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Inspetoria Geral das Terras e Colonização (3D)
Em abril de 2024, no Acampamento Terra Livre, o líder indígena Tabajara, Ednaldo dos Santos Silva, declarou que viajou a Brasília para lutar por vida e direitos ligados à terra.[1] Atualmente, os tabajaras reivindicam a demarcação do território no estado da Paraíba.[2] Documentos do Arquivo Nacional comprovam como a caminhada dos povos indígenas daquela região não começa no presente, mas está enraizada nas feridas abertas desde os tempos coloniais, quando a terra lhes foi arrancada.[3] Esse aspecto pode ser constatado no fundo Inspetoria-Geral das Terras e Colonização (3D), objeto deste texto, que permite investigar os dilemas da política de terras e imigração do Brasil no século XIX.
A Inspetoria-Geral das Terras e Colonização foi um órgão criado em 1876 pelo decreto n. 6.129 a partir da fusão da Agência Oficial de Colonização (voltada à promoção da imigração estrangeira) e da Comissão do Registro Geral e Estatística das Terras Públicas e Possuídas (responsável por organizar registros e estatísticas de terras).[4] Assumiu competências ligadas à demarcação de terras públicas e privadas, à fiscalização e direção da colonização, e à promoção da imigração. Portanto, manteve-se dividida entre duas seções correlacionadas: uma dedicada às terras e outra à imigração.[5]
A criação do órgão se insere no processo de implementação da Lei de Terras (Lei nº 601, de 1850), que marcou uma reorganização no regime de propriedade territorial no Brasil, ao estabelecer a compra como única forma de acesso à terra, transformando-a em mercadoria e reafirmando o poder do Estado sobre a questão fundiária.[6] Com ela, foram proibidas novas concessões por sesmaria e a aquisição de terras por simples posse, além de se definirem como devolutas todas aquelas que não pertencessem a particulares ou ao poder público. Os recursos provenientes da venda dessas terras públicas seriam destinados a financiar a vinda de imigrantes livres, estratégia diretamente ligada ao contexto de transição do trabalho escravo para o trabalho livre após a Lei Eusébio de Queirós, também de 1850, que extinguiu o tráfico de escravos. A Lei de Terras tinha ainda um objetivo social e econômico: dificultar que imigrantes e a população pobre se tornassem pequenos proprietários, forçando-os a se integrar como mão de obra assalariada nas lavouras, sobretudo de café. Nesse sentido, refletia tanto as pressões do capitalismo global em expansão, que valorizava a terra como mercadoria, quanto a necessidade de impor ordem jurídica ao sistema agrário, marcado pela desorganização herdada das sesmarias e das posses.
A documentação da Inspetoria, subordinada ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, foi recolhida ao Arquivo Nacional em 1893, 1894 e 1923 e atualmente pode ser consultada principalmente no fundo de código 3D. Este encontra-se dividido em 4 seções: Caixas (CAI), Códices (COD), Registros de Terras (RGT) e Relações de Passageiros em Vapores (RPV). A seção CAI possui as séries P10 - Paraíba e S17 - Santa Catarina, a RPV possui a série Rio de Janeiro (RJ), enquanto a RGT possui a série Rio de Janeiro (ex-DF), a qual está subdividida em 8 subséries: FCG - Freguesia de Campo Grande; FQT - Freguesia de Paquetá; JCR - Freguesia de Jacarepaguá; FIG - Freguesia da Ilha do Governador; FIH - Freguesia de Inhaúma; FGR - Freguesia de Guaratiba; FTC - Freguesia de Santa Cruz; FLG - Freguesia da Lagoa e Gávea.
Nesta última, por exemplo, podemos observar declarações de posse de terras em diferentes freguesias do Rio de Janeiro, sendo que algumas despertam curiosidade pela localização. Fortunata Maria da Anunciação, viúva do falecido Joaquim José Turano, declarou ser possuidora chácara situada na “praia do Leme”, entre o forte da Praia Vermelha e o caminho de Copacabana.[7] Assim, chama atenção o registro da chácara em uma das áreas mais conhecidas da cidade atualmente.
Porém, é na seção CAI que se encontram medições e mapas do litoral da província de Paraíba produzidos na década de 1860, os quais tinham o fim de demarcar as terras que faziam parte da Sesmaria de Jacoca, originária do aldeamento que remonta ao século XVII e alçada a uma “Vila de Índios” no séc. XVIII.[8] Na carta topográfica em destaque podemos observar a medição do terreno Curraes, na
Freguesia da Jacoca, realizada pelo engenheiro Antônio Gonçalves da Justa Araújo. O documento demonstra como o Tenente-Coronel Antônio Quirino de Souza — que já havia sido denunciado por cometer atos violentos contra grupos indígenas — teve suas extensas propriedades formalmente reconhecidas dentro dos limites da antiga sesmaria. No início do ano de 1859, indígenas fizeram uma representação endereçada ao Imperador D. Pedro II contra “o Sr. Antonio Quirino de Souza, pelas violências e abusos que este há cometido contra os seus direitos de propriedade, já arrancando todas as suas lavouras, já queimando as suas casas, reduzindo-os deste modo a um estado de lamentável miséria”.[9] Desse modo, a consequência desse processo de demarcação realizado pelo Estado Imperial para os povos originários foi a legitimação do esbulho territorial e a perda do direito coletivo sobre a sesmaria. Mesmo sob protestos e resistência, suas terras foram reduzidas a pequenos lotes individuais e isolados, enquanto grandes porções foram entregues a latifundiários ou tornaram-se terras do Estado.Conforme demonstrou Manuela Carneiro da Cunha, ao longo do século XIX, “a questão indígena deixou de ser essencialmente uma questão de mão de obra para se tornar uma questão de terras”.[10] A mencionada Lei de Terras teve um papel central no processo de espoliação territorial dos povos indígenas, atuando como o principal instrumento legal e ideológico que legitimou a expropriação de suas terras coletivas. A consequência social mais profunda foi a transformação dos indígenas de donos de um território coletivo em uma população subordinada. Eles passaram a ser vistos como “ex-índios acamponesados” e forçados a viver como “moradores de engenhos e fazendas”. A perda da terra os empurrou para um sistema de “campesinato étnico e familiar”, onde precisavam conviver e disputar terras com pequenos agricultores e latifundiários em uma rede de dependência.[11] Essa transformação estava alinhada com o objetivo mais amplo da Lei de Terras de criar uma massa de mão livre e sem terras para servir ao latifúndio.
Na seção COD também é possível encontrar indícios da exploração de terras indígenas nesse mesmo período em outras regiões do Brasil, como na província de Paraná.[12] O códice 245 apresenta ofícios do Frei Timotheo de Castelnovo, um missionário capuchinho italiano que dirigiu o aldeamento São Pedro de Alcântara entre 1855 e 1895. Nele, podemos observar registros de pagamento para indígenas Kaiowá (também chamados de "Cayuás") por serviços prestados. O aldeamento foi concebido como uma forma de reconstruir as antigas Missões Jesuíticas e povoar a região, que era estrategicamente importante, especialmente no contexto de conflito com o Paraguai.[13] Porém, como outros aldeamentos, São Pedro de Alcântara enfrentou epidemias e conflitos interétnicos, entrando em decadência em fins do oitocentos.
Ainda entre os códices, fica evidente que imigração era parte central da política da Inspetoria, como demonstra o relatório apresentado ao conselheiro João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, presidente do Conselho de Ministros em 1878.[14] O documento, que se encontra digitalizado no SIAN, apresenta a base ideológica do projeto imigratório:
Em um país que possui como o nosso vastos recursos ainda não desenvolvidos o que há de mais necessário a sua prosperidade é uma lavoura rica para dali nascer a indústria e o comércio. Para alcançar esse resultado é indispensável fomentar a boa imigração por meios diretos e indiretos.
Com o objetivo de apresentar resultados “menos desanimadores” do que se imaginava, o relatório demonstra a dificuldade do Estado Imperial na implementação dessa política imigratória. O códice contém o “movimento geral da imigração no porto de Rio de Janeiro de 1855 até outubro de 1878”, demonstrando que cerca de 350 mil imigrantes haviam ingressado no território brasileiro naquele período. Outros documentos deste fundo complementam e detalham essa imigração, registrando nominalmente muitos desses estrangeiros que ingressaram em solo nacional com a expectativa de uma vida melhor.[15] A relação de passageiros dos vapores, que consta na seção RPV é igualmente importante, especialmente para aqueles que pesquisam informações sobre esses imigrantes, muitas vezes na busca de direitos de cidadania.[16] O documento abaixo, por exemplo, informa os nomes, religião, idade, profissão, nação, nome da embarcação, o dia que chegou ao Rio de Janeiro, a procedência, o dia que saiu e o destino.Assim, os documentos do fundo Inspetoria Geral das Terras e Colonização podem ser objeto de pesquisas variadas, especialmente aquelas que se debruçam sobre a política fundiária e migratória, mas também indigenista do século XIX. O presente texto teve como objetivo apenas uma apresentação mais ampla sobre o fundo, nem de longe esgotando a diversidade documental que ele contém. Ainda assim, fica evidente a relevância do órgão para compreender os impactos da Lei de Terras para regularizar a propriedade fundiária, controlar a população e garantir mão de obra para o latifúndio agroexportador.
[1] Agência de Notícias UniCEUB, https://agenciadenoticias.uniceub.br/cidadania-e-diversidade/acampamento-terra-livre-fomos-declarados-como-extintos-e-eramos-um-povo-enorme-diz-indigena-do-povo-kariu/.
[2] Sobre o histórico de luta envolvendo os povos Tabajara, ver: PALITOT, Estêvão Martins; CRUZ, Amandda Yvnne Figueiredo da. “Pisando em terra Tabajara”: conflitos e retomadas no processo de territorialização dos Tabajara da Paraíba. Trabalho apresentado na 33ª Reunião Brasileira de Antropologia, Belém, 28 ago.–03 set. 2022.
[3] Sobre o histórico de luta envolvendo os povos Tabajara, ver: PALITOT, Estêvão Martins; CRUZ, Amandda Yvnne Figueiredo da. “Pisando em terra Tabajara”: conflitos e retomadas no processo de territorialização dos Tabajara da Paraíba. Trabalho apresentado na 33ª Reunião Brasileira de Antropologia, Belém, 28 ago.–03 set. 2022.
[4] Para saber mais sobre o órgão, ver: https://mapa.an.gov.br/index.php/assuntos/15-dicionario/65-dicionario-da-administracao-publica-brasileira-do-periodo-imperial/356-inspetoria-geral-de-terras-e-colonizacao
[5] BRASIL. Decreto n. 6.129, de 23 de fevereiro de 1876. Cria a Inspetoria-Geral das Terras e Colonização. Legislação informatizada. Câmara dos Deputados. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-6129-23-fevereiro-1876-549093-publicacaooriginal-64440-pe.html
[6] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0601-1850.htm Mais sobre a Lei de Terras, ver: SILVA, Lígia Osório, Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850, Campinas, Editora da Unicamp, 1996.
[7] BR RJANRIO 3D RGT D16 FLG 7597.
[8] A Sesmaria da Jacoca foi concedida como recompensa aos indígenas identificados como da nação tabajara, por auxiliarem os portugueses nas Guerras de Conquista da Paraíba, sendo o grupo lá aldeado no início do século XVII. CRUZ, Amandda Yvnne Figueiredo da. O nome e os rastros: uma análise do uso das classificações sociais no apagamento da presença dos indígenas do antigo aldeamento da Jacoca, na Paraíba. Trabalho apresentado na 33ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 28 de agosto a 03 de setembro de 2022.
[9] Diário de Pernambuco, n.55, 9 de março de 1859, p. 1.
[10] CUNHA, Manuela Carneiro da. “Política Indigenista no século XIX”. In, CUNHA, Manuela Carneiro da. (org.) História dos índios no Brasil, 2ª ed., São Paulo: Cia. Das Letras/ Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP. 1992. p. 133.
[11] PLITOT, Estevão Martins. "Questões que diariamente ali se agitam": o processo de extinção das sesmarias de índios no litoral sul da Paraíba (1865-1867). Anais do XXVII Simpósio Nacional de História, 2013. https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548874917_98d4a205b31e50b9a3f0ec8310b9301f.pdf
[12] Aldeamento de São Pedro de Alcântara - BA - http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/br_rjanrio_3d/cod/0/0245/br_rjanrio_3d_cod_0_0245_d0001de0001.pdf
[13] AMOROSO, Marta Rosa. Catequese e Evasão: Etnografia do Aldeamento Indígena São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895). Tese, USP, 1998.
[14] CINTRA, José de Cupertino Coelho. Relatório da Inspetoria Geral das Terras e Colonização: sobre os trabalhos executados durante o ano de 1877. http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/br_rjanrio_3d/cod/0/0559/br_rjanrio_3d_cod_0_0559_d0001de0001.pdf
[15] BR RJANRIO 3D.COD.0.1189 - Registro de controle de entrada e saída de estrangeiros no porto do Rio de Janeiro (Transcrito).
[16] BR.AN,RIO.3D.RPV.PRJ.47.
Referências:
AMOROSO, Marta Rosa. Catequese e Evasão: Etnografia do Aldeamento Indígena São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895). 1998. 2 v. Tese (Doutorado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
BRASIL. Decreto n. 6.129, de 23 de fevereiro de 1876. Cria a Inspetoria-Geral das Terras e Colonização. Legislação informatizada. Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-6129-23-fevereiro-1876-549093-publicacaooriginal-64440-pe.html. Acesso em: 30 set. 2025.
CINTRA, José de Cupertino Coelho. Relatório da Inspetoria Geral das Terras e Colonização: sobre os trabalhos executados durante o ano de 1877.
CUNHA, Manuela Carneiro da. “Política Indigenista no século XIX”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (org.). História dos índios no Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP, 1992.
CRUZ, Amandda Yvnne Figueiredo da. O nome e os rastros: uma análise do uso das classificações sociais no apagamento da presença dos indígenas do antigo aldeamento da Jacoca, na Paraíba. Trabalho apresentado na 33ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 28 de agosto a 03 de setembro de 2022.
MAPA – Arquivo Nacional. Inspetoria Geral de Terras e Colonização. Dicionário da Administração Pública Brasileira do Período Imperial.
MAPA DE CONFLITOS – Fiocruz. Povo indígena Tabajara luta pela demarcação do seu território tradicional e contra a grilagem de suas terras, o desmatamento das matas ciliares e o lançamento de resíduos industriais nos rios, sua fonte de subsistência. Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. [S.l.]: Fiocruz, 2024.
MONTEIRO, Maria Elizabeth Brêa. Indígenas na construção do Império. Temas do Brasil Oitocentista, 2023. Acesso em outubro de 2025.
PALITOT, Estêvão Martins; CRUZ, Amandda Yvnne Figueiredo da. “Pisando em terra Tabajara”: conflitos e retomadas no processo de territorialização dos Tabajara da Paraíba. Trabalho apresentado na 33ª Reunião Brasileira de Antropologia, Belém, 28 ago.–03 set. 2022.
SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
UNICEUB – Agência de Notícias. “Acampamento Terra Livre: ‘Fomos declarados como extintos e éramos um povo enorme’, diz indígena do povo Kariu”. Agência de Notícias UniCEUB.
Documentos:
- BR_RJANRIO_3D_CAI_P10_0009
Planta Topográfica da posse de terras denominada - Curraes - na Sesmaria dos índios da Jacoca - pertencente ao Tenente Coronel Antonio Quirino de Souza
- BR_RJANRIO_3D_RGT_D16_FLG7597
Livro de Registro de Terras da Freguesia de São João Batista da Lagoa, em virtude das Autorizações concedidas pela Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850. (f.1)
- BR_RJANRIO_3D_COD_0_0245
Folha dos índios Cayquás
- BR_RJANRIO_3D_COD_0_0559_m0003de0044
Relatório da Inspetoria Geral das Terras e Colonização: sobre os trabalhos executados durante o ano de 1877.
- BR_RJANRIO_3D_COD_0_1078
Registro de estrangeiros: relação nominal de imigrantes estrangeiros remetidos para as províncias do Império por conta do Ministério do Império (Transcrito). (f.27v e f.28)



