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Monitoramento de lagos da Amazônia aponta razões para o aquecimento da temperatura na região
Os lagos da região amazônica concentram concentram riqueza essencial aos habitantes e à fauna da região. - Foto: Dida Sampaio/Estadão
Alta radiação solar, águas turvas e redução de profundidade da água e da velocidade do vento são alguns dos principais fatores responsáveis pelas altas temperaturas na Amazônia. É o que apontam modelagens realizadas a partir do monitoramento de lagos na região realizado projeto “Lagos Sentinelas da Amazônia: Centro Transdisciplinar para Compreensão das Dinâmicas Socioambientais e das Águas Amazônicas sob Mudanças Climáticas”, apoiado pela chamada CNPq Pró-Amazônia 2024, que emprega recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Os primeiros resultados do trabalho realizado pela equipe coordenada pelo pesquisador e líder do Grupo de Pesquisa em Geociências e Dinâmicas Ambientais na Amazônia do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Ayan Santos Fleischmann, foram publicados na mais recente edição da revista científica Science, publicada em 6 de novembro.
“Lagos amazônicos têm enfrentado desafios socioambientais imensos nos últimos anos, como no caso das secas extremas de 2023 e 2024. No entanto, há escassez de informações sobre o estado atual destes lagos, a qualidade de suas águas, seus ecossistemas, bem como sobre as populações humanas que vivem ao redor deles e com os quais possuem uma importante interdependência ambiental, econômica e sociocultural”, comenta Fleischmann.
O pesquisador explica que o projeto surgiu com o objetivo de propor e desenvolver, junto com as comunidades locais, uma estratégia de monitoramento de longo prazo de lagos amazônicos replicável em outros lagos da região, e que possa também subsidiar políticas públicas voltadas ao combate à crise climática, gestão de riscos e desastres e melhoria da qualidade de vida das populações amazônidas. O projeto conta com a participação de 15 instituições nacionais e internacionais.
“Durante as secas extremas dos últimos anos, ondas de calor levaram a temperaturas elevadas de mais de 40°C em alguns lagos. Essas ondas de calor causaram a mortandade de botos e peixes e afetaram diretamente milhares de pessoas que dependem desses lagos para seus modos de vida. A emergência climática tem imposto desafios sem precedentes para estes ecossistemas e expõe a urgência de se implementar medidas de adaptação para as comunidades locais, bem como de se estabelecer programas de monitoramento de longo prazo de lagos amazônicos”, afirma o pesquisador.

- Reunião de abertura local do projeto na sede do Instituto Mamirauá, em Tefé, Amazonas. Foto: Bianca Darski
Fleischmann observa que, no artigo, os pesquisadores apresentam de forma inédita o preocupante aquecimento das águas amazônicas, cuja temperatura tem aumentado, em média, 0,6 grau por década, desde 1990. Devido às mudanças climáticas em curso, é provável que temperaturas aproximadas ou excedentes às tolerâncias da vida aquática se tornem mais comuns em sistemas aquáticos subtropicais, gerando desastres como o de 2023, quando seca e onda de calor sem precedentes na região amazônica afetaram as águas da Amazônia, levando a alta mortalidade de peixes e botos. O projeto “Lagos Sentinelas da Amazônia” teve início em 2024 e vai até 2027.
Escassez de estudos
A temperatura dos ecossistemas aquáticos é uma variável fundamental, que influencia processos biogeoquímicos e ecológicos e, direta ou indiretamente, afeta a vida aquática. Nas últimas décadas, a temperatura de muitos lagos ao redor do mundo se elevou. Na Europa, por exemplo, a temperatura da água de grandes lagos aumentou, em média, 0,58 grau por década. As projeções futuras indicam que, devido às mudanças climáticas, essa elevação na temperatura da água continuará, com impacto potencial em sistemas tropicais, onde os padrões de estratificação e mistura térmica, bem como de oxigênio dissolvido, são com frequência mais pronunciados do que em latitudes mais elevadas.
Em águas rasas, as variações diárias nos fluxos de energia da superfície levam à formação de fortes gradientes térmicos verticais durante o aquecimento diurno, seguidos por mistura vertical durante o resfriamento noturno. Os lagos das planícies de inundação amazônicas também apresentam grandes variações sazonais nos níveis de água e nas propriedades ópticas, o que influencia os padrões de estratificação e mistura. Os sistemas tropicais, porém, se encontram subrepresentados em redes globais de observação de lagos.
De fato, é raro que as compilações existentes de temperatura da água em lagos globais incluam dados in situ de lagos amazônicos. Embora modelos climáticos projetem aumento da temperatura do ar e da superfície do mar de modo global, os impactos nas águas doces tropicais ainda são pouco conhecidos. De acordo com os pesquisadores, as condições climáticas e hidrológicas extremas na Amazônia em 2023 e 2024 reforçam a relevância de se aumentar a compreensão sobre como a biodiversidade de água doce e os serviços ecossistêmicos em regiões tropicais poderão responder a um mundo em aquecimento. O monitoramento também auxilia o estudo acerca de como os impactos sobre a natureza e os povos podem ser previstos e manejados.
Monitoramento ambiental
A onda de calor que se espalhou pelo globo em 2023, causando temperaturas recordes do ar e da superfície marinha, também desencadeou seca prolongada na Amazônia e provocou aquecimento extremo das águas interiores tropicais da região, com consequências graves para a população e a fauna locais. Medições de temperatura da água em 10 lagos amazônicos durante a seca de 2023 forneceram a perspectiva em escala regional, baseada em observações por satélite das temperaturas da água. Simulações hidrodinâmicas também revelaram os fatores que impulsionaram o aquecimento dos lagos. Entre setembro e outubro de 2024, nova seca extrema na Amazônia Central resultou em baixa dos níveis e aquecimento das águas sem precedentes. O fenômeno esteve associado a condições hidrológicas e meteorológicas similares às observadas em 2023 e foi atribuído às mudanças climáticas, incluído aí o aquecimento dos oceanos, em especial do Atlântico Norte, combinado a um evento do El Niño de médio a forte.
Segundo as medições feitas pelos pesquisadores em outubro de 2023, a temperatura máxima da água chegou a 41 graus no dia 18 daquele mês, com variação diária de até 13,3 graus associada a resfriamento noturno. Medições in loco realizadas em 10 lagos da Amazônia central durante a seca de 2023 mostraram elevação do nível de temperatura da água. Da mesma forma, houve registro de temperaturas recordes do ar em estações meteorológicas ao longo da Amazônia central. A temperatura da água voltou a níveis mais normais apenas em meados de novembro de 2023.

- A seca do lago Tefé, na bacia do Solimões, deixou 116 comunidades rurais em situação de isolamento, enfrentando dificuldades para acessar água potável, alimentos e ir às escolas. Foto: Divulgação/emtempo.com.br
De acordo com os pesquisadores, esses resultados são importantes devido a três aspectos. Em primeiro lugar, temperaturas próximas ou superiores a 40 graus em grandes corpos d’água são raras, mesmo em sistemas tropicais. O valor é mais alto que as temperaturas médias normalmente observadas, que costuma girar em torno de 29 a 30 graus durante o dia. Em segundo lugar, a temperatura permaneceu elevada em toda a coluna d’água rasa do Lago Tefé. Em algumas ocasiões, embora a temperatura próxima à superfície possa atingir valores tão altos quanto 40 graus durante a estratificação diurna em lagos tropicais, as temperaturas normalmente diminuem com a profundidade. E em terceiro, é preciso dar atenção às amplas variações diárias de temperatura nos lagos Tefé e Coari. No Lago Tefé, os pesquisadores observaram uma amplitude diária de 13,3 graus ao longo de toda a coluna d’água, chegando a 2 metros de profundidade em alguns pontos.
Ao tratar das simulações numéricas que revelaram os fatores que impulsionaram o aquecimento de um lago raso amazônico durante condições de seca, os pesquisadores afirmam que os resultados demonstraram como o aquecimento extremo dos lagos amazônicos durante a seca de 2023 foi precondicionado pelos baixos níveis de água com alta turbidez e, em seguida, impulsionado por condições meteorológicas que favoreceram o aquecimento, em especial a alta radiação solar incidente e a baixa velocidade do vento.
“Nos casos em que existe conexão com o rio durante o período de águas baixas, como no Lago Tefé, os níveis de água do lago são controlados principalmente pelo tronco principal do Amazonas por meio de efeitos de refluxo. Assim, enquanto a seca em toda a bacia acima do rio resultou em níveis de água muito baixos nos rios e lagos, a onda de calor nos lagos em 2023 foi particularmente intensa devido à alta radiação solar incidente (associada à redução da nebulosidade) e à baixa velocidade do vento”, escrevem os autores. Eles explicam também que lagos como o Tefé se tornam mais rasos durante a estação de águas baixas. A turbulência induzida pelo vento provoca a ressuspensão de sedimentos, aumentando, assim, a turbidez e, como consequência, a radiação solar.
Os pesquisadores afirmam que o monitoramento ambiental consistente e de longo prazo em ecossistemas vulneráveis como os lagos Tefé e Coari, afluentes do Rio Solimões, é essencial, pois eles podem servir como sentinelas do clima. A observação desses lagos pode possibilitar estratégias de manejo úteis para os habitantes locais, e o monitoramento de longo prazo permitirá a avaliação da vulnerabilidade dos corpos d’água amazônicos e de outras águas doces tropicais às mudanças climáticas, incluindo o aquecimento e alterações do ciclo hidrológico que levam a secas extremas e ondas de calor.

- Equipe multidisciplinar do projeto realiza sua primeira visita técnica a comunidades ribeirinhas do município de Coari, Amazonas, em maio de 2025. Foto: Comunicação ISB/UFAM
Sensoriamento remoto
As informações de sensoriamento remoto têm sido úteis para estimar as tendências de décadas na temperatura da água. Para avaliar o problema no período de 1990 a 2023, os pesquisadores utilizaram dados do Landsat para 24 lagos principais na Amazônia central. As estimativas mostraram que as temperaturas médias da superfície da água nos corpos hídricos da região aumentaram 0,6 grau por década, com todos os lagos avaliados apresentando tendências positivas significativas. As anomalias positivas na temperatura da superfície da água foram mais frequentes entre 2013 e 2023, em especial desde 2018.
Na opinião dos pesquisadores, a falta de redes de monitoramento in situ de longo prazo impede o melhor entendimento de como o aquecimento dos sistemas aquáticos amazônicos evoluiu nos últimos anos. Eles também refletem sobre as implicações socioecológicas em escalas temporais e espaciais. Para eles, as consequências ecológicas do aumento da temperatura da água em águas doces tropicais e subtropicais têm recebido muito menos atenção do que o de águas marinhas e de altas latitudes. “O nível excepcionalmente baixo da água causou numerosos problemas para os habitantes locais, que dependem do rio e dos lagos de várzea para transporte e pesca”, observam.
Ao atentar para a alta mortalidade de peixes, os pesquisadores ressaltam a probabilidade de a drenagem de muitos lagos de várzea conectados ao rio ter deslocado populações de peixes para os rios principais, com volume também reduzido, resultando em provável morte desses animais. “Os ectotérmicos tropicais, como os peixes amazônicos, possuem faixas estreitas de tolerância térmica, de modo que mesmos aumentos relativamente pequenos na temperatura podem resultar em alta mortalidade”, explicam.

- Pesquisadores fazem medição e coleta de tecidos de botos mortos em lago no município de Tefé, no Amazonas, em 2023. Foto: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá.
As estimativas por sensoriamento remoto da temperatura média da superfície da água nos 24 lagos durante a pesquisa mostraram de forma clara as altas temperaturas observadas em 2023. Assim, é provável que as observações realizadas in situ sejam sem precedentes para a região. “Durante a onda de calor de 2023, a extensão da água na superfície foi reduzida em toda a região, com alguns lagos chegando a menos de 10 por cento de sua área habitual de água aberta”, afirmam os pesquisadores, citando o Lago Badajós, cuja área chegou a reduzir 92 por cento durante a seca de 2023.