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Igreja de Santa Rita
Acervo Biblioteca Maria Beatriz Nascimento
Título do livro: Life in Brazil, or, the land of cocoa and palm
Autor: Thomas Ewbank
Notação: OR 0357 (f.312)
Data do livro: 1856
Local de publicação: Nova York, Estados Unidos
Veja esse documento na íntegra.
Mais do que um simples registro arquitetônico, a imagem da Igreja de Santa Rita, publicada por Thomas Ewbank em Life in Brazil (1856), revela a forma como o viajante estrangeiro via o Rio de Janeiro e suas contradições no século XIX. O desenho, assim como diferentes passagens do livro, que integra hoje o acervo de obras raras da Biblioteca Maria Beatriz Nascimento, do Arquivo Nacional, demonstra a relação daquele local religioso com a escravidão. Tal relação tornou-se conhecida nos últimos anos com pesquisas arqueológicas e especialmente após as obras do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), as quais comprovaram que aquele mesmo local desenhado por Ewbank foi utilizado como cemitério para milhares de “pretos novos” durante o século XVIII. Assim, esse documento abre uma janela para a memória da escravidão no Rio de Janeiro.
Thomas Ewbank (1792–1870) nasceu em Durham, Inglaterra, e passou parte de sua juventude em Londres. Nesse período, completou um curso científico voltado para o estudo e a leitura. Após se casar, em 1819, aos 27 anos, teve dois filhos e emigrou para os Estados Unidos. Estabelecido em Nova York, Ewbank construiu uma sólida carreira como fabricante e inventor, dedicando-se à produção de canhões de cobre e chumbo, além de fornos industriais. Em 1836, após vender sua fábrica, Ewbank passou a se dedicar integralmente à pesquisa e à escrita, voltando-se para a filosofia, a etnologia, a ciência e a história das invenções. Em 1842, foi um dos fundadores da American Ethnological Society, em Nova York, instituição pioneira nos estudos etnográficos e antropológicos nos Estados Unidos. É nesse contexto que ele faz sua viagem ao Rio de Janeiro, em 1846, aos 54 anos, para visitar seu irmão, Joseph Ewbank, que residia na Rua do Catete ao lado de sua esposa brasileira, Eufrásia Marques Lisboa. Essa visita, que durou cerca de 6 meses, rendeu artigos publicados nos EUA e na Inglaterra em 1850, que em 1856 seriam reunidos no livro “Life in Brazil or a journal of a visit to the land of the cocoa and the palm” (Vida no Brasil ou um Diário de visita à terra do cacaueiro e da Palmeira). Portanto, a imagem da Igreja de Santa Rita de Cássia, que já havia sido estampada na revista Harper’s New Monthly Magazine[1], faz parte dessa obra publicada por Ewbank.
O edifício foi desenhado com uma forma simétrica e bem-organizada: no centro, a parte principal tem uma porta decorada com colunas retas e uma faixa superior ornamentada, típica das fachadas de estilo barroco, já com detalhes que lembram o rococó. No desenho, entre as duas janelas, aparece uma pequena janela redonda com moldura trabalhada que não existe mais na igreja atual. A parte de cima da fachada é o elemento mais marcante, com curvas elegantes, espirais e um pequeno enfeite central, finalizado por uma cruz. À esquerda, fica a torre do sino, alta e estreita. Na base, há uma porta em arco e, acima, uma janela simples, com um relógio redondo logo acima. A torre termina com um telhado em forma de pirâmide e pequenos enfeites nas pontas.
Contudo, na imagem de Ewbank, a arquitetura da igreja é colocada em segundo plano, destacando-se a presença negra na fonte, especialmente de mulheres. Como sugerem os barris carregados na cabeça, trata-se de uma imagem cotidiana, de pessoas escravizadas buscando água na fonte, uma das atividades mais comuns e menos valorizadas. Mary Karasch argumenta que o carregamento de água, que inicialmente era desempenhado por mulheres escravizadas, ao longo da primeira metade do século XIX, passou a ser dominado por homens africanos, embora as mulheres ainda buscassem para famílias menores.[2] Das 25 personagens desenhadas no documento, entretanto, a imensa maioria é de mulheres negras, ressaltando a relevância delas nessa prática rotineira. De qualquer modo, Ewbank chama atenção para a presença negra e sobretudo escrava no espaço urbano.
Muito provavelmente, a imagem retrata uma visita realizada no dia 3 de abril de 1846, quando acompanhou o ciclo de festividades católicas em diferentes igrejas da cidade.
(...) segui em direção ao pequeno largo triangular de Santa Rita, com sua fonte octogonal e pequena igreja. Enquanto os sinos tocavam em sinal de boas-vindas gerais, empurrei o biombo carmesim para o lado e me vi em outro mundo — um mundo onde uma luz artificial e suave rivalizava com o sol, e onde as pessoas estavam tão ocupadas quanto lá fora. No alto de um pináculo formado por fileiras alternadas de flores e luzes, a santa se erguia e sorria para os mortais a seus pés; entre eles havia escravos de ambos os sexos, todos aparentemente se esforçando para captar seu olhar. O local estava lotado. Uma comissão não tinha um momento sequer de descanso, ocupada em receber doações e trocar dinheiro por pequenos retratos de papel da santa. Negros auxiliares corriam de um lado para outro entre escadas, tábuas e potes de tinta, como se as portas tivessem sido abertas antes da hora. Nenhum padre estava presente, nem é necessário que haja um quando a festa já foi oficialmente inaugurada. Era Santa Rita, a quem fora concedido o poder “de tornar possível o que é impossível”.[3]
Nesta descrição, ele menciona não apenas o largo e a fonte octogonal tal como representado na imagem, mas também a presença de pessoas escravizadas. Destaca-se a afirmação de que entre as pessoas devotas da santa das causas impossíveis estavam homens e mulheres daquela condição, os quais se esforçavam para captar o olhar da Santa. Nesse sentido, a narrativa, assim como a imagem da igreja, contém dois elementos fundamentais do livro de Ewbank: religião e escravidão. Esses dois temas são utilizados pelo autor para justificar o atraso da sociedade brasileira em relação à Europa e aos Estados Unidos. Conforme demonstrou Carla Viviane Paulino, o relato está impregnado das concepções relacionadas ao campo da Etnologia, que debatiam a "origem do homem" e o "lugar de determinadas raças em seus respectivos ambientes geográficos".[4] A construção de imagens e representações implicava que o Brasil estava condenado a um desenvolvimento lento e sempre inferior.
Dessa maneira, como viajante republicano e protestante em um contexto imperial católico e escravista, Thomas Ewbank forneceu um registro valioso, embora enviesado, das "extravagâncias religiosas" e da intensa participação popular nas festas do Rio de Janeiro. Isso fica evidente em outra visita realizada à igreja de Santa Rita. No texto do livro, logo após estampar a imagem do templo, o inglês narra sua experiência durante as comemorações da Festa do Divino Espírito Santo. O ponto de partida são os anúncios dos jornais sobre as festas nas igrejas, que prometem fogos de artifícios, leilões e outras atividades. Entre os anúncios, o convite para a igreja de Santa Rita o atraiu. A descrição irônica da igreja durante o evento contrasta com a imagem estampada:
Ao nos aproximarmos, a torre da igreja estava enfeitada com lâmpadas coloridas, e a fachada branca tingida de vermelho-sangue pelo clarão das tochas na pequena praça triangular. A cena que então se revelou parecia mais adequada aos subúrbios do Tártaro do que ao pátio de uma dama celestial. Nove cabeças de negros jovens, empapadas em alcatrão e sebo, fixadas em estacas fincadas no pavimento, ardiam diante da igreja, entre gritos e risadas de uma multidão de homens e meninos, negros e brancos. O ar estava carregado de fumaça, cujas densas volutas apareciam brancas na escuridão geral acima — o fétido nauseante, os estalos e esturros das bolhas que estouravam, os rostos sorridentes da turba inquieta — ora sumidos, ora iluminados pelas chamas, conforme o vento agitava o fogo. Há apenas um lugar que tal cena poderia evocar. Mas, para que o leitor não acuse a deusa do lugar de ser uma espécie de Moloque fêmea, amante de crânios tostados, informo que as tochas festivas — “Cabeças de Moleques” — são massas esféricas de estopa saturadas de piche e outras substâncias inflamáveis.[5]
Chama atenção a descrição um tanto macabra do evento religioso, com cabeças de moleques flamejantes que despertam a alegria de brancos e negros, o que certamente reflete a opinião crítica de Ewbank sobre o catolicismo brasileiro. Esse tom irônico e depreciativo se segue na narrativa sobre o interior da igreja, também representado em desenho, e a prática do leilão de galinhas, patos, bolos e outras mercadorias descritas como superfaturadas. Aquela experiência provavelmente foi marcante, como demonstra o destaque que ele deu em um dos artigos publicados na revista Harper 's, no qual incluiu outros desenhos do leilão.[6] Esses artigos, publicados na revista dos mesmos proprietários que publicaram o livro, serviram como estratégia de divulgação da obra. De qualquer forma, o relato de Ewbank é fonte importante sobre as práticas religiosas do Brasil oitocentista, um caminho de integração da população escravizada na sociedade escravista.[7]
Alguns aspectos dessa parte do texto contrastam com o documento visual que supostamente deveria ilustrá-lo, reforçando que o desenho representa aquela visita realizada na primeira semana de abril, narrada alguns capítulos antes. O próprio Ewbank confessa que uma representação mais precisa deveria ser noturna. Naquela noite, o espaço foi tomado por homens brancos e negros celebrando a festa do Divino Espírito Santo, prática que o autor descreve com certo desdém. Já na imagem, a cena ocorre sob a luz do dia, possivelmente nas primeiras horas da manhã, quando pessoas escravizadas se dirigiam às fontes em busca de água. Outro contraste marcante está na presença feminina: no texto, Ewbank observa a ausência de mulheres, alegando que o ambiente não era “apropriado para mulheres respeitáveis”. No desenho, porém, ele inverte o quadro e preenche o espaço com figuras femininas, entre elas uma mulher branca com uma criança e uma maioria de mulheres negras. Assim, enquanto na narrativa escrita predomina o olhar moral e religioso, na imagem sobressai o registro social, no qual emerge a presença da população escravizada no cotidiano urbano.
Entretanto, o viajante oitocentista possivelmente desconhecia que a relação da igreja com o sistema escravista era ainda mais profunda, remetendo às origens da capela na primeira metade do século XVIII. Isso porque foi edificada pela vontade de Manoel Nascentes Pinto, um proprietário de pessoas escravizadas, que ocupava o cargo de meirinho do mar, guarda e porteiro da Alfândega, posições que o colocavam no epicentro nevrálgico do comércio colonial. Sua função era fiscalizar a entrada, o carregamento e a saída das embarcações, o que lhe conferia controle absoluto sobre o fluxo de riquezas que definia a vida da cidade, incluindo, e especialmente, os navios negreiros que chegavam da África. A construção da igreja, iniciada em 1722, era parte da ideia de criar uma freguesia que atendesse a região do Valongo e da Gamboa, de difícil acesso no período.[8] Dessa maneira, considerada a primeira manifestação do rococó nas Américas, os adornos de entalhe de madeira da igreja contrastam com o papel de atender a área do comércio de pessoas escravizadas. Além disso, como Ewbank menciona em sua descrição, ela ficaria conhecida como “igreja dos malfeitores”, por receber, antes da execução, réus condenados à forca.
Por muitos anos, funcionou apenas como oratório particular da família, mas, em 1741, foi elevada à condição de matriz da freguesia de Santa Rita, quando se tornou o principal cemitério dos "pretos novos", africanos escravizados recém-desembarcados na colônia portuguesa.[9] O cemitério, portanto, recebia os corpos dessa categoria de homens e mulheres africanas que morriam logo após a traumática travessia do Atlântico, antes mesmo de serem vendidos. Inicialmente, o adro e, depois, o terreno ao redor da igreja, conhecido como Largo de Santa Rita ou Terreiro da Prainha, tornaram-se o principal local de enterro para esses indivíduos. Um documento de 1766 ilustra a escala assustadora da mortalidade, revelando que a tragédia não se limitava a um único local: de 4 de dezembro de 1765 a 19 de junho de 1766 (aproximadamente 6 meses), foram sepultados 226 “escravos novos” em Santa Rita. Esses números revelam um sistema de descarte humano em que africanos recém-chegados, desprovidos de nome, família ou dignidade, eram depositados em valas comuns, marcando a paisagem com a brutalidade silenciosa da escravidão.[10]
Em 1774, essa fase chegou ao fim. O marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil, determinou a transferência de todo o complexo negreiro para a remota região do Valongo. A decisão foi motivada por razões sanitárias e por um projeto de organização urbana que buscava segregar completamente os "pretos novos" do centro da cidade, escondendo dos olhos da elite colonial a face mais cruel do sistema que a enriquecia. Com essa transferência, Santa Rita perdeu sua função no tráfico e a memória de seu cemitério foi gradualmente encoberta por um "oblívio consolador". Sucessivas reformas urbanas, especialmente as grandes intervenções do início do século XX, apagaram fisicamente os últimos vestígios dessa necrópole anônima. Porém, durante as escavações para a instalação do VLT, o repouso dos milhares de africanos enterrados sob o Largo de Santa Rita, que estavam esquecidos por mais de dois séculos, foi interrompido. As obras, embora controversas, trouxeram à luz fragmentos ósseos e vestígios arqueológicos que confirmaram a localização do antigo cemitério. Essa redescoberta forçou a cidade a confrontar uma parte dolorosa e fundamental de sua história.
Assim, ainda que o autor não tivesse conhecimento do cemitério, a imagem de Ewbank revela, de maneira simbólica, as múltiplas camadas que compõem a memória da Igreja de Santa Rita. A figura, aparentemente pacífica, contrasta com o passado trágico do mesmo chão, onde antes repousaram os “pretos novos” e onde, sob o brilho da devoção popular, se ocultava a violência da escravidão. Assim, a figura de Santa Rita de Cássia, a santa das causas impossíveis, adquire um novo sentido: torna-se testemunha silenciosa das contradições do Rio de Janeiro oitocentista, onde fé, dor e resistência se entrelaçam em um mesmo espaço.
Referências
ABREU, Martha Campos. O Império do Divino: Festas Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1996. Disponível em: <https://hdl.handle.net/20.500.12733/1583710>. Acesso em: out. 2025.
Ewbank, Thomas. Life in Brazil or a journal visit to the land of cocoa and palm. Harper & Brothers Publishers, New York, 1856
Karasch, Mary C., em A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Companhia das Letras, São Paulo, 2000.
PAULINO, Carla Viviane. O "Império do atraso": Etnologia, política e religião nas impressões sobre o Brasil elaboradas pelo viajante norte-americano Thomas Ewbank (1846- 1856). Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo - USP, 2010. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-20062011-151436/publico/2010_CarlaVivianePaulino.pdf Acesso em out. 2025.
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007. https://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204431/4363507/AFlordaterracemiteriodospretosnovos.pdf Acesso em out. 2025.
SANCHES, Mônica Sanches (org). Pretos novos do Valongo: escravidão e herança africana no Rio de Janeiro - 1. ed. - Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2024.
[1] Ewbank, Thomas. Sketches in Brazil. Harper's New Monthly Magazine. 1855-05: Vol 10, p. 728.
[2] Karasch, Mary C., em A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Companhia das Letras, São Paulo, 2000.
[3] Ewbank, Thomas. Life in Brazil or a journal visit to the land of cocoa and palm. Harper & Brothers Publishers, New York, 1856, p. 210. Tradução livre.
[4] Paulino, Carla Viviane. O "Império do atraso": Etnologia, política e religião nas impressões sobre o Brasil elaboradas pelo viajante norte-americano Thomas Ewbank (1846- 1856).Dissertação, USP, 2010.
[5] Ewbank, op. cit. p. 314.
[6] Ewbank, Thomas. Sketches in Brazil. Harper's New Monthly Magazine. 1855-05: Vol 10, p. 730.
[7] Martha Abreu, analisou a descrição de Ewbank em seu clássico estudo sobre a Festa do Divino. ABREU, Martha Campos. O Império do Divino: Festas Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Doutorado em História. Campinas: Unicamp, 1996.
[8] Nara Júnior. João Carlos. A busca de um cemitério “todo murado e com bom reparo” para a freguesia de Santa Rita: a construção do cemitério dos pretos novos. In: SANCHES, Mônica Sanches (org). Pretos novos do Valongo : escravidão e herança africana no Rio de Janeiro - 1. ed. - Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2024.
[9] Santos, Ynaê Lopes dos. Quem eram os pretos novos. In: SANCHES, Mônica Sanches (org). Pretos novos do Valongo: escravidão e herança africana no Rio de Janeiro - 1. ed. - Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2024.
[10] Pereira, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007.