AFETO, ANCESTRALIDADE E MEMÓRIA:
CULTURA ALIMENTAR ENTRE OS KARIPUNA DA ALDEIA SANTA ISABEL
"Me interesso pela busca do alimento para o corpo e para o espírito, suas formas de preparo e o ato de partilhá-lo dizem muito sobre mim, minha família e meu povo" ALCIMARA ANICÁ DOS SANTOS.
Tecendo Redes de Educação Intercultural
A Revista Pihhy fortalece sua parceria com o Curso de Licenciatura Intercultural Indígena (CLII) e o Mestrado Profissional em Estudos de Cultura e Política (PPCULT) da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), unindo forças para ampliar e consolidar redes de docentes indígenas comprometidos com a valorização dos saberes ancestrais e a construção de uma educação verdadeiramente intercultural.
Os trabalhos apresentados no âmbito do CLII e do PPCULT são fruto de ampla pesquisa e trabalho de docentes indígenas que atuam nas escolas indígenas do Amapá e norte do Pará.
O CLII teve início em 2007. Nesta longa e bonita trajetória, trabalha conjuntamente com povos do Oiapoque: Galibi-Marworno, Galibi Kali’nã, Karipuna e Palikur-Arukwayene, povos do Parque do Tumucumaque: Apalai, Waiana, Tiriyó e Kaxuyana e o povo Waiãpi, sendo espaço marcante para transformações importantes na região.
Essa colaboração é um passo essencial na luta por uma educação que respeita e promove as línguas, epistemologias e práticas pedagógicas dos povos originários.
Buscamos potencializar o protagonismo indígena na docência e na produção do conhecimento, criando espaços em que a educação seja ferramenta de transformação e resistência.
Ao lado da UNIFAP, a Revista Pihhy segue empenhada em fortalecer iniciativas que garantam uma formação intercultural sólida, promovendo diálogos entre tradição e contemporaneidade e reafirmando a importância da autonomia dos povos indígenas na construção de seus próprios caminhos educativos.
Juntos, seguimos semeando uma educação mais plural, justa e comprometida com a diversidade!
O livro Afeto, Ancestralidade e Memória: Cultura Alimentar entre os Karipuna da Aldeia Santa Isabel, de ALCIMARA ANICÁ DOS SANTOS, fruto de sua pesquisa junto ao Curso de Educação Intercultural da UNIFAP é mais um resultado desta parceria.
Confira uma breve apresentação do resultado desta bonita e importante pesquisa…
“Desde minha infância eu sempre fui fascinada em querer aprender a cozinhar, estava sempre por perto da cozinha, olhando de longe minha mãe e irmãs cozinhando. Ficava sentindo o cheiro do peixe assado, do caldo de piramutaba salgada e de várias outras comidas sendo preparadas por elas. Observava o modo como elas preparavam os alimentos desde a limpeza até quando elas levavam ao fogo. Nesses momentos imaginava que um dia eu estaria na cozinha, cozinhando tão bem! Adorava ver as mulheres cozinhando em uma alegria só!
Minha irmã mais velha, Fabíola, me disse que desde os meus 5 aninhos eu ficava na cozinha e queria ajudar as mulheres na limpeza do peixe e da caça, tudo que elas faziam eu estava por perto querendo fazer também.
Minha mãe, minhas tias e minha avó tinham uma tradição na aldeia que a gente morava de reunir todo mundo para cuidar dos peixes e caças que meu avô, meu pai e meus irmãos pegavam para nós comermos. Era muita fartura na mesa, de vários sabores e cheiros. O momento de sentar na mesa era de muita alegria, de muitas conversas, risos e contação de histórias, meu avô adorava contar suas histórias dos lugares que eles iam pescar e caçar com meu pai e meus irmãos.
Nessa época morávamos na Aldeia Encruzo, um lugar muito farto de peixes, caça e açaí, com uma vista de frente para a entrada do oceano. Eu adorava ficar sentada na cabeça da ponte pescando e ouvindo o som da pororoca chegar, era lindo ver a beleza daquele lugar.
Devido a essa fartura e beleza, meu avô Aniká, meu pai Raimundinho e meus irmãos tinham uma grande missão: proteger o limite do nosso território, que corta o oceano, por onde se pode ter acesso aos três rios principais da nossa Terra Indígena Uaçá: Curipi, Uaçá e Urukawá.
Proteger esse lugar era garantir a proteção dos nossos territórios, a segurança alimentar dos povos que ali vivem e, principalmente, manter o equilíbrio entre os dois mundos: o dos Karuanãs e o nosso. Meu avô, enquanto pajé, fazia também a proteção dos karuanãs daquele lugar.
Lembro da primeira vez que, finalmente, eu iria cozinhar, tinha 12 anos. Minha mãe não teve muito trabalho em me ensinar porque eu sabia algumas coisas e foi fácil para mim.
O sentimento daquele dia foi uma mistura de alegria e de consciência de que naquele momento eu estava me tornando uma mocinha e que iria cuidar das coisas de casa assim como as mulheres da família.
Para nós, faz parte da preparação da menina moça aprender a cozinhar, cuidar da casa e dos irmãos, para quando ela tiver sua família já saber como cuidar de uma casa. Neste momento de preparação da menina moça aprendemos as regras do que podemos fazer e comer no período em que estamos menstruadas.
Cada prato que eu preparo hoje me faz lembrar da minha infância, de quando eu morava com meus avós Aniká e Izidia, que sempre gostavam da mesa farta.
Com meus avós aprendi que a comida não alimenta apenas o corpo: alimenta nossos espíritos e nossas memórias. Assim, cozinhar para mim não é apenas preparar o alimento, trata-se de um momento em que eu viajo nas minhas memórias e onde eu me encontro. Cozinhar é a maneira que achei de expressar meu carinho e gratidão pelas pessoas que eu cuido.
Me interesso pela busca do alimento para o corpo e para o espírito, suas formas de preparo e o ato de partilhá-lo dizem muito sobre mim, minha família e meu povo.
Pesquiso a cultura alimentar porque percebi a importância e a urgência de valorizar e registrar nossos saberes e práticas tradicionais relacionadas ao alimento, que enfrentam sérias ameaças decorrentes de fatores como o crescente processo de substituição dos alimentos tradicionais por aqueles adquiridos nas cidades, juntamente com as mudanças climáticas que afetam o calendário natural e os ciclos da região, colocando em risco a continuidade dessas práticas alimentares.
Além disso, a transformação nos hábitos alimentares resulta em um distanciamento das novas gerações com o legado cultural de nossos antepassados, tornando-se ainda mais urgente a documentação desse saber.
Compreender a cultura alimentar é, portanto, uma maneira de entender como as relações familiares, sociais e espirituais dos Karipuna são mediadas pelo alimento, cujos significados vão além do plano material, alcançando dimensões simbólicas e afetivas”.