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Repressão ao entrudo
Fundo: Série Justiça – Polícia – escravos – moeda falsa – africanos (IJ6)
Código do Fundo: AM
Notação: BR_RJANRIO_AM_IJ6_0217
Data do documento: 11 de fevereiro de 1854
Local: Rio de Janeiro
Folha: -
Veja esse documento na íntegra
Ofício da Secretaria da Polícia da Corte, no qual o 2º delegado Antônio [Rodrigues] da Cunha pedia ao ministro da Justiça, José Tomás Nabuco de Araujo, que expedisse a ordem para que cem praças se apresentassem no quartel do corpo de infantaria com o intuito de patrulhar a cidade e evitar a prática do entrudo, que estava próxima de acontecer. A ideia era suprir a necessidade do corpo policial da municipalidade, responsável por cumprir a postura da câmara municipal, que proibia o jogo de entrudo na corte.
O entrudo, festa de tradição portuguesa, foi a principal forma de comemoração carnavalesca no Rio de Janeiro durante o período colonial e até meados do século XIX. Consistia, grosso modo, em jogar águas (de cheiro – em forma de limões ou laranjinhas de cera –, limpas ou sujas), ovos e pós variados (como farinhas, por exemplo) nas pessoas, tanto nas ruas quanto no interior das casas, e praticar brincadeiras como o “Você me conhece?” ou insultar satiricamente os indivíduos que estivessem nas ruas na época do entrudo. A prática na maioria das vezes era pacífica, principalmente nos lares, mas poderiam tornar-se violentas nas ruas. Entrudo era uma festa portuguesa que acontecia nos três dias que antecediam o início da Quaresma (na quarta-Feira de Cinzas), portanto de domingo a terça-feira e que durante muito tempo equivaleu ao carnaval no Rio de Janeiro e em outras cidades do Império.
Diferentemente de uma visão que esteve presente na historiografia do tema, o período do carnaval, ou do entrudo, não significava uma inversão nas hierarquias sociais, um tempo de permissividade absoluta. O jogo do entrudo respeitava com rigidez as hierarquias da sociedade imperial: as famílias da boa sociedade praticavam as atividades no ambiente privado, entre as famílias e amigos mais chegados. O entrudo era, muitas vezes, iniciativa das mulheres (o que as colocava em uma situação de protagonismo nas relações sociais), que partiam para cima dos outros jogando limões e laranjas de cheiro, fabricados por elas mesmas ou pelos escravizados da casa durante as semanas que antecediam o carnaval. Nas ruas, predominava a presença de homens, brancos ou negros, livres e libertos, em sua grande maioria pobres. Não somente os livres ou libertos entrudavam, os escravizados também, entre si, incluindo homens e mulheres, lançavam água uns nos outros e pó branco por cima. Um escravizado não poderia molhar um senhor, sob pena de receber castigos pela ousadia, mas era aceito que brincassem entre eles mesmos, e certamente os senhores divertiam-se entrudando os seus escravizados. Até os capoeiras se fantasiavam e partiam para as ruas para a molhaçada generalizada. Quem não gostava de entrudo, deveria permanecer os três dias trancado em casa, uma vez que todos que se arriscavam nas ruas estavam sujeitos às brincadeiras. Até mesmo a família imperial apreciava as brincadeiras do entrudo. Nota-se, nesse panorama, que o carnaval nas ruas era bem mais caótico do que o do interior das casas de boas famílias, mas todos brincavam o entrudo, dentro de suas camadas sociais.
Ainda na primeira metade do século XIX, inicia-se um movimento de afastamento do Brasil da influência portuguesa e das marcas do regime colonial, e de aproximação ao modelo civilizador francês. Festas como o entrudo passam a ser vistas como um símbolo de atraso, de desordem, um resquício dos tempos da colônia, em oposição aos novos valores da civilização, ordem e progresso que as elites imperiais pretendiam propagar no Império. Dá-se início ao período de uma longa batalha na imprensa e das instituições policiais para extirpar o entrudo e outras manifestações culturais (como cucumbis, zé-pereiras e cordões) associadas à plebe, ao passado colonial, aos africanos ou aos costumes populares primitivos, associando as essas festividades ao crime, à violência e à desordem. Em oposição, desejava-se introduzir o carnaval à moda veneziana e parisiense, dos bailes de mascarados, dos préstitos de carros enfeitados nas ruas, onde o povo mais pobre não participaria da festa, a não ser como espectador.
Festejar o entrudo, com seus banhos, arremessos de limões de cheiro, polvilhos e, às vezes, o uso de substâncias pouco cheirosas, bem como o enlameamento das ruas, escapava à lógica racionalizante dos discursos e projetos políticos das autoridades e elites do século XIX. A preocupação com o progresso e a civilização impulsionou a constituição de políticas de controle por parte de diferentes autoridades públicas, que atuaram sobre a experiência social e sobre as manifestações festivas. Nesse aspecto, ganhava força a ideia de combater práticas consideradas “incivilizadas”, “grosseiras” ou “selvagens”, portadoras de exageros perigosos para a sociedade. O entrudo passaria a ser visto pouco a pouco como uma forma indisciplinada de apropriação do espaço urbano e de manifestação cultural à contramarcha do discurso de ordem. (ARAUJO, Patricia Vargas Lopes. Outros tempos, outros carnavais: brincadeiras de entrudo e de carnaval no Brasil (século XIX). Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol. 13, n. 1, jan.-jul. 2020.)
Em 1838 foi lançado o primeiro edital da câmara municipal que proibia o entrudo na cidade do Rio de Janeiro. Ao longo do Império, e mesmo da jovem República, o entrudo permaneceu como prática das classes populares até a virada do século XIX para o XX, e mesmo de setores da boa sociedade, apesar da forte campanha da imprensa e dos letrados para que fosse extinto. Apesar de todas as proibições, e incluímos a de 1854, o entrudo teimava em permanecer. A maneira de tentar acabar com o entrudo seria substituí-lo por uma outra festa, o carnaval, moderno, burguês, à moda parisiense, limpo, civilizado e ordenado, a ser praticado de outra maneira, sem os distúrbios que aconteciam nas ruas. A partir dessa data, o carnaval das Sociedades Carnavalescas de inspiração europeia começaria a competir com as festas da plebe pelas ruas da cidade, em uma clara tentativa de tentar civilizar o povo e o Brasil, para que esse pudesse ser inserido no rol das nações civilizadas do ocidente europeu. Esse novo carnaval reforçava as desigualdades e diferenças de hierarquias sociais, visava a diminuir a imagem de que a festividade igualava todos por três dias. Havia uma tentativa de retomar as ruas dos pobres e escravizados e de promover um reforço mais rígido dos lugares sociais dos foliões, uns desfilariam nos carros e nos préstitos – a boa sociedade fluminense –, enquanto aos outros cabia o papel de se divertir assistindo a passagem dos cortejos.
Sobre a proibição, a imprensa cobrava frequentemente da polícia o combate ao entrudo, que era proibido todos os anos, mas persistia em continuar acontecendo. Fosse por negligência das forças policiais, fosse pela falta de praças, fosse mesmo pela conivência desses com as práticas, afinal não podemos esquecer que os policiais eram também pobres, pardos e muitos gostavam de entrudar.
Transcrição
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor
Secretaria da Polícia da Corte 11 de fevereiro de 1854.
Estando muito próximo o entrudo, e acontecendo que, nesses dias, a população mais baixa desta cidade, entregando-se ao excesso de bebidas espirituosas, comete desacatos, provoca desordens, e infringe as posturas da ilustríssima câmara municipal, que proíbe o jogo de entrudo, e não tendo o corpo municipal permanente o número suficiente de praças para bem policiar a cidade, durante o referido carnaval; rogo a vossa excelência se digne fazer expedir as necessárias ordens para que às oito horas da manhã de cada um dos mencionados dias se apresentem no quartel daquele corpo = cem = praças de infantaria de 1ª linha, para coadjuvarem os permanentes nas rondas, até às oito da noite.
Deus guarde a vossa excelência
Ilustríssimo e excelentíssimo senhor conselheiro José Tomás Nabuco de Araujo, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Justiça
No impedimento do chefe de Polícia
Antônio [Rodrigues] da Cunha
2º delegado