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“Quem vai para um desastre não volta igual”
Em meio ao maior desastre climático da história do Rio Grande do Sul, a atuação emergencial da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) ganhou rosto, voz e direção na experiência de quem esteve na linha de frente. Coordenadora da Operação das Ações da Funasa nas enchentes e chefe da Divisão de Saúde Ambiental da Superintendência da Funasa na Paraíba (Suest-PB), Roseane Batista da Cunha transformou conhecimento técnico, articulação institucional e sensibilidade humana em respostas concretas para milhares de pessoas afetadas.
Seu trabalho sobre a atuação da Funasa no desastre gaúcho – em parceria com Alba de Oliveira Lemos – foi destaque no II Sanea Brasil, em Petrolina (PE), e também exposto em instituições como o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB), detalhando os desafios e a força da ação que mobilizou equipes, laboratórios, unidades móveis e parcerias estratégicas.
Mas o que mais marca sua trajetória no Sul do país não cabe apenas nos relatórios. “Quem vai para um desastre não volta igual”, diz Roseane, em uma frase que sintetiza o impacto emocional e profissional de semanas enfrentando caos, perdas e reconstrução.
Ao completar 40 anos de atuação na Funasa na quinta-feira (27/11), ela revisita, nesta entrevista, a experiência que classificou como uma das mais impactantes e transformadoras da carreira. Fala também sobre sua vida profissional e a importância do trabalho em saneamento e saúde ambiental: “Tanta gente doente, tomando água bruta, e você vem aqui para botar uma Salta Z, para levar água tratada para as pessoas. Isso é muito importante”.
A seguir, os principais trechos da conversa.
Como foi a experiência de coordenação estratégica da atuação da Funasa e de outras instituições no maior desastre climático da história do Rio Grande do Sul?
Coordenar uma ação em desastre é uma experiência desafiadora, de extrema pressão e intensidade, uma vez que existe a necessidade de tomadas de decisões rápidas e conscientes em um ambiente desorganizado, completamente caótico, muitas vezes com informações limitadas e vidas em risco constante. Aí, é extremamente necessário manter a calma e a clareza mental para gerenciar os recursos disponíveis, que são muitas vezes escassos. A resiliência é uma habilidade fundamental para atuar frente às adversidades de um desastre, lidar com o sofrimento humano. A perda de vidas e a devastação material geram um impacto psicológico significativo.
Mas contribuir diretamente com as pessoas em seus momentos de maior necessidade gera uma recompensa emocional e um senso de dever cumprido que transcende as dificuldades do trabalho. É uma função que exige uma combinação rara de habilidades técnicas, liderança, e uma força emocional extraordinária. Uma experiência que desafia os limites pessoais e profissionais a todo momento.
A gente já trabalhou em outras enchentes. Teve Mariana, teva a enchente de Recife, mas nunca foi assim, numa equipe como essa. Foram quatro unidades móveis e a unidade móvel de tratamento de água foi o Exército que levou. É maravilhoso o momento em que você vê a água chegando e, depois, a água tratada para atender aquela população.
A Funasa realizou milhares de análises de água e ações de educação. Que impacto esse trabalho teve na vida das pessoas atingidas?
O trabalho da Funasa foi fundamental para a tomada de decisão das Vigilâncias de Saúde estaduais e municipais. Cumprimos o nosso papel, a responsabilidade de apoio, controle e vigilância da qualidade da água para consumo humano. É tarefa da Funasa apoiar as ações de controle e vigilância em articulação com os responsáveis. Então, a atuação da Funasa foi em diversas frentes, como o apoio a sistemas de abastecimento, a fiscalização e o registro de dados.
E teve esse impacto em relação às análises, de conseguir amostras com confiabilidade, porque elas eram recoletadas, quando dava algum problema. Quando a gente viu como eles estavam coletando, a gente viu que havia necessidade de capacitação para os agentes. Porque a amostra, quando vai o resultado para a Vigilância, tem que ir com confiabilidade. A amostra tem que ser bem coletada, bem analisada.
E em relação à educação e saúde, o impacto foi grande, porque eles estavam todos ali dentro de abrigos, sem instrução. Eles iam almoçar e depois jogavam as bandejas de qualquer jeito. Eu sei que a dor é muito grande nessa hora, mas você não pode deixar piorar a situação, levar mais doença, porque aí, se vem rato e barata para dentro do abrigo, piora a situação.
A gente também fez um trabalho educativo para quando eles retornassem para casa. A maioria não sabia como ia lavar a caixa d'água. Isso foi muito bacana porque, quando eles voltaram para casa, eles souberam a forma correta de lavar. Que bota a água sanitária e deixa ali. Quando decanta, lava novamente, deixa a água sair inteira e a caixa secar para entrar uma nova água. Eles não sabiam disso.
Então, a gente teve que fazer tudo ao mesmo tempo. Eu só não fiz analisar a água no laboratório, porque não sou bioquímica. Mas o resto das coisas…
E a gente não teve como levar os educadores da Funasa. Só tinha lá comigo o Zé Roberto, do Rio de Janeiro, mas os demais que iam para fazer a parte educativa não foram. Aí a Unicef contratou monitores de Wash e a gente capacitou. Então, a gente capacitou várias equipes.
Fizemos também a parte educativa nas ilhas, com um grande mutirão para distribuição de pó clorito, em uma parceria com a ONG Minotauro, que mandou todo o material de limpeza – água sanitária, detergente, kit de feminino, kit de criança, cobertor, água mineral – por meio da operação Taquari 2. A Marinha entrou em contato com eles e eles repassaram uma carreta de material de limpeza. Eu não tinha nem onde colocar! E os fuzileiros navais ofereceram três carros anfíbios e dois caminhões.
Quer dizer, o bom dessa operação era essa articulação para contribuir, para fazer o bem às pessoas e levar tudo para elas, porque nesse momento a gente tem que dar o mínimo de dignidade para todos.
Teve alguma experiência mais marcante?
A experiência marcante foram os municípios de Roca Sales e Arroio do Meio, com seus sistemas de água completamente devastados. Tudo devastado. Inclusive um bairro inteiro que não vai voltar. As pessoas desse bairro, e da metade de Arroio, perderam tudo. E em Roca Salles, eu acho que foi 90% do município. Foi devastador.
Quem vai para um desastre não volta igual. Existe uma mudança interior. De tanto que você vê o que acontece, você não volta igual a como saiu de casa. Você volta bem diferente, não pode voltar igual. A gente vê que a gente é muito pequeno, diante de um desastre, de tantas dores, de tanta agonia que aquelas pessoas passaram. Sem água, sem comida, sem parentes, sem documentos. É complicado você cobrar qualquer coisa, diante de uma população devastada, da forma que eles estavam.
Exige uma preparação para enfrentar uma situação assim?
Sim, é complicado. Você tem que ser capacitado para ir para um desastre. Como você pode chegar? Qual é o tipo de abordagem? Qual é a metodologia que você vai usar para chegar dentro de um abrigo e cobrar que lave a mão, que não jogue o lixo no chão? Então, você tem que estar muito preparado para fazer isso, sabe?
Você não pode chegar de qualquer forma. Você tem que ter um planejamento, toda uma preparação, porque é chocante você ver aquelas pessoas daquela forma. Você tem uma casa e, de repente, você não tem nada.
Teve um senhor, que a gente foi olhar um bairro, em Arroio do Meio, e estava um silêncio total. Aí eu vi uma casa de esquina enorme, tudo no chão. Aí, vinha um senhor, eu fui conversar com ele e ele disse pra mim que tinha perdido tudo e tinha ido lá olhar. Ele era a única pessoa que estava lá, num bairro inteiro. Ele disse: “Minha filha, eu perdi tudo, isso aqui tudo era meu. Agora, eu estou morando de favor, na casa de uma filha”.
Então, a gente, enquanto pessoa, é para rever os valores. A pessoa ver que é um nada diante de um caos daquele, tudo transformado num caos, um estado inteiro. Então, para mim foi bem impactante. Foi muito chocante.
Você acha que a experiência no Rio Grande do Sul pode inspirar discussões como as que a Funasa promoveu na Casa do Saneamento, durante a COP 30, em Belém?
Os sistemas eficientes de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, além de drenagem e gestão de resíduos sólidos, são fundamentais para mitigar os impactos da crise climática e prevenir surtos de doenças durante e após os desastres naturais.
A Funasa, no tocante à saúde ambiental, é um departamento que tem um papel de extrema relevância na atuação em um desastre natural. E essa experiência bem-sucedida no Rio Grande do Sul contribui para o aprimoramento das políticas públicas de prevenção e resposta a desastres, transformando o papel de atuação da Funasa em uma resposta de saúde pública rápida e eficaz em situações assim.
Pra finalizar: há quanto tempo você está na Funasa?
Estou fazendo 40 anos de Funasa nesta quinta-feira (27/11). É meu aniversário! São 40 anos de muita dedicação, de trabalho. Minha instituição que eu amo! Foi meu primeiro e único emprego. Eu nasci em Natal, no Rio Grande do Norte, e fui admitida lá. Depois, fui para Curitiba, fiquei muitos anos no Paraná. Fui da primeira turma de chefe de Divisão de Saúde Ambiental. Quando a Divisão começou, eu já fui chefe, lá no Paraná. E, depois, Paraíba. Cheguei em 2018.
Tenho muita gratidão. A Funasa investiu muito em mim, em capacitação. Se hoje eu sou tão bem qualificada, eu devo à minha instituição, que apostou em mim. Eu sou especialista em vigilância em saúde ambiental, especialista também em engenharia sanitária e ambiental. E sou pedagoga de formação.
E o que que te levou a entrar na Funasa?
Eu era bem novinha e se falava muito bem da Sucam (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública, que deu origem à Funasa). E eu tinha muita vontade de fazer parte. Tinha um primo que era da Sucam, uma prima que era da Sucam. Então, a Sucam trabalhava com as endemias, derrubava as casas para construir uma casa de alvenaria, no interior. Tinha a questão da malária, do bócio endêmico, da dengue. Era um trabalho muito importante.
Ao longo dos meus 40 anos, eu participei de muitas coisas. Fiz parte do Conselho Estadual de Saúde, do Programa Nacional de Combate à Dengue (PNCD), representando a Funasa do Rio Grande do Norte. Depois, fiz parte de comitê de bacias do Rio Paraná. Sempre trabalhei em parcerias, com Itaipu e várias instituições e universidades. Então, tem esse conhecimento todo que a Funasa me proporcionou, como servidora. Abriu os caminhos para que eu avançasse.
E agora “quarentei”! Tenho 63 anos, mas muito animada para trabalhar, para fazer o diferente na Funasa, porque eu gosto de desafio. Quando me chamaram para fazer parte dessa missão, eu fui, muito animada.
Como outras ações, também. Cada vez que eu vou no interior, eu digo: “Minha gente, você já pensou? Fiquem bem felizes, porque você leva água tratada. Olha a importância disso! Tanta gente doente, tomando água bruta, e você vem aqui para botar uma Salta Z, para levar água tratada para as pessoas. Isso é muito importante”.
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