CONVERSA COM O MULTI ARTISTA GUSTAVO CABOCO
PARTE 3
Me chamo Gustavo, pertenço ao povo Wapichana de Roraima, na Serra da Lua.
Minha trajetória na arte começa de um modo que talvez seja comum: quando pensamos em populações indígenas, a educação inicia em casa, na relação com as famílias.
"Ateliê de costura"
No meu caso, cresci em um ateliê de costura, que era o ateliê da minha mãe. Minha educação indígena aconteceu, num primeiro momento, nesse espaço.
Hoje, faço uma reivindicação forte: a costura também é resistência indígena.
Ouve-se muito, por exemplo, entre cineastas indígenas, que o “novo arco e flecha” seria a câmera, pois é um instrumento de denúncia e luta.
Eu, porém, provoco as pessoas a refletirem que outras ferramentas também podem ser armas de luta — para a minha família, foi a máquina de costura, o lugar onde minha mãe fez toda a sua resistência.
Minha mãe foi uma indígena raptada quando criança.
Aos dez anos, foi levada da comunidade por uma missionária e passou a trabalhar em casas de fazendeiros em Roraima. Entrou num trabalho de submissão, em que, em troca de comida e moradia, limpava a casa e fazia roupas para as crianças.
Ela não tinha acesso à escola, e sua trajetória foi marcada por passagens de família em família, sempre como trabalhadora doméstica. Passou por Boa Vista, Manaus e foi adotada por uma família que a levou até Curitiba, no Paraná, onde eu nasci e cresci.
Meu contexto artístico, portanto, está ligado a essa trajetória de retorno — retorno à maloca, à terra — transitando entre Paraná e Roraima.
Trajetória de retorno.
Hoje moro em Cuiabá, mas todos os projetos que desenvolvo se situam nessa articulação entre essas regiões, com foco na comunidade, em projetos de formação e educação.
Minha educação inicial se deu no ateliê de costura da minha mãe, aprendendo e entendendo nossa história nesse espaço.
Depois, focamos em projetos na própria comunidade, com trabalhos de costura e fortalecimento, especialmente da educação indígena.
Vejo a arte muito além do desenho ou pintura; para mim, ela está mais ligada à relação e transformação social que podemos promover.
Meu trabalho artístico tem, inicialmente, um papel de denúncia, especialmente contando a história da minha mãe — infelizmente, um caso comum no Brasil, com muitas denúncias semelhantes em vários territórios indígenas.
Crianças são levadas de suas comunidades e colocadas em regimes que as afastam de suas culturas, às vezes por políticas governamentais, outras por ações missionárias que se colocam como salvadoras, sem compreender as culturas.
Na Amazônia, por exemplo, existem muitos casos de crianças submetidas a trabalho escravo em lavouras.
O fenômeno das “crianças doadas” é amplo e complexo, e eu comecei a conhecer outras pessoas dentro do contexto indígena com histórias parecidas.
Esse tema é central no meu trabalho, especialmente na formação de crianças indígenas.
Minha mãe sempre acolheu costureiras em situação de vulnerabilidade, oferecendo-lhes uma ferramenta para geração de renda e fortalecimento pessoal. Por isso, reforço que a costura é uma forma de resistência indígena.
Quando eu me apresentava na infância como indígena e dizia que minha mãe era costureira, muitas pessoas tinham a impressão equivocada de que isso significava a perda da cultura.
Sabemos que as máquinas de costura chegaram aos nossos territórios — no nosso caso, em Roraima — por meio das igrejas, especialmente das missionárias. As igrejas criaram muitas escolas indígenas e tentaram domesticar os corpos indígenas, impondo tarefas como a costura.
Apesar desse controle, conseguimos transformar essas ferramentas em instrumentos próprios, de resistência e ativismo.
Assim como a câmera se tornou uma arma de denúncia e voz indígena, o artesanato e a costura também são atos políticos. Eles constituem formas de educação e de fortalecimento cultural, com muitas costureiras indígenas espalhadas pelo Brasil, criando redes de apoio e formação, tanto para crianças quanto para mulheres.
Minha mãe realizou inúmeras oficinas de costura para crianças e, atualmente, atua diretamente com mulheres, fortalecendo esses laços.
Essa atuação dela é um ponto de partida para o meu caminho de retorno.
"Fazer rede!"
Na minha trajetória, uso o desenho como forma de documentação e denúncia, para contar nossas histórias e promover diálogos.
Apesar de não ter uma trajetória acadêmica tradicional, os livros me possibilitaram diálogo com o meio acadêmico.
Além disso, trabalho com cinema, animação e trabalhos têxteis, explorando várias técnicas. Para mim, a base da arte indígena está mais nas relações e na educação do que em uma técnica isolada.
A arte-educação é o que mais pode fortalecer e formar artistas indígenas, oferecendo autoestima, sentido e conexão com os ancestrais.
Muitos saberes permanecem vivos com os avós, e a arte-educação é a maior potência que temos para nos fortalecer.
Esse fazer rede, tanto no sentido literal, com manualidades, quanto no sentido político e social, reconhecendo territórios e transitando entre eles, é parte fundamental da nossa formação.