instituto Tecnológico Vale (ITV).