ONDE ESTÃO OS QUILOMBOLAS NA ANTROPOLOGIA?
A emergência de uma “Quilombologia”
Zaquiel da Silva Santos.
Quilombo Buriti do Meio
ONDE ESTÃO OS QUILOMBOLAS NA ANTROPOLOGIA?
Nos últimos tempos, com o avanço da luta quilombola no âmbito da constitucionalidade, os quilombolas passaram a ser reconhecidos e representados politicamente enquanto povos de direitos, por meio dos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988, que tratam da cultura dos povos tradicionais, e do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
Também destacam-se a Lei n.º 10.639/2003 e o Decreto n.º 4.887/2003, que representa um marco legal fundamental para a garantia dos direitos dos povos quilombolas.
A partir desse reconhecimento legal, é urgente pensar processos de inclusão real, não apenas teórica, nas narrativas sobre os quilombolas, inclusive no campo antropológico.
Gersem Baniwa (2023) afirma que com a entrada dos povos indígenas na antropologia, esta não será mais a mesma, pois traz ao debate epistemologias originárias, vindas das próprias aldeias.
De forma semelhante, Antônio Bispo dos Santos (2015), em seu pensamento afropindorâmico, propõe uma leitura epistêmica dos modos, signos e significados dos povos quilombolas.
Esses dois autores apontam para outras formas de produção do conhecimento.
O pensamento de Nego Bispo parte da ideia de que os saberes são confluências, ou seja, não se separa sujeito de sua natureza, nem de suas relações sociais e cosmológicas.
Os conhecimentos em diálogo não surgem de meras coincidências ou invenções: “a coincidência, trouxemos a confluência” (Bispo, 2023, p. 3).
Já Baniwa pensa uma antropologia plural, a partir da perspectiva indígena e do processo de coexistência com a presença indígena na produção antropológica:
“A antropologia no plural ou as diferentes antropologias não precisam renunciar às crenças adotadas tradicionalmente como parte da sociedade colonial eurocêntrica, mas precisam admitir e reconhecer outras crenças” (Baniwa, 2023, p. 49).
Essas propostas, no âmbito antropológico, ultrapassam o campo disciplinar: não é suficiente discutir quilombos sem que os quilombolas estejam de fato no protagonismo da produção acadêmica.
Um antropólogo não quilombola que fala sobre quilombos está distante das relações reais que compõem aquele território.
Por outro lado, um antropólogo quilombola é um agente ativo da transformação daquele ambiente, pois sua pesquisa parte da história e das relações vividas, sem necessidade de um processo de inserção ou imersão, pois ele já está dentro.
O que pode haver são processos de descobertas de identidades e ressurgências, uma vez que muitas culturas quilombolas foram silenciadas, apagadas ou estereotipadas, resultando em subalternização cultural.
No Brasil, ainda é rara a presença de intelectuais quilombolas, sobretudo antropólogos, em programas de pós-graduação, na docência ou em cargos acadêmicos.
Essa ausência não condiz com a pluralidade dos povos quilombolas, em seus modos e complexidades.
Essa falta não se deve à incapacidade de produzir conhecimento, mas a uma construção antropológica ainda essencialista, em que o método descritivo ora aproxima, ora distancia o sujeito de sua prática real.
Esse cenário agrava-se historicamente pelo legado escravocrata e pelo racismo científico que justificou a antropologia como ciência, com a forte influência de naturalistas franceses e ingleses, que construíram o imaginário do “outro” radicalmente diferente.
Estabeleceu-se assim uma autossuficiência europeia branca, considerada por natureza civilizada, em contraste com os povos colonizados, vistos como inferiores.
Essa consciência racista colonizadora marcou a Europa como berço de todo conhecimento e modelo social.
Na modernidade europeia, essa distinção fundamentou o contraste entre ocidental ou europeu (moderno e avançado) e os “Outros”, o restante dos povos e culturas do planeta (Lander, p. 10).
A Europa, portanto, é uma invenção forjada na ideia de uma “raça pura” que objetificava o outro como objeto de estudo e exploração.
Essa visão resultou em processos assimétricos e colonialistas, tanto na antropologia quanto na colonização dos países africanos, que tiveram suas culturas profundamente danificadas.
A antropologia por muito tempo foi um instrumento de construção da alteridade estereotipada e hierarquizada, buscando fortalecer a ideia eurocêntrica e desqualificar outras sociedades, inclusive por meio de estudos raciais, como a craniometria usada por Franz Boas.
No século XX, intelectuais de diversas universidades buscaram popularizar as ciências sociais e, dentro delas, a antropologia.
No Brasil, apesar do foco tradicional em povos indígenas, a construção epistemológica sobre quilombolas ainda é recente, sobretudo antes do reconhecimento constitucional de suas terras.
O processo de generalização cultural associava os povos africanos no Brasil como meros “africanos”, numa tentativa de apagar suas identidades. A hegemonia educacional brasileira ainda perpetua isso, referindo-se a esses povos apenas como negros e índios, ignorando suas autodenominações e ocultando a relação colonialista (Bispo, 2015, p. 16).
É urgente reorganizar o sistema educativo nacional!
A antropologia não pode ser um campo meramente descritivo e distante dos interesses dos povos subalternizados.
Se um pesquisador aprende que a cura ocorre por meio de banhos de ervas e depois despreza esse saber em favor da medicina farmacêutica, pouco contribui para a descolonização do conhecimento.
O quilombo extrapola o conceito acadêmico; é, antes, um conceito afrodiaspórico forjado na luta dos povos escravizados contra a colonização.
A pesquisa acadêmica em quilombos deve transcender a mera descrição e buscar a transformação epistemológica. Sem isso, configura-se a “inclusão teórica”, onde a presença quilombola é apenas representada por outros.
Pensar o quilombo requer compreender seus processos de confluências e singularidades, sua história marcada pela resistência e existência contra o epistemicídio.
Quilombo é organização social e política, cultura, memória e territorialidade, um pedaço de África que persiste na luta contra a escravidão.
Proponho uma “Quilombologia” como campo de estudo que parte do quilombo enquanto berço de saberes, culturas, políticas e relações plurais, buscando ampliar a presença quilombola na academia de forma real, e não simbólica.
Essa transformação implica professores quilombolas nos cursos de antropologia, livros escritos por quilombolas nas grades curriculares, orientadores quilombolas e laudos produzidos por eles. Isso chamarei de “inclusão real”, em contraste com a mera “inclusão teórica”.
Não se trata de desqualificar as pesquisas não quilombolas, mas de reconhecer que a produção de conhecimento deve ser plural e horizontal, com protagonismo quilombola.
O mestre tradicional é tão importante quanto o mestre acadêmico, e o reconhecimento deve ir além de agradecimentos genéricos.
Essa nova antropologia deve ser renovada e ecumênica, aberta à diversidade brasileira, onde cada povo possa produzir conhecimento sobre si mesmo, dentro ou fora da academia. A recusa é um ato simbólico da luta para existir e resistir, no Brasil, terra onde a cultura negra resiste e floresce.
Enquanto a academia não se abrir para essa transformação com presença real, seguiremos com a inclusão teórica, reproduzindo hierarquias coloniais.
É preciso continuar sonhando, recusando o impossível, assim como os antepassados recusaram a escravidão, para que a semente da liberdade cresça e frutifique, abrindo caminhos para novas possibilidades e para a totalidade da nossa diversidade.
Referências
BANIWA, Gersem José dos Santos. Antropologia e povos indígenas: reflexões para uma antropologia no plural. Brasília: E-papers, 2023.
BISPO DOS SANTOS, Antônio. Colonização, quilombos: modos e significados. Brasília: INCTI, 2015.
BISPO DOS SANTOS, Antônio. O pensamento afropindorâmico: confluências, não coincidências. Brasília: INCTI, 2023.
LANDER, Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
PEIRANO, Mariza. Antropologia no Brasil: alteridade, desigualdade e sociedade complexa. Brasília: UNB, 1999.