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Controle Social
Conferência de Saúde Mental e Trabalho elege seis delegados
A teleatendente Jane vivia um ambiente de pressão no trabalho, adoeceu e tentou se matar. O entregador Leandro se acidentou, não tinha cobertura do INSS; em casa, sem trabalho, ficou com a saúde mental abalada. A vigilante Eva, além de sofrer racismo e assédio moral, testemunhou um colega se matar, o que resultou em transtorno de estresse pós-traumático. Essas são algumas das histórias relatadas no documento orientador da Conferência Livre Nacional de Saúde Mental e Trabalho, realizada em 28 de setembro, na Fundacentro em São Paulo/SP, com formato híbrido, que reuniu 309 participantes.
Com o tema "Por que enlouquecemos no trabalho? A saúde mental da classe trabalhadora importa!", a atividade é etapa preparatória da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), que será realizada de 11 a 14 de dezembro. Para discussão, foram escolhidos dois eixos: III - Política de saúde mental e os princípios do SUS: Universalidade, Integralidade e Equidade e IV - Impactos na saúde mental da população e os desafios para o cuidado psicossocial durante a pós-pandemia. Foram formadas duas salas para cada eixo, uma presencial e uma on-line.
A plenária aprovou as propostas dos grupos e elegeu seis delegados. Foram quatro representantes de usuários, sendo dois eleitos a partir de marcadores sociais. No caso da representante dos trabalhadores, a mais votada foi uma das candidatas com marcadores sociais. No caso do representante dos gestores, houve apenas um candidato geral, que foi eleito.
Propostas
Várias propostas foram apresentadas nos debates. As três mais votadas de cada sala foram levadas à plenária e aprovadas. A Comissão Organizadora sintetizou aquelas que eram parecidas, o que resultou neste documento, com nove propostas.
A criação de Frentes de Enfrentamento às Violências Relacionadas ao Trabalho e aos Direitos Humanos, por munícipio, com ampla participação foi uma das proposições do Eixo III. A integração das esquipes do Cerest (Centro de Referência em Saúde do Trabalhador) e da Raps/Caps (Rede de Atenção Psicossocial/Centro de Atenção Psicossocial) para o desenvolvimento de ações conjuntas e a elaboração e implementação de protocolos de atendimento e apoio matricial na Raps também foram propostas.
No eixo IV, os participantes da discussão propuseram a ampliação da participação de trabalhadores/as nas ações de Saúde do Trabalhador; e a articulação para ratificação e implementação da Convenção 190 da OIT, sobre eliminação da violência e do assédio no mundo do trabalho, e da Convenção 187 sobre a promoção da Saúde e Segurança no Trabalho de modo a incidir na formulação e realização de políticas públicas.
Ainda apontaram a necessidade de avanço na vigilância em saúde mental e de capacitação dos profissionais de todos os níveis de atenção tanto para reconhecimento de transtornos mentais relacionados ao trabalho como considerando as alterações psíquicas específicas da covid-longa e a interferência sob a capacidade laboral.
Covid longa
Uma das participantes da discussão do eixo IV, na sala presencial, foi a médica psiquiatra e professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), Edith Seligmann Silva, referência nos estudos de saúde mental relacionada ao trabalho no Brasil e criadora de curso com esse tema do Instituto Sedes Sapientiae.
“Muitas pessoas estão sendo demitidas por justa causa sem que haja o reconhecimento de que as manifestações que elas apresentam, de menor desempenho, de esquecimento, de lentidão no trabalho mental ou cansaço mental, que fazem com que interrompam tarefas, é parte do quadro de Covid longa”, avalia Edith.
A médica explica que é preciso reconhecer a Covid-19 como doença relacionada ao trabalho, já que grande parte dos trabalhadores se contaminou na atividade laboral ou no trajeto. Em relação aos impactos na saúde mental, ela defende que haja gestores preparados para esse reconhecimento, a diminuição das exigências de desempenho, quando os trabalhadores se encontrarem nesta situação de desgaste, ou a redução de jornada como já ocorre em outros países.
Trabalho e processos de saúde e adoecimento
As discussões dos grupos foram antecedidas por três palestras. O psicólogo Carlos Carrusca, que é professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Psicologia da PUC-Minas (Pontifícia Universidade Católica) e membro do Instituto Walter Leser da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo, destacou a necessidade de se evidenciar a articulação entre a saúde mental e trabalho.
"O trabalho, em todas as suas dimensões, é um forte determinante dos processos de saúde, sofrimento e adoecimento. O trabalho diz respeito aos modos como as pessoas vivem, adoecem, sofrem e morrem", afirmou Carrusca.
Para ele, muitas vezes os marcadores de raça e cor não aparecem. O modo de desenvolvimento escolhido no país coloca todo trabalhador e toda trabalhadora sob pressão. Configura-se, nesse contexto, quadros de esgotamento profissional, depressão e outros transtornos mentais.
O enlouquecimento no trabalho vem, entre outras questões, das violências relacionadas ao trabalho, de formas de gestão marcadas pelo autoritarismo, humilhação, pressão (assédio moral), de sistemas de controle e avaliação do desempenho, da precarização das condições laborais, da exposição a condições nocivas e produtos tóxicos e da intensificação do trabalho e dilatação das jornadas laborais
Além disso, apesar de a saúde e o trabalho serem direitos sociais fundamentais assegurados pelo ordenamento jurídico brasileiro, a efetivação deles tem sido desigual e precária para muitas pessoas.
"O direito à saúde e o direito ao trabalho são fundamentais e se opõem a essa maximização que pede para as pessoas suportarem situações insuportáveis", alertou. É preciso questionar o uso de termos como resiliência e engajamento e transformar as condições de trabalho. Essa transformação implica assumir uma luta em diferentes esferas e dimensões: sociais, políticas, jurídicas e institucionais.
Caminho comum a trilhar
O campo da Saúde Mental e da Saúde do Trabalhador compartilham um mesmo caminho, e a articulação é fundamental. "Temos lutas comuns, causas, experiências, mas no dia a dia vivenciamos de modo fragmentado", alertou a psicóloga Andréia Garbin, professora da PUC-SP e da Universidade Presbeteriana Mackenzie e membro do Núcleo Saúde Mental e Direitos Humanos relacionados ao Trabalho do Instituto Sedes Sapientiae.
Garbin refletiu sobre o trabalho como determinante social da Saúde no SUS (Sistema Único de Saúde). Para tanto, apresentou características da Raps e da Renast (Rede Nacional de Saúde do Trabalhador e Trabalhadora). "As redes precisam assumir essa condição do trabalho para compreender a subjetividade, o sofrimento e suas potências", explicou.
Em conversas com trabalhadores da saúde, a psicóloga percebeu que eles reconheciam a relação entre o trabalho e adoecimentos no dia a dia, mas há dificuldade para transformar essa percepção em notificação. A Raps necessita de ações articuladas com a rede de saúde do trabalhador. Também é preciso que ao preencher a notificação, o profissional não veja aquilo apenas como ficha de papel, mas sim como ação de cuidado.
Para Andréia, deve haver diálogo permanente entre a raps e os diferentes serviços, além de articulação do cuidado em todos os níveis da rede de saúde mental. Já a Renast deve atuar em diversas formas de intervenção e pensar a ação de vigilância.
"Não posso fragmentar o cuidado, é isso que queremos superar no SUS. Queremos romper com as explicações individualizantes e culpabilizantes [em relação ao trabalhador]", finalizou. Para tanto, é preciso ir além do modelo biomédico do processo saúde-doença e pautar que o trabalho é determinante nesse processo.
A voz da trabalhadora
Sob aplausos, a coordenadora-geral da Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Luiza Batista, trouxe a voz das trabalhadoras para a Conferência. Ela relatou casos de assédio moral, que são recorrentes no trabalho doméstico. "Muitas vezes você é chamada de incompetente, lerda, burra. Já tivemos companheiras que tentaram suicídio porque não aguentaram o sofrimento", contou.
As trabalhadoras domésticas não têm direito a adoecer. Quando adoecem, se precisam faltar ao trabalho, negociam para receber o pagamento, trabalhando horas a mais depois para repor o tempo de repouso. A trabalhadora sabe por que adoece, há casos em que chegam a relatar que alguns produtos de limpeza fazem mal, mas não são ouvidas. "A maioria das empregadoras olha para nós como se não fossemos sujeitas de direito", lamentou.
Elas também são silenciadas em outras esferas: "A gente sofre as agressões na nossa casa. Filhos na rua. Marido que agride a mulher. Por ser a classe dominada, ouve tudo calada no trabalho. Sem contar os acidentes do trabalho. Aguenta tudo calada.".
Diante desse cenário, os sindicatos da categoria precisam de apoio. "Nós não temos a preparação no sindicato para atender essas companheiras que chegam chorando, falando do que sofrem no trabalho", avaliou Luiza. A palestrante apresentou caso de trabalhadora que se acidentou e se queimou. "No sindicato, tentamos fazer CAT [Comunicação de Acidente do Trabalho], mas na hora de preencher o sistema só aceita CNPJ não aceita CPF". Isso mostra como o adoecimento delas e acidentes são inviabilizados.
"Trabalho doméstico é uma profissão e assim deve ser visto. O trabalho doméstico causa sofrimento mental e adoecimentos. Também somos vítimas de acidentes do trabalho. Queremos pesquisas comprovando nossas falas", concluiu Luiza Batista.
Outros momentos
A abertura da Conferência Livre Nacional de Saúde Mental e Trabalho contou com um vídeo do presidente da Fundacentro, Pedro Tourinho, que estava em outro compromisso em Brasília/DF. Em sua fala, destacou o elevado número de trabalhadores que possuem adoecimento mental relacionado ao trabalho e como esses valores são subnotificados. Também criticou a lógica da medicalização.
A mesa contou com a presença de Fernanda Magano, conselheira nacional de Saúde representante do Segmento dos Trabalhadores na Mesa Diretora do CNS (Conselho Nacional de Saúde). Ela mostrou a importância de se olhar para o adoecimento no trabalho na perspectiva da subjetividade e criticou a resistência dos empregadores em reconhecer o nexo causal com o trabalho.
Magano destacou ainda a Resolução 715, publicada logo após a 17ª Conferência Nacional de Saúde, que traz em seus pontos 4 e 8 a questão da Saúde Mental. O quarto item coloca a garantia do matriciamento eficaz e regular em toda a Raps, com ampliação da participação direta das pessoas usuárias e construção de políticas públicas de saúde mental. Já o oitavo aponta a ampliação da articulação da rede de atendimentos da Atenção Básica, incluindo a rede de atenção à saúde mental, álcool e drogas, com incentivo à capacitação profissional para o atendimento mais qualificado e humanizado, com a ampliação das equipes de saúde da família e apoio à rede de saúde mental.
“A Raps e a Renast precisam cada vez dialogar mais para que as questões de saúde mental não sejam tratadas de forma distante da saúde do trabalhador e da trabalhadora”, defendeu Fernanda.
Saiba mais
Organizadores
Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet)
Associação dos Geógrafos Brasileiros - Seção Local Caicó RN (AGB)
Coordenação-Geral de Vigilância em Saúde do Trabalhador/ Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador/ Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente/Ministério da Saúde (CGSAT/DSAST/SVSA/MS)
Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen)
Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat)
Divisão de Vigilância em Saúde do Trabalhador/ Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador/ Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo (DVST/Cerest Estadual/SES/SP)
Divisão de Vigilância em Saúde do Trabalhador-Coordenação de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde do Município de São Paulo
(DVISAT/Covisa/SMS)
Fórum Acidentes do Trabalho
Fundacentro
Grupo de Estudos e Pesquisa em Saúde Pública e Fonoaudiologia da Unicamp (GFoSP)
Instituto Walter Leser - Fundação Escola de Sociologia de São Paulo (IWL-FESPSP)
Ministério Público do Trabalho (MPT)
Núcleo Semente - Saúde Mental e Direitos Humanos Relacionados ao Trabalho do Instituto Sedes Sapientiae/SP
Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região
Sindicato dos Metroviários e das Metroviárias de São Paulo
Universidade Federal Fluminense (UFF)
União Geral dos Trabalhadores (UGT)